O presente texto reformula e aprofunda algumas proposições lançadas em Iumatti, P. T., “O percurso para o sentido da colonização e a dinâmica da historiografia brasileira nas primeiras décadas do século XX”, in: Iumatti, P. et al. (Org.), Caio Prado Jr. e a Associação dos Geógrafos Brasileiros, São Paulo, Edusp/FAPESP, 2008, p. 127-167.
Trata-se de apresentar um quadro interpretativo das relações entre instituições, política e produção do conhecimento no Brasil a partir da proclamação da República, em 1889, e, particularmente, das transformações deflagradas pela fórmula federativa da Constituição de 1891. Argumenta-se aqui que tais transformações definiram uma nova configuração para as disputas inter-regionais e suas relações com o poder central – configuração que repercutiu profundamente nos mais diversos ramos da produção do saber e da arte.
A nova Constituição e os conflitos inter-estaduais
Um dos enigmas que se apresentam hoje relativos ao panorama da produção científica no espaço latino-americano é o aparente paradoxo entre o aparecimento tardio das universidades no Brasil, nos anos 1930 - ao passo que, como se sabe, no restante da América Latina as universidades datam do primeiro século de colonização - , e o grau de excelência que vem atingindo uma parte dessas mesmas universidades, que, em diversos rankings internacionais, são as mais bem (ou estão dentre as mais bem) colocadas em meio a todo esse espaço. Isso se deve a fatores que têm a ver tanto com uma dimensão ideológica e com o grau de “desenvolvimento econômico” que atingiu o Brasil ao longo do século XX, a despeito de todas as suas distorções, como com a criação de diversas instituições de ensino, apoio e fomento ao longo do século XX, e também com a quantidade e a continuidade do montante de investimentos que foram e são destinados a essas mesmas instituições (ou, pelo menos, a uma parte delas), a partir dos anos 1950 e 1960.
Ainda que, diante da bibliografia existente, seja possível compreender a origem do projeto universitário no Brasil e seu contexto ideológico e político de implementação, parece-nos faltar, ainda, uma resposta mais clara para a pergunta sobre o porquê das universidades não terem sido criadas no Brasil anteriormente, o que envolve compreender, de forma mais apurada, a dinâmica da produção do conhecimento num momento anterior.
No entanto, compreender o surgimento tardio das universidades no Brasil deve passar não só pelo estudo de importantes fatores de longa duração, que remetem ao modo pelo qual se processou a colonização portuguesa na América e seus desdobramentos no campo da cultura ou do modo como no século XIX o Estado Imperial brasileiro estruturou sua “capacidade cognitiva”, mas também, e particularmente, pelo entendimento da dinâmica da produção do conhecimento a partir da proclamação da República, em 1889, a qual abrange uma multiplicidade de esferas, inclusive a literária. Tal dinâmica esteve relacionada a uma série de fatores institucionais e políticos decorrentes da abertura de um campo complexo de disputas desencadeadas pela fórmula federativa da Constituição de 1891.
Esta dinâmica dos conflitos interestaduais, todavia, vem sendo entendida principalmente em termos dos equilíbrios políticos, das disparidades econômicas e sociais e, mais recentemente, na base do estudo da construção de mitologias identitárias estaduais e regionais, como a de São Paulo e seu passado bandeirante, dos estados do “norte” na produção do consenso em torno da idéia de “Nordeste”, entre outras1. Dando uma nova interpretação a assuntos abordados por autores que se debruçaram sobre a relação entre conflitos territoriais e a produção do saber naquele contexto2 é nosso propósito examinar outros fatores que envolveram a dinâmica da produção do conhecimento no período – os quais, em face do quadro de crise política e institucional dos anos 1920, desaguaram na necessidade de um novo enquadramento institucional – o universitário – para essa produção.
Sem nos determos em análise aprofundada da Constituição de 1891, constataremos que ela trouxe ao País modificações institucionais profundas, de ampla repercussão em diversos níveis. Muitas delas remetiam à definição jurídico-política de uma nação formada por “homens livres”, todos potencialmente capazes do exercício da cidadania – o que colocava, em primeiro plano, o desafio de enfrentar as heranças do passado colonial e escravista3. Excluindo o voto dos analfabetos – que perfaziam 84% da população em 18904 - e prevendo uma nova forma de estruturar o ensino público, agora laico, a Constituição pôs novos dilemas à intelectualidade e aos grupos que disputavam entre si o topo do poder. Realizou, ainda, uma redistribuição marcante das atribuições entre o poder central e os poderes estaduais e municipais, fortalecendo a soberania local em diversos campos. Esta redistribuição do poder deu ensejo a um momento de disputas acirradas, com uma série de implicações para a vida intelectual da República nascente. Este processo provocou o estabelecimento de um novo tipo de atuação dos “letrados” e um novo modo de relação destes com o poder.
