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teatro, modernismo, cultura Caipira, literatura brasileira

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Abrindo a porteira por Teresa Cristina Duarte-Simões

Luiz António Alves de Almeida, mais conhecido por Nico de Almeida, é natural de Piraju, interior do Estado de São Paulo. Desde cedo, interessou-se por literatura, tanto pela brasileira, como pela francesa. Na juventude, passou a ler todos os livros que, por acaso, caíssem em suas mãos.

Começou estudos de engenharia, trabalhou em várias empresas no Estado de São Paulo, e acabou regressando à cidade natal, onde desempenha atualmente as funções de diretor do Departamento de Cultura.

Nico de Almeida escreve poesia e já editou um livro, Ecos, publicado em 1982. Grande admirador do Modernismo brasileiro, pesquisou a Semana de Arte Moderna de 22 e suas principais figuras, acompanhando-as até o final da década de 20. Elaborou em seguida uma exposição itinerante sobre essa temática, que circula por escolas de pequenas cidades da região e do norte do estado do Paraná, permitindo assim acesso à cultura a jovens que não possuem condições econômicas de frequentarem um museu ou uma exposição nos grandes centros urbanos. Dessa pesquisa literária surgiu o blog que leva o mesmo título, ou seja, “Retalhos do Modernismo (http://literalmeida.blogspot.com).

A peça de teatro Trajano e outros da Silva foi concluída em 1995, após dois anos intensos de elaboração e de escritura. Para poder contar a história pungente desses trabalhadores rurais da região em que vive, o autor não hesitou em compartilhar a vida deles, subindo em caminhão às cinco horas da manhã e ficando em companhia desses roceiros bóias frias o dia todo, batendo papo, ouvindo "causos", comendo junto. A partir dessa convivência cotidiana, foi anotando o palavreado e compondo o texto. Chegou até mesmo a ser barrado por alguns fazendeiros que viam nele um agitador procurando introduzir a discórdia da tomada de consciência junto aos demais trabalhadores. Trajano e outros da Silva foi em seguida encenada na cidade de Curitiba em 1999/2000.

O cenário da peça situa-se na região caipira, vasto domínio de cultura específica, herdado dos tempos dos bandeirantes, cujo centro é o interior do estado de São Paulo, expandindo-se porém em direção do sul de Minas Gerais, norte do Paraná, e estados de Goiás, Mato Grosso. Se esses contornos geográficos permanecem pouco nítidos, pois fruto de séculos de miscigenação entre índios e aventureiros brancos, a cultura ali encontrada é bastante definida, baseada numa grande solidariedade e ajuda recíprocas, e conservada atualmente, entre outros, por trabalhadores rurais que vivem submetidos à vontade dos fazendeiros proprietários das terras.

A primeira referência literária que surge durante a leitura desse texto é, sem dúvida alguma, o poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina (1956). O leitor descobre, pouco a pouco, a triste vida dos Severinos caipiras, roceiros que acordam de madrugada e vão trabalhar de sol a sol, recebendo um salário de miséria.

Por outro lado, a técnica de Nico de Almeida, anotando expressões e formas de falar caipiras, lembra, sem dúvida alguma, a de Guimarães Rosa, recolhendo falares no sertão mineiro para construir em seguida as veredas literárias por onde andou. Se não há jagunços no sertão caipira, os opressores existem porém, explorando trabalhadores que terminam por morrer numa grande miséria e com o corpo exausto da lida de uma vida inteira.

A peça Trajano e outros da Silva divide-se em quatro partes distintas. Na primeira delas, "Lamentação", os roceiros chegam de madrugada na casa de Trajano da Silva, já velho e doente, para uma visita de cortesia, antes de partirem para o trabalho. As mãos do velho Trajano são grossas, cheias de calos, ele trabalhou a vida inteira. O lamento desse trabalhador braçal que definha é pungente: "roçar e cavar / roçar e semear / roçar e colher / roçar e rastelar / roçar e aventar…". Diante dessa lamúria, a mulher Aparecida – que tem o mesmo nome simbólico de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil - tenta acalmar o ânimo do marido, voltando-se para a religião e pedindo que "reze uma oração de igreja […] mas não se aperreie com Deus não."

