Uma estadia inesperada
As recíprocas influências entre o Cubismo Órfico, apadrinhado por Apollinaire, e o Modernismo Lusitano, constantemente sedento de exemplos europeus, pertencem ao campo da Estética Comparada, na acepção de Étienne Souriau . As inúmeras consonâncias entre Orphisme francês e Orfeu lusitano, embora até agora inéditas , afloram pontualmente a partir do cotejo entre pintura e literatura.
La plus belle époque de ma vie, les grandes vacances… parce que j’ai pu travailler dans les meilleures conditions qu’un peintre puisse rêver : la luminosité violente de ce pays, l’animation de la rue qui me rappelait la Russie de mon enfance, les fêtes, les marchés, les chants, les danses populaires .
Assim Sonia Delaunay, depois dos 63 anos, evoca na memória a sua estadia lusa. Em 1914, a guerra surpreende-a com o marido, de tal forma que umas férias de dois meses se tornam um auto-exílio de seis anos. O casal permanece dois anos em Portugal, entre 1915 e 1917, morando em Vila do Conde, Monção e Valença do Minho. Sonia já tinha completado o livro a quatro mãos com o poeta Blaise Cendrars, La prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France (fig. 1); Robert estava em plena crise criativa, pensando até deixar de pintar, depois de ter descoberto as virtudes da luz simultânea (fig. 2).
Portugal torna-se então um desafio para ela e uma terapia para ele, segundo as palavras da mulher: « J’ai senti qu’il avait besoin à la fois de se retrouver seul dans un jardin, avec des couleurs naturelles fortes et pures, et de reformer un petit groupe de travail, de vivre entre peintres ». Consagrados por Apollinaire no templo da Section d’or, que viram os Delaunay na alma lusa? A luz, a música, a dança, como confessa Sonia. Relendo a sua declaração, encontramos um microcosmo sinestético, quase naïf; uma impressão visual (luminosité violente) inflama a faísca da memória (Russie), segue depois uma impressão auditiva (Chants) e a fusão total na dança (Danses populaires). Não é por acaso que, após o parêntese ibérico, Sonia cria os trajes para Djaghilev e os Bailados Russos, tendo já reflectido, desde 1913, sobre a luz em movimento com Tango, Bal Bullier (fig. 3).
Fig 3.
3. Sonia Delaunay, Tango, Le Bal Bullier, 1913, Musée D’Art Moderne de La Ville de Paris, Paris.
A passagem por Portugal assinala a troca da luz artificial da Ville Lumière pelo sol vivo, deslumbrante do Atlântico: « Dans un soleil éblouissant, les couleurs des châles, les vêtements des femmes, les teints hâlés, des pastèques vertes foncé, le milieu rouge vif s’éteignant dans les roses. J’étais ivre de couleurs et me suis mise à peindre tout de suite ». Surgem pinturas como Fillette Aux Pastèques, 1915 (fig. 4), Grand Flamenco, 1916 (fig. 6), Danseuse, 1916 (fig. 5), onde o simultaneísmo assume as formas da caixa harmónica duma guitarra ou de uma saia de bailarina. No Grand Flamenco, é como se o pizicato invisível da guitarra produzisse vibrações cromáticas ou cromófonas contagiando paredes, mesas ou o ar circundante.
Já em 1912, Robert e o seu amigo russo Alexandre Smirnoff tinham teorizado a sincromia, segundo a qual os raios luminosos são como ondas auditivas em comunicação misteriosa com o mundo inteiro. Em Portugal, todas estas especulações filosóficas e esotéricas renascem como investigação espontânea sobre a cor. Na série dos mercados, por exemplo, Sonia opera uma síntese entre visão, audição, paladar e tacto. Em Marché Au Minho, 1915 (fig. 7), o pitoresco matiza-se na procura dos arquétipos universais da luz.
Metamorfose extrema e fascinante são os autoretratos de 1916 (fig. 8), verdadeiros ritmos puros, nos quais o rosto/não-rosto de Sonia se reflete na paisagem/não-paisagem de Portugal (fig. 9).
Sonia parte do real e chega ao abstracto; Robert percorre a viagem no sentido inverso: do abstracto ao real, como testemunha a sua mulher a propósito de Nature Morte ou Symphonie Colorée, 1915-1916 (fig. 10): « Robert Delaunay a peint ce qu’il y avait dans notre jardin, des plantes grasses. Et puis, il a peint aussi des fichus que je ramenais du marché ». Nas sinfonias botânicas de Robert, a vida rústica da aldeia torna-se objecto da sua pintura. A doméstica da casa assume então o papel de uma verseuse lusa (fig. 11) que, na parte alta da moldura, mostra uma correspondência circular extraordinária entre o mundo vegetal, astral e humano, geometricamente harmonizado com o folclore local. As citações geométricas, o círculo, a oval e a esfera são pre-textos para sugestões herméticas, que remetem para o cósmico, o essencial, o absoluto.
Depois das leituras das obras de Chevreul, Robert descobre em Portugal uma luz mais pura, menos brumeuse do que em Paris. Depois das séries sobre as Villes e Tours, regressa à natureza, redescobrindo a cor.
Aussitôt en arrivant, on se sent enveloppé dans une atmosphère de rêve, de lenteur ; les mouvements rythmés et indifférents des boeufs dans les attelages archaïques, avec de grandes cornes, guidés par une toute petite fille enveloppée dans les étoffes multicolores ; d’autres visions sauvages et étranges où les couleurs s’entrechoquent, s’exaltent avec une vitesse vertigineuse. Des contrastes violents de taches colorées, des vêtements de femmes, des châles éclatants avec les verts savoureux et métalliques des pastèques. Des formes, des couleurs, femmes disparaissent dans une montagne de potirons, de légumes, dans des marchés féeriques, au soleil, entrecoupées par une figure haute supportant un vase, pur et irrégulier de forme, comme un vase antique sur la tête. Des costumes populaires, une richesse de couleurs rares. Toutes ces rondeurs éclatantes, brisées par les noirs profonds et les blancs étincelants des costumes masculins qui apportent de la gravité, des angles dans cette mer mouvante de couleurs répandues.
A cor mexe-se centrifuga e centripetamente, contagiando seres vivos e inanimados: é o Simultaneismo, ou seja, nas palavras de Robert, o seu fundador: « […] des accords fondés sur des contrastes, des dissonances, c’est-à-dire des vibrations rapides qui provoquent une exaltation plus grande de la couleur par le voisinage de certaines couleurs chaudes et froides ».
Começa o reino de Orfeu
Com o eclodir da guerra, os artistas portugueses residentes em Paris regressam à Pátria. Entre eles, Mário de Sá-Carneiro, Guilherme de Santa-Rita, Eduardo Viana e Amadeo de Souza Cardoso. Quando Amadeo encontra os Delaunay em Vila do Conde, já os conhecia muito bem, depois de os encontrar nos círculos parisienses e nas exposições em Berlim, Monaco, Moscovo, Londres, Estados-Unidos. Viana convida-os para passar o inverno em Portugal. Na mesma altura em que estes artistas regressam à pátria, nasce o orfismo lusitano. Em março de 1915, sai o primeiro número da revista Orpheu e em junho, o segundo. O terceiro, em preparação, nunca viu a luz.
Em agosto, os Delaunay chegam a Portugal. Enquanto o orphisme francês se fixa no norte do país, o orfismo luso estabelece-se no centro, em Lisboa. Coincidência espiritual? Segundo Ricardo Daunt sim, na minha opinião não. Baptizado por Apollinaire, o cubismo francês não podia ter sido exportado por Amadeo que, fechado no seu atelier em Manhufe, fica altivamente isolado até morrer . Nem Mário de Sá-Carneiro na sua correspondência com Fernando Pessoa consegue transmitir a lição cubista que alternadamente aceita e recusa , embora haja na sua poesia traços de simultaneisme, como por exemplo, em Álcool, 1913:
Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma…
Sem falar da técnica cubista de Além/Mistério, 1913:
[…] gomos de ar que se entrechocavam e soçobravam em catadupas,
vértices esbatidos de luz, calotes de cor, planos que ora volteavam
ou se detinham, harmonizando-se bizarramente, e eram assim –
como as coisas que sustentavam ou trapassavam – uma beleza
nova, talvez, em todo o caso bem digna de um pintor imortal…
Em janeiro de 1913, numa carta a Pessoa, Mário de Sá-Carneiro sugere o título de Orfeu em alternativa a Sinfonia em x; noutra carta ao amigo, Pessoa fala na sua obsessão pela Teosofia, na qual, segundo ele, « reside a verdade » . É esta, no meu entender, a resposta à pergunta sobre o paralelo entre Orfisme e Orfismo. Orfeu é o herói que desce ao fundo de si e da terra, em busca de amor. Decapitado, continua a cantar até chegar à ilha de Lesbo. Orfeu é metáfora da gnose, vox media, equilíbrio dos excessos e extremos: mitiga Dionísio e tempera Apolo. O criador do Orphisme, Apollinaire, descreve Orfeu como um precursor de Cristo. Por isso, ilustrando Le Poète Bestiaire ou Le cortège d’Orphée, de Apollinaire (figs. 13 e 14) , Raoul Dufy emoldura-o simbolicamente entre passado e futuro, entre Pirâmides e Tours, enquanto aponta para o alto com o dedo, como Platão.
Apollinaire traça uma linha de continuidade entre Orfeu e Cristo, com base nas ideias de Schuré, autor de Les Grands Initiés (fig. 15) .
Neste livro, livre de chevet de muitos mas jamais citado, o autor evoca uma série de iniciados, apresentados como centelhas duma única flama divina. Na incisão, no texto e na fonte, Orfeu ocupa o 5° lugar da série: Rama, Krishna, Ermes, Moisés, Orfeu, Pitágoras, Platão, Jesus. Schuré fala na cabeça de Orfeu, comparando-a ao disco solar que, não por acaso, Robert Delaunay pinta desde 1912.
Orfeu resulta do fenício: Aour = luz; rophae = cura. Por amor, Orfeu desce às trevas e volta à luz. A sua viagem é iniciática, curadora, transformadora . Segundo a teosofia, a cabeça, construída com base nas leis planetárias, é sede do pensamento criativo, da transmissão psíquica e representa, também, um símbolo astral. Daí Robert Delaunay reservar sempre à cabeça um tratamento especial, circundando-a de auras órficas e aludindo, por este meio, à dança dos astros, por vezes ocultada nos jogos linguísticos dos anúncios publicitários da cidade.Para Schuré, como para Blavatsky , descer equivale a subir, Orfeu é como Cristo, desce até à morte e regressa à luz, aceita a humilhação e reconstrói o templo interior.
Na correspondência com Pessoa, ao lado de uma citação do projecto editorial de um Orfeu-Sinfonia, Mário de Sá-Carneiro cita o verso do amigo Pessoa « Quanto mais desço em mim mais subo em Deus. » Lembro que Pessoa traduziu a obra de Blavatsky e Amadeo, numa das páginas do próprio diário, citando « A vox do silêncio, texto para comprar ». O ideal esotérico é citado explicitamente por Luís de Montalvor , director do primeiro número da revista. É o próprio Montalvor que diz ter intitulado assim a revista, reivindicando a paternidade da definição de Orfeu. Portanto, estes textos esotéricos em circulação são, no meu entender, a ponte para a contemporaneidade das ocorrências de ambos os termos, entre poesia e pintura.
O Orfirmo luso
O convívio entre portugueses e franceses leva o grupo de artistas a conceber o sonho de fundar umas exposições itinerantes internacionais que percorressem a Europa de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Nascem obras como Album N.1 pour La Corporation Nouvelle, Expositions Mouvantes, 1916 (fig. 16 e 28).
A viagem ibérica dos Delaunay marca uma viragem na vanguarda portuguesa. Se a relação de Viana com o casal é de dependência, como demonstram por exemplo os seus Bonecos Portugueses, 1916 (figs. 17 e 18), Amadeo afirma-se, quanto a ele, pela distância.
A linguagem de Sonia é traduzida por Viana em termos dialectais. Como diz José-Augusto França, o disco « cosifica-se » no Homem Das Loiças, 1919 (fig. 19) e Eduardo Lourenço afirma que Viana « converte uma finalidade em puro meio ».
Uma curiosa consonância é a sua Petite (fig. 20). Viana aproxima iconograficamente a citação da obra de Sonia e Cendrars La Prose du transibérien et de la petite Jehanne de France, às revistas Orfeu e K4 quadrado azul, tentando quase sintetizar visualmente orfismos e futurismo.
Amadeo, pelo contrário, reflete sobre música durante a estadia portuguesa dos Delaunay. A dele é uma música silenciosa, uma musica interrupta, suspensa, muda, alusiva à música das Esferas, como demonstram pinturas cujos títulos remetem para o silêncio: Musica Sorda, 1914-15 (fig. 21); Cavaquinho, 1914-15 (fig. 22).
Lê-se na agenda desses anos: « Muito diz quem não diz tudo. A um ser discreto pertence o tempo que faz-se mudo ». Por isso os seus violinos e guitarras não têm cordas, nem arcos, nem aberturas na caixa harmónica. Também interessado pelo ruído, Amadeo percorre todas as possibilidades sonoras do futurismo, como demonstram obras como Sem Título e Sem Título (Máquina Registradora), 1917 (fig. 23). A lição de Sonia emerge em obras como Canção popular. La russe et le Figaro, 1916, Canção popular e o pássaro do Brasil, 1916 (fig. 24). Estas obras citam a iconografia folclórica e vivamente cromática da artista francesa, embora Amadeo se mantenha fiel a si próprio no estilo e nas soluções pessoais.
Na altura, José de Almada Negreiros ainda desenhava e não pintava, dedicando-se à escrita. Na Mima Fataxa, reflecte sobre « deslocações abstractas do dinamismo interior duma alma » e também fala nos « gestos-cores » de Sonia, chegando em Saltimbancos, contrastes simultâneos a alcançar a técnica do casal e dedicando o seu Manifesto anti-Dantas à sua amiga russa .
O epílogo do convívio luso-francês deve-se a um curioso acidente diplomático: Sonia é acusada de espionagem. Os seus discos gigantes e multicolores nas paredes da casa rebaptizada Ville Simultanée são interpretados como sinais por submarinos estrangeiros (fig. 25). A exposição itinerante é retardada e o projecto acaba.
A última obra portuguesa de Sonia é para a Capela da Misericórdia, em Valença do Minho (fig. 26).
Aqui, o conceito bíblico da misericórdia – miser = homem cor = coração de Deus – surge invertido: não é Deus que desce até ao pecador mas o homem que se ergue até Deus. No mundo ibérico, esta apoteose do pecador é uma revolução: os filhos sobem até ao pai e a misericórdia, ou seja o amor, desce e sobe, tal como Orfeu no seu mito.
Mais tarde, chamado a decorar Le Palais de l’Air na Expo international de 1937 (fig. 27), Robert conjuga luz absoluta e cor local, passando do figurativo ao abstracto, mas a um abstracto quase táctil – como na Nature Morte Au Tapis Rouge, 1936 (fig. 29) – por causa da argila, areia, madeira que tornam a sua pintura concreta, tangível, matérica. E reiterando este motivo até ao infinito, quase como um monge nas suas repetitivas meditações (fig. 30), mantém na memória a experiência do real e do local português (fig. 31).
Em Voyages Lointains, Sonia funde mercado, fruta, aqueduto, na luz lusa (fig. 32-33-34) . Tudo se resolve em ritmo ascendente, vertiginoso, concêntrico, rutilante.
O Orfeu lusitano volta-se para trás. Surpresa, a sua Eurídice não morre, sublima-se na apoteose da pura luz (fig. 35).
Assim, descendo e subindo, pintura, literatura e música dialogam entre sinestesia e misticismo.