Os estados estavam incumbidos, agora, de “prover, a expensas próprias, as necessidades de seu Governo e administração” (artigo 5º). À União caberia, por exemplo, decretar impostos sobre importação e direitos de entrada, saída e estadia de navios, enquanto os estados detinham a competência exclusiva de decretar impostos sobre mercadorias de sua própria produção (Artigos 7º e 9º). Com isso, a taxação sobre as importações ficava em uma zona sujeita a disputas. Além disso, a Constituição colocava em primeiro plano a tarefa do governo federal de prover meios de comunicação e melhoramentos materiais como pontes, açudes, estradas de ferro, telégrafos, etc. – que passaram, assim, a ser pleiteados, muitas vezes de modo assertivo, pelos estados. O antigo Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas - ao qual, no Regulamento de 1876, estava ligada a Inspetoria Geral de Terras e Colonização, bem como as Inspetorias especiais (nas províncias) de terras e colonização - parou, na República, de articular, em última instância, a medição das terras devolutas, delegando assuntos que antes passavam pelo poder central.5 Na Constituição de 1891, a combinação entre a permissão a que os estados organizassem como bem entendessem seu governo e administração, e a propriedade das minas e terras devolutas situadas nos seus territórios, cabendo à União somente a porção de território que fosse “indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções” (artigo 64)6, deu-lhes um domínio inaudito sobre a questão fundiária. Nesse sentido, também cabe observar que a nova Constituição lhes atribuía competência exclusiva sobre o decretar impostos sobre imóveis rurais e urbanos e sobre a transmissão de propriedade (artigo 9º).
Este novo poder dos estados deu especial relevância aos territórios limítrofes aguçando velhas disputas de fronteiras entre as unidades da federação7. A Monarquia havia legado à República 29 questões de limites, das quais, em julho de 1920, antes da Conferência de Limites Interestaduais, apenas duas estavam resolvidas de modo definitivo: Pará e Mato Grosso e Paraná e Santa Catarina8. Lembre-se, aliás, que a despeito dos esforços para solucioná-las antes do centenário da Independência, em 1933, mais de uma década decorrida, de 30 questões elencadas, apenas 6 estavam definitivamente encerradas.9
A derrocada do Império e de suas soluções de equilíbrio para os conflitos inter-provinciais10 trouxera à tona disputas territoriais antigas, inserindo-as em um novo quadro de luta por espaço e poder. A Bahia, por exemplo, que reivindicava ter sido o primeiro pólo irradiador de civilização no Brasil, e que, ao longo do Império, preservara um peso político extraordinário, era, agora, um dos principais alvos das reivindicações de revisão da posse de territórios. Pernambuco, que tinha perdido para a Bahia a comarca do São Francisco por ocasião da repressão dos movimentos de 1817 e 1824, reivindicava a revisão da punição, como se vê no opúsculo publicado em 1919 por José Gonçalves Maia, Direito territorial de Pernambuco sobre a Comarca do Rio São Francisco11. Igualmente conflituosa havia se tornado a questão dos limites da Bahia com Sergipe.12
Para além disso, e ao contrário do que as publicações oficiais procuravam fazer crer ao enfatizar que as disputas haviam sido todas “herdadas da Monarquia”, novas questões surgiam, como aquela dos limites da Bahia com Minas Gerais, em relação à região da Encruzilhada, que se tornara importante entreposto comercial. Na carta mineira de 1910, levantada pelo Engenheiro Benedito dos Santos, ao tempo em que governava Minas Wenceslau Brás, a divisão com a Bahia fora alterada para além de Salto Grande do Jequitinhonha, no intuito de açambarcá-la. O fato foi relatado por Braz do Amaral em 1919 ao governador da Bahia – com a observação de que “pessoas de significação política, na parte norte do Estado de Minas, influíram, fortemente, para isto”. As negociações em torno desse conflito deram-se no VI Congresso Brasileiro de Geografia, ocorrido em Minas naquele ano. Da parte deste estado, participou das negociações ninguém menos que o historiador Diogo de Vasconcelos.13 Note-se que o Congresso tivera a questão dos limites como um de seus principais, senão seu principal tema, operando segundo a linha diretriz traçada pelo governo, que propunha a resolução de todas essas questões até o ano do centenário da Independência. Nesse sentido, o Congresso contou com a participação e o empenho da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Liga de Defesa Nacional, instâncias mediadoras. 14
Em semelhante contexto, é significativo que Bernardino de Souza, figura central no Instituto Geográfico e Histórico baiano, tivesse se engajado, desde 1911, em enérgica campanha para a elaboração de uma carta geográfica do Estado da Bahia. Chamou para ajudá-lo Theodoro Sampaio e escreveu o texto “Indicações para um projeto de organização de uma Carta Geographica do Estado da Bahia”, no qual sustentava a necessidade da constituição de um corpo técnico para levar a cabo a empreitada.15 A propósito, uma das tônicas dos numerosos discursos de Theodoro Sampaio na mesma instituição era justamente a necessidade de inventariar, mapear e conhecer os recursos da Bahia – ele que havia participado tão intensamente de projetos que envolveram reformas sanitárias e urbanas na São Paulo da virada do século XIX ao século XX,16 tendo acompanhado, até os anos 30, o contínuo processo de acirramento das desigualdades regionais. Sabia que, para tanto, era preciso utilizar as melhores armas da ciência, em todos os planos.17
Nos Annaes da Conferência de Limites Interestaduais, o deputado Augusto Lima, delegado de Minas Gerais, falando em nome de todos os delegados na Conferência, atribuiu as raízes da situação de acirramento dos regionalismos e disputas em torno dos limites interestaduais à colonização portuguesa e, nela, à preponderância dos régios interesses fiscais, que nem sempre haviam coincidido com uma divisão mais “racional”, que seguiria, ao que parece, segundo sua visão, os acidentes naturais18.”. O problema atravessaria o Império sem solução e chegaria até a República como desafio aos herdeiros do projeto de construção de uma nação:
“Não pode ser mais imperfeito o material que nos é oferecido para a projetada construção de que somos os arquitetos. Quase todo o território do Brasil está por ser geograficamente levantado. As populações infiltraram-se pelo interior, atravessando rios caudalosos e serranias ásperas. Formaram-se núcleos de populações de Estados, dentro do território de outros Estados. Há invasões antigas, que são respeitadas por jurisdição estranha. De outro lado, há títulos de direito em contradição com o fato da ocupação, e há títulos inidôneos, pretendendo afastar ou remover uma posse protegida pelas leis. Há limites que se pretendem alterar, outros retificar, outros que ainda devem ser traçados19.”
Com isso é que se entende que a atenção aos modernos procedimentos utilizados na construção do conhecimento histórico tenha extrapolado o círculo restrito de especialistas e educadores para adquirir o status de questão crucial para quem quer que se importasse com os destinos da nação.20 E também que, de certo modo, a história tenha se subordinado, nesse processo, à geografia:
“Coube à geografia propiciar a reconciliação entre a nação e sua história. O discurso sobre o território forneceu a moldura capaz de reenquadrar o passado, extirpando-lhe tensões e ambigüidades que obstacularizavam a sua utilização na construção da identidade. Num caminho até certo ponto peculiar, a produção do espaço nacional ocupou o centro da cena, subordinando a história, que passou a ser encarada como narrativa dos grandes feitos que asseguraram, apesar de todas as adversidades, a posse da terra. Diante da crescente importância assumida pela configuração do território, não surpreende que o trabalho mais festejado no Primeiro Congresso de História Nacional realizado no Rio de Janeiro em 1914, tenha sido a Expansão geográfica do Brasil até fins do século XVII, do historiador Basílio de Magalhães, obra laureada em 1917 com a Medalha de Ouro Dom Pedro II do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro21.”
Se há algum exagero na formulação, conforme veremos mais tarde ao discutirmos a emergência de uma maior sofisticação epistemológica por parte dos historiadores do período, o certo é que, ao longo da Primeira República, quase todos os estados brasileiros enfrentaram demandas e se digladiaram em torno da questão de seus limites recíprocos – Santa Catarina e Paraná; São Paulo e Minas Gerais; Ceará e Rio Grande do Norte; Mato Grosso e Goiás; etc. Alguns institutos históricos e geográficos, como o do Mato Grosso, nasceram, aliás, com o propósito explícito de sustentar posições em áreas de disputa.
Nesse quadro, a necessidade de rigor no uso e na crítica da documentação era enorme, já que questões históricas, como aquelas relativas aos primeiros focos de colonização de regiões cujas fronteiras figuravam como objeto de contendas, podiam ter desdobramentos políticos, sociais e econômicos importantes, apesar de sua relativa obsolescência jurídica, dada a predominância do princípio do uti possidetis.22 A primazia do uti possidetis desencadeava, também, políticas estaduais agressivas ou complacentes em relação aos processos de expansão territorial e de crescimento das “zonas pioneiras”, as quais, para serem melhor controladas e ocupadas, pressupunham um melhor conhecimento e inventário dos recursos naturais e sociais.
A nova situação envolveu a necessidade de espaços que complementassem as instâncias últimas que legalmente encaminhavam ou arbitravam os conflitos. Lembremos, assim, que o artigo 4º da Constituição de 1891 previa que os estados podiam incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se, “para se anexar a outros, ou formar novos Estados, mediante aquiescência das respectivas Assembléias Legislativas, em duas sessões anuais sucessivas, e aprovação do Congresso Nacional.” Isto implicava não só o reconhecimento da legitimidade das instituições em questão, mas fatores que extrapolavam a letra da Constituição, como a construção de uma esfera em que conhecimentos e informações conflitantes pudessem ser formulados da forma mais “universal” possível, ou que, ao menos, fossem fortes o suficiente para dar sustentação ou resistir aos acordos políticos. O nascimento de museus e institutos de pesquisa situa-se nesse contexto.
Tudo leva a crer que a necessidade de coleta de informações econômicas, sociais e políticas úteis para a ação política e administrativa transferiu aos estados parte significativa não só da responsabilidade, mas da própria possibilidade de produzir dados e elaborá-los cientificamente – fazendo-o, porém, de forma relativamente dispersa. As relações de poder e hegemonia passavam por essa esfera – daí a importância da estruturação de comissões em órgãos oficiais ou semi-oficiais (como no caso dos Institutos Históricos e Geográficos) voltadas à produção de dados, estatísticas e conhecimento em Geografia, Cartografia, Geologia, Mineralogia, Botânica, Zoologia, Arqueologia, História, Etnografia, Filologia, Agricultura, Zootecnia, Comércio, Indústria e Navegação, etc. Os Institutos Históricos e Geográficos participaram ativamente dessa construção, e a ciência que neles se produzia tinha significado político claro, embora decerto não necessariamente imediato, pretendendo alçar-se a um novo patamar de universalidade.
Dessa perspectiva é que se pode entender alguns aspectos fundamentais relativos à criação e à atuação da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, que tinha como modelo o norte-americano Bureau of Information, e se propunha, desde o início, como órgão neutro em face dos interesses em disputa. Sua atuação abrangeu, até 1919, investigações científicas locais sobre geografia, zoologia, botânica e geologia da região, e “sobre o seu clima e sua gente”, sem as quais, nas palavras do Engenheiro Henrique de Novaes, “fora impossível fundar lógica e metodicamente, uma diretriz segura”.23 É de se destacar, porém, que para a segurança dessa diretriz se recorria a figuras de notório saber ou estrangeiros – muito em acordo com o novo patamar científico que o panorama de disputas demandava. Assim, participou dos estudos básicos até 1919 uma equipe de ilustres cientistas e engenheiros, como Antonio Olyntho dos Santos Pires e Felippe Guerra, e também os norte-americanos Orville Derby, Roderic Crandall, G.A. Waring e Horatio Small, dentre outros. Explica-se, também, ao menos em parte, que, quando, em 1920, o presidente Epitácio Pessoa decidiu fazer um grande esforço destinando cerca de 15% do orçamento federal para as obras contra as secas, tenha se recorrido a empresas estrangeiras, em meio a críticas cada vez mais acirradas as quais culminariam na paralisação das obras, em 1925. O teor dessas críticas revela bem o quanto o paradigma de atuação política passava pela consideração da cientificidade dos procedimentos e dos planos. Elas versavam sobre a precariedade dos estudos científicos prévios, constatando-se erros como a insistência no emprego de barragens de concreto – quando barragens de terra teriam sido mais econômicas e igualmente eficientes -; a compra de grande quantidade de equipamentos para várias obras simultâneas, quando os mesmos equipamentos poderiam servir a várias obras; a localização errada da barragem de Orós, em local impróprio para as fundações; etc.24 Considerações de ordem técnica, evidentemente abraçadas pelos grupos politicos que detinham o poder, continuavam a ter um peso determinante, mas em novo patamar, invadindo de multiplas formas o campo da política e colocando-a em xeque em face da relativa libertaçao dos interesses em conflito.
Uma esfera superior de arbitramento
Era fundamental à República manter certo controle sobre os conflitos descritos acima – e, sobretudo, procurar construir sua legitimidade em face dos mesmos. Para isto, valia-se do fato de que a dinâmica dos confrontos tornava ainda mais necessária uma esfera superior reconhecidamente legítima, em que o verdadeiro e o falso pudessem ser discernidos em face de provas, ou em que os argumentos fossem suficientemente fortes para desencadear ações oficiais e processos de ordem jurídica. Essa esfera não era formada apenas por instituições como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, mas dizia respeito à própria imprensa, a instituições culturais de abrangência nacional, como a Biblioteca Nacional, a Sociedade de Geografia, a Liga de Defesa Nacional e o IHGB (Instituto Historico e Geografico Brasileiro), e fóruns de discussões e negociações como os Congressos de História Nacional ou de Geografia. Nessa esfera, tornava-se urgente produzir e veicular um conhecimento que estivesse à altura da necessidade de argumentos fortes, reconhecidos em situações de conflito, tudo parte da emergência de um paradigma modernizador.
Destarte, a assimilação do modo “moderno” e realista de produzir ciência e técnica passa a ser imprescindível à consolidação da República e dos grupos que procuram se reequilibrar no poder, nos Estados e na União. Ora, esse movimento está na base do momento de renovação metodológica que inspira figuras-chave da produção intelectual do período, provocada por movimentos gerais que se faziam sentir no mundo e pelas demandas da nova situação jurídico-política aberta com a Constituinte de 1891.
Esta concepção “moderna” e realista do conhecimento, de que se tratava, o via como complexo, relativo, parcial e coletivo25 – e, ainda assim, válido e verdadeiro, suscetível de produzir leis, amparar ou nortear a ação. Conjugava-se à exaltação de uma postura de maior humildade e independência – às custas de suportar ou incorporar inevitáveis críticas (manchando, às vezes de forma aparentemente contraditória, representações identitárias idealizadas), que se multiplicariam e efetivamente se multiplicaram. A aceitação, implícita ou explícita, quase sempre parcial, desse novo paradigma era fundamental para a legitimação de toda a estrutura de poder e de seu funcionamento. Ou seja: o novo campo configurado a partir da Constituição de 1891 demandava um espaço de legitimidade que, em um contexto internacional de profissionalização, profundos questionamentos metodológicos e intensificação da intervenção imperialista elevava a um novo patamar o grande desafio de amparar “cientificamente” as ações públicas.
Observamos que a demanda convergente por um espaço de legitimidade colaborou de forma decisiva para que se processasse uma mudança no paradigma predominante do que era tido como um conhecimento legitimamente reconhecido como verdadeiro. Tratava-se de modernizá-lo, de colocá-lo em consonância com métodos desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos. Com efeito, é possível constatar (e o fato tem sido constatado, mas não explicado pela bibliografia pertinente) que, em face das necessidades práticas, concepções deterministas e grandes sistemas biológicos, filosóficos ou sociológicos, que interpretavam a evolução total da humanidade ou fatos específicos a partir de prismas mais ou menos inflexíveis, dando pouca margem para o diálogo com o empírico, perderam espaço em todas as áreas: na medicina, na engenharia, nos estudos geográficos e geológicos, nos estudos lingüísticos e etnológicos, na história etc.26 Assim, por exemplo, a discussão de novas teorias, como a bacteriologia, que explicava a origem das doenças, colocava em xeque representações consolidadas sobre o peso do fator climático e/ou racial. Na etnologia o mesmo acontecia a partir de estudos como os de Franz Boas, que combatiam os esquemas dos antropólogos evolucionistas, de um lado sustentando a necessidade de estudos monográficos, parciais, e menos ambiciosos, e de outro criticando os determinismos de raça e meio27.
Estes avanços se desdobravam na exigência de estudo de situações específicas, concretas e complexas – que só poderia ser levado a cabo em trabalhos de campo de caráter necessariamente monográfico e investigativo. Analisando as páginas da Revista do Brasil nos anos de 1910 e 1920, Tânia Regina de Luca observou que houve deslocamentos importantes sofridos pelo paradigma racial vindo do século XIX. Em suas palavras, esses anos:
“assistiram tanto a difusão e consagração de uma leitura positiva da mestiçagem quanto a emergência de uma interpretação apoiada em princípios higiênicos e eugênicos. Se é certo que nem sempre tais mudanças implicaram o rompimento das fronteiras ou a negação completa das teorias raciais, pelo menos acabaram por relativizar o seu significado.”28
Questões semelhantes percorriam a produção do conhecimento em várias áreas (muito embora, pelos olhos de hoje, essa produçao apresente um grau de rigor talvez insatisfatorio, o que contribuiu para obscurecer toda essa dinâmica que intentamos aqui esclarecer). Theodoro Sampaio, em O tupi na geografia nacional, dará a seu trabalho caráter a um só tempo empírico e metodológico, conjugando-o, no que tange ao método, ao “processo crítico de Freire Alemão”, que reconhecia “primeiro a identidade do vocábulo, discutindo as suas alterações subseqüentes antes de traduzi-lo ou dar-lhe o respectivo significado.29” (p. 8-9) Ao mesmo tempo, fazia um balanço crítico de trabalhos anteriores, sem contudo presumir “com isso dar a última palavra na questão”. (p.9).
As novas exigências em relação à identificação, tipificação e instrumentalização da natureza e da sociedade, bem como a tudo que envolvia a organização do conhecimento, levavam intelectuais e políticos brasileiros não a “copiar” idéias, mas a tentar observá-las, apropriá-las e produzi-las, levando o poder, figurado em institutos, museus, comissões geográficas e geológicas, órgãos administrativos, etc. – dialogando com o poder dos estados e da União, por vezes em colaboração, por vezes em disputa – a tentar trazer para a sua órbita cientistas e técnicos de alta capacidade e reconhecida independência como Orville Derby, Pandiá Calógeras e Theodoro Sampaio, dentre muitos outros. É importante, aliás, destacar que o primeiro mapa geológico completo do Brasil só veio a lume em 1918, com a publicação do Geologic Map of Brazil (Bull. Geol. Soc. Amer., 29), de John Casper Branner. A versão em português, feita pelo próprio autor, seria publicada no ano seguinte, no Boletim do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil.30 O trabalho seria visto por Capistrano de Abreu como um importante instrumento, já utilizado por Miguel Arrojado Lisboa, engenheiro de minas que assumira a chefia da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, em suas andanças pelo Ceará, Rio Grande e Paraíba, em 1920.31 É de se destacar que uma das viagens de estudos que Branner organizou em 1907, e que a princípio deveria ser financiada por particulares, passou a ser custeada pelo governo do presidente Afonso Pena, por intervenção do Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida, o que denota a nova demanda por estudos deste tipo32.
Os intelectuais e políticos procuravam se apropriar o quanto possível dos modelos produzidos nos Estados Unidos, que se afirmavam, cada vez mais, como centro hegemônico. Nesse sentido, é importante lembrar que Branner esteve pela primeira vez no IHGB em 1899, tendo lá travado amizade com Capistrano e Theodoro Sampaio. Mais tarde, estabeleceu relações com outros sócios, como Oliveira Lima, Max Fleiuss, Said Ali, Ramiz Galvão e Pandiá Calógeras, “personalidades com quem se corresponderia até o fim da vida, trocando informações, livros e favores.”33
John Casper Branner não rompia em nenhum momento com o caráter nomológico da ciência, manipulando, a todo momento, como pontos de chegada e de partida, leis do mundo físico e químico – embora não só. Manipulava-as, por outro lado, com muito cuidado e atenção às particularidades e evidências empíricas, levando em consideração uma multiplicidade de fatores. Afirmava, em seu manual de Geometria elementar, que a geologia era a ciência que tratava da estrutura e da história da terra, e que, dessa perspectiva, partia de fragmentos para entender conjuntos que remeteriam à compreensão de todo o globo – acrescentando ainda observações como a de que, em virtude de as rochas da América e do Brasil serem muito semelhantes às da Europa, da Ásia e da África, as leis da Geologia aplicavam-se “universalmente”34. Lidava, porém, com incertezas em relação à extensão do tempo geológico35 e com dificuldades de ordem documental, já que os arquivos das rochas não eram em toda a parte acessíveis, tendo sido muitos deles escurecidos ou obliterados totalmente.36 A geologia era uma ciência complexa, especializada, que lidava com fragmentos e indícios, e tinha de proceder com cautela ao articulá-los para a elucidação de grandes conjuntos ou leis.
Em face das dificuldades relativas à reunião das informações sobre as várias regiões brasileiras, Branner confessava, em seu Resumo da Geologia do Brasil, que havia dado alto valor a toda informação que lhe chegara ao conhecimento, qualquer que fosse sua importância ou origem, “pois muitos dos dados tem sido colhidos de indivíduos e de publicações de todas as qualidades espalhadas por toda a parte, e muitas delas pela maior parte difíceis ou impossíveis de se achar.”37 Entretanto, a confissão não é feita à luz da crença na possibilidade de um conhecimento absoluto, positivo dos fenômenos:
“Mas enquanto todo o conhecimento é, e necessariamente há de ficar imperfeito, o melhor que podemos fazer é de principiar a adiantar pouco a pouco as fronteiras da nossa ciência, e, segurando o que temos, aproveitar toda a oportunidade para aumentá-la. É só assim que a ciência pode fazer progresso em país qualquer e em campo qualquer. Foi neste espírito que este mapa foi organizado afim de mostrar o estado do nosso conhecimento da geologia do Brasil, e afim de abrir caminho para adições e melhoramentos.”38
Além disso, ao reunir todas as informações disponíveis, Branner explicava que fora preciso um elemento de elaboração que remetia à interpretação racional de tudo o que se sabia e havia sido publicado até então. Tal procedimento possibilitara já “representar a geologia geral do país de uma maneira regular.”39 Se ainda existiam muitas áreas a respeito das quais pouco ou nada se sabia, e restavam muitas questões a respeito das idades geológicas e correlações das rochas, as suas distribuições, as suas estruturas detalhadas e os seus recursos minerais que, por ora, não se podiam resolver, ou só podiam ser resolvidas tentativamente, Branner argumentava que tais dúvidas eram “inseparáveis de todo progresso na ciência.”40
Ora, essas concepções articulavam-se de forma bastante nítida a um novo paradigma do conhecimento, em que se destacavam, conforme estamos vendo, os efeitos que os esquemas de organização e estruturação institucionais produziam sobre seu resultado final. Nesse processo, paralelamente à relativa decadência dos esquemas cientificistas e normativos do século XIX, o caráter complexo, parcial, coletivo, aberto e relativamente independente do conhecimento era cada vez mais reconhecido. É preciso enfatizar que se reconhecia, assim, ainda mais, de forma explícita ou na prática, que o conhecimento não poderia ser desenvolvido tão somente no âmbito dos projetos regulares de caráter governamental, no dia-a-dia da administração ou por meio das instituições já existentes. Dito de outro modo: considerando que o conhecimento era necessariamente parcial e monográfico, portanto fruto de um articulado e complexo trabalho coletivo, faziam-se necessários variados tipos de apoio institucional. Ao mesmo tempo, entretanto, o novo paradigma de conhecimento e mesmo as necessidades impostas pelo novo arranjo político pediam um tipo de conhecimento em alguma medida “independente”. Só assim se compreende o contexto da emergência de instrumentos complexos como os Institutos Históricos e Geográficos estaduais e sua dinâmica de embates reciprocos, em interação com as instituições centrais, de carater nacional ou situadas no espaço açambarcador do Rio de Janeiro.
Novo paradigma e os mitos identitários
As contradições entre um novo tipo de conhecimento monográfico, parcial, voltado para o empírico, e a construção de mitologias identitárias como a do bandeirantismo, ambos fenômenos do período, não demorariam a se fazer sentir. Elas podem ser vistas, por exemplo, no debate em torno da origem tapuia ou tupi do componente indígena da população paulista, que teve como contendores, de um lado membros do IHGSP, reivindicadores da tese da origem tupi, e de outro figuras de maior independência intelectual, como Capistrano de Abreu e Theodoro Sampaio. Estes, pela senda da crítica documental, descobriram sua origem tapuia – indesejada porque relacionava diretamente o estoque étnico paulista aos sobreviventes Kaingang, que ainda se achavam em relação de permanente conflito com o movimento colonizador.41 Para John Monteiro, os repetidos episódios envolvendo os índios Kaingang nos sertões do Oeste paulista lançavam uma terrível contradição, que por vezes emergia como ponto cego no discurso hegemônico da identidade tupi. Com efeito, o profundo contraste entre os índios presentes em São Paulo no final do século XIX e a imagem idealizada dos primeiros habitantes do planalto no século XVI às vezes suscitava comentário explícito dos autores, em formulações ambíguas frente à representação identitária predominante.42 Diante de contradições como essas, decorrentes do refinamento metodológico e seus paradoxos, a produção intelectual dos principais autores do período encontrará solução na formulação de um discurso mais nuançado, mais complexo, que achava um modelo em certo viés ambíguo da obra de Euclides da Cunha – a qual, ao mesmo tempo em que mantinha, por exemplo, as idealizações em relação ao papel dos bandeirantes na formação do território nacional, apontava para aspectos predatórios e violentos dessa mesma formação, dentre outros fatores.43 Da mesma forma, foram abertas brechas para que se assumissem caracteristicas anteriormente excessivamente idealizadas ou demonizadas/evitadas das populações indigenas, como a própria antropofagia. Percebe-se, assim, que as próprias propostas do modernismo literário e artistico paulista (que, como se sabe, pouco depois se enraizariam, de forma ampla, multipla e profunda, na vida universitaria e cultural brasileira) podem ser inseridas no quadro geral interpretativo que procuramos aqui traçar.
De modo geral, a situação impunha uma maior maturidade não só dos discursos identitários mas também e sobretudo do discurso da ciência – já que este não podia mais florescer no simples ocultamento de fatores negativos como a pobreza, a violência e a escravidão. Em 1911, Afonso D’Escragnole Taunay colocaria o dilema de forma lúcida naquele contexto de áridas disputas:
“O autor que no decorrer do estudo de um assunto quiser esquivar-se a um terreno em que sinta predileções magoadas, verá em breve surgir a questão desprezada sob o aspecto agressivo e perigoso da argumentação de um adversário de suas idéias e tendências que se documentou para lhe dar batalha, nas condições favoráveis de quem vê o antagonista confessar quanto lhe parece escorregadio o campo da luta. É portanto não somente leal mas sobretudo de excelente política atacar os fatos, de frente desde que o público esteja ao par da questão. (...) O que amigos calarem, e encobrir, adversários hão de proclamar retumbantemente, com tamanho estridor que se farão ouvidos em todos os recintos, o mais violento dos [baldões] atingirá em cheio o historiador: o de narrador parcial e desleal.” (p. 326)
Diante disso, concluía Taunay que hoje, “e cada vez mais”, era a sombra a grande inimiga do historiador. “O melhor modo de fazer a apologética é ainda dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade.” (idem) Assim, em sua História das Bandeiras Paulistas44, procurará ocultar o caráter atroz e violento da conquista e da escravização indígena – ao mesmo tempo polemizando com os autores que haviam condenado o bandeirantismo com razões humanitárias. Embora com viés nitidamente conservador e pecando em itens básicos relativos à manipulação e citação de fontes, Taunay acabará por apontar a relação profunda entre colonização e trabalho compulsório, mostrando as várias formas de escravidão indígena na América espanhola e portuguesa, “tema que vem sendo redescoberto pela historiografia brasileira.”45 Assim, a nova situação permitiu o vislumbramento de numerosos insights. O novo paradigma era também um novo horizonte a partir do qual se lançavam perspectivas válidas sobre o passado.46
Seguindo o momento político de descentralização e disputa, intelectuais ligados a contextos mais estritamente locais tinham independência suficiente para questionar formulações genéricas ou simples erros. Debates como aquele em torno do papel do rio São Francisco na formação da “unidade nacional”, do papel de baianos e pernambucanos na conquista dos sertões, bem como as críticas a formulações claramente laudatórias ou excessivamente irreverentes de autores como Oliveira Lima47, Capistrano de Abreu ou Oliveira Vianna48, desencadearam um processo paulatino de amadurecimento do discurso da ciência, colaborando para aprofundar o seu caráter público e desmistificá-la. Não por acaso, um dos principais desafios metodológicos do período era a combinação entre o enfoque preponderantemente monográfico e seu relacionamento a contextos mais amplos – desenvolvendo-se, de forma particularmente sensível, nas discussões em torno do melhor modo de se escrever uma biografia – esta como meio de acesso a quadros mais abrangentes (uma época, uma sociedade). Mas isso tudo envolvia também uma visão mais aprofundada acerca de características da própria produção do conhecimento, o que acabava por incidir sobre questões de cunho epistemológico. Assim, havia a consciência, por parte de uma parcela expressiva dos principais intelectuais do período, em relação ao fato de que falar em ciência pura e na necessidade de respeito à temporalidade própria da construção científica do conhecimento não implicava contestar a sua aplicabilidade prática:
“Na geologia, tanto como nas outras matérias, a ciência mesma tem de preceder a aplicação da ciência; e se o desenvolvimento dos recursos minerais do país não for baseado no conhecimento científico da geologia, inevitavelmente daí resultarão perda de esforços, perda de dinheiro, e o atraso do progresso nacional, inseparável de métodos fortuitos.”49
O problema do processo de construção de uma relativa independência na produção do conhecimento pode ser acompanhado tanto na fabricação de uma imagem idealizada do intelectual “neutro”, arredio ou independente (dentre outros, Calógeras, Capistrano e também Oswald de Andrade etc.)50 – a qual correspondia a certa realidade haja vista a margem de independência de que agora dispunham os intelectuais em meio às diversas forças em disputa – como em algumas polêmicas ocorridas na imprensa, nas revistas dos Institutos estaduais e em publicações oficiais. Nesse sentido, é interessante o debate que se dá no jornal O Comércio de São Paulo e nas páginas da revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em torno do artigo “A bernarda de Francisco Ignácio”. Nessa polêmica, uma das principais figuras do IHGSP, Antonio de Toledo Piza, rebatia um artigo que contestava a “exposiçao apaixonada de fatos historicos” e o fato de que, em publicações de caráter oficial, fossem introduzidos “escritos de particulares”. Piza respondia que não havia nisso novidade alguma, estando os Anais da Biblioteca Nacional, a Revista do Arquivo Público Mineiro e outras publicações oficiais “recheadas de escritos inteiramente destituídos de caráter oficial”. Em sua justificativa, o autor refletia sobre a natureza do apoio oficial aos estudos e às pesquisas de interesse público (RIHGSP, 7, 1902, pp. 54-55). E, dentro desse contexto, Piza define o espaço das revistas como espaço de debates mais condizente com o caráter público e processual do conhecimento:
“Entende o cidadão E.R. que a própria Revista do Instituto Histórico deveria ser unicamente um ‘repositório de documentos ou de memórias documentadas de fatos que interessam à nossa história’, sem que nas suas páginas encontrem guarida os escritos não documentados e as opiniões dos seus sócios, hauridas nos estudos que tenham feito. É tão inadmissível semelhante teoria, que não é aceita por nenhum dos institutos históricos do meu conhecimento; veja-se a Revista do Instituto Histórico Brasileiro, uma das melhores publicações deste gênero, e nela encontrar-se-ão não somente muitos escritos dos seus sócios, mas até discussões sobre pontos históricos controvertidos, em que cada contendor sustenta as suas opiniões e as suas teorias, segundo o seu modo de apreciar as fontes de informações a que recorreu51.” ( A bernarda de Francisco Ignácio (Chaguinhas), RIHGSP, 7, 1902, p. 55)
Os “pontos históricos controvertidos” a que se refere o autor, bem como os limites e a natureza desse espaço de debates ganham a sua definição pelos argumentos desenvolvidos pelo próprio Piza em seu texto. E é nesse contexto que, mesmo que pudessem estar em contradiçao com uma parte das praticas ou da perspectiva do autor, ganhavam relevo a contestação de fatos sem apoio documental; a ênfase relativa à autenticidade e à “imparcialidade” dos documentos; e certos procedimentos de cotejo e crítica dos testemunhos52.
No contexto em que a visão da importância desses procedimentos passa a ser cada vez mais compartilhada pelos intelectuais, em um processo por vezes doloroso, as lendas e tradições populares podiam ser vistas, como no caso de Theodoro Sampaio, como um território sagrado, só passível de contestação em face de provas irrefutáveis; como objeto da ciência, em estudos de folclore, etnografia ou etnologia; como território de irreverência em relação à “historia oficial” e estoque de uma nova representação sobre a nacionalidade; ou ainda, como no caso de Taunay, como o terreno do irracional, que a ciência despreza, contesta ou corrige. Em todos os casos, o problema estava em produzir um conhecimento que fosse reconhecido como legítimo, capaz de corrigir o que estava “errado” e produzir um consenso possível, ainda que suscetível a contra-argumentações, em torno de ações. Nesse sentido, e valendo-se da autonomia conferida pela fórmula federativa, os Estados e seus órgãos oficiais ou semi-oficiais lançarão no espaço público, em diferentes graus de ruptura com o paradigma anterior e seletiva apropriação de aspectos do novo paradigma epistemológico, vasta documentação a ser compulsada para servir de base para as disputas.
A partir desta consciência moderna das possibilidades do conhecimento muitos intelectuais não hesitam em ferir mitos identitários, mesmo que isso significasse uma postura polêmica em relação a idealizações caras a seus próprios conterrâneos. Foi o caso de Oliveira Lima na ocasião em que foi elevado à condição de principal autoridade das comemorações do centenário do movimento de 1817 em Pernambuco. Apesar do ambiente fortemente nativista, que tinha como objetivo apresentar a precedência do estado nos movimentos pela Independência e pela República, Lima não hesitou em apresentar os limites do movimento e, ainda, sustentar posições mediadas sobre figuras execradas pela República como o Conde de Arcos, sempre apresentado como repressor sanguinário no episódio. Em pleno Teatro Santa Isabel afirmou Lima para uma platéia lotada em um dos eventos comemorativos:
Estaria a capitania que os democratas de 1817 pretenderam subtrair à autoridade real e ao domínio lusitano, em condições de constituir um Estado independente e uma comunidade republicana?
(...) O historiador da revolução, monsenhor Muniz Tavares, cujo trabalho o Instituto Arqueológico acaba de mui oportunamente reeditar, duvida mesmo, apesar dos seus sentimentos acendradamente democráticos, que a experiência fosse feliz, julgando-a antes temporã. Ele não só chama a atenção, com o agudo senso sociológico, para o perigo de transplantarem-