Numa referência intertextual bastante clara a Morte e Vida Severina, um dos jovens roceiros visitantes intervém, lembrando que "[…] os sertanejos lá do norte / […] rezam, não por um bom trabalho / mas pra uma boa e santa morte." Trajano insiste, porém, na própria mágoa, ao mesmo tempo em que o texto, implicitamente, mostra a semelhança entre os trabalhadores do norte e do sul, generalizando desta forma o problema da exploração dos roceiros: "Essa vida… / De enxada sempre nas mãos / desde menino, esperando a sorte./ Agora velho e cansado / pedindo pra que venha logo a morte."

A segunda parte da peça, "Capinação", encena os roceiros em pleno trabalho, carpindo o mato, após Juvêncio, amigo de Trajano, tê-los incitado a começarem a faina, não sem antes lembrar que pesa sobre eles uma ameaça negra e bem real: "Vamos lá meus compadres… / Não podemos ficar parados / senão seremos trocados por arados."

Às nove horas da manhã todos param para descansar pois chegou o momento da "bóia fria", a comida de marmita que deu apelido a esses trabalhadores, como bem lembrou Trajano no início da peça, ao confessar: "pois eu estou desacorçoado / de ser o Trajano / não o de sobrenome Silva / mas o Trajano / Trajano Bóia-Fria". Essa pausa tão desejada é também o momento em que José, o filho de Trajano, em verdadeiro agitador, tenta conscientizar os roceiros explorados: "Não podemos esperar muito / dos donos das terras / e dos engravatados deputados, / nem que despenque do céu / uma boa solução. / Não podemos pensar mais em embirramento, / pois temos que resolver nossa situação."

Os falares de José são logo interrompidos por uma mulher que chega, ofegante, para trazer a triste notícia do falecimento de Trajano. Os capinadores largam a enxada e se dirigem para a casa do finado.

A parte seguinte da peça, "Passamento", mostra o velório e o enterro do velho Trajano, com uma tonalidade de grande tristeza e amargura, enunciadas pelo mesmo filho José: "Esse agora finado Trajano, / desde menino viveu sonhando / e por melhor vida… / Passou todo seu tempo esperando."

A conclusão da peça leva o título de "…E outros da Silva". Após uma elipse temporal, mostra a mesma cena do início, mas agora na casa de Juvêncio da Silva, o roceiro bóia-fria que, por sua vez, já não pode mais trabalhar e está esperando a morte, numa atitude semelhante à do finado Trajano. Repetindo a primeira cena da peça, os outros trabalhadores passam em sua casa para uma visita, antes de partirem para o trabalho. Num movimento circular de grande simbolismo, tudo recomeça: as mesmas mágoas, as mesmas penas, o mesmo cansaço.

E o autor conclui a obra esperando que um dia possam desaparecer todos esses Trajanos e outros da Silva, explorados por esse "sistema ruralista dominador, anti-humano, degradante e antissocial." Nico de Almeida critica de maneira explícita a aplicação, no meio rural brasileiro, do Estatuto do Trabalhador Rural, sistema que introduziu no campo "a mesma sistemática trabalhista dos assalariados urbanos", o que tornou os trabalhadores rurais "eternos reféns de um sistema desarticulado, falsificado, obscurantista".

Por outro lado, Trajano e outros da Silva recorre a um ritmo e rimas bem ao gosto da cultura popular caipira (acolhença / benquerença; guardamento / arribamento…), bem como propõe um vocabulário rico e típico dessa região cultural (apear, abespinhada, desgramada, dormência…). Num momento em que a tendência no Brasil é resgatar essa cultura caipira — desprezada num passado remoto, quando o país não desejava que sua imagem fôsse a de um país rural — Nico de Almeida propõe sua singela contribuição, elevando o roceiro bóia-fria à condição de herói desta triste história, não sem deixar de lembrar que a semente da consciência política já foi semeada e que talvez produza frutos num futuro bastante próximo.

Essas linhas introdutórias têm por objetivo abrir a porteira de onde vivem os Trajanos e outros da Silva, convidando assim o leitor a entrar, sentar e apreciar.

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Citer cet article

Référence électronique

Teresa Cristina Duarte-Simões et Luiz António Alves de Almeida, « Trajano e outros da Silva », Reflexos [En ligne], 2 | 2014, mis en ligne le 18 mai 2022, consulté le 29 mars 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/730

Auteurs

Teresa Cristina Duarte-Simões

Université Paul-Valéry — Montpellier III

MCF (HC)

teresa.duarte-simoes@univ-montp3.fr

Luiz António Alves de Almeida

Escritor

literalmeida@gmail.com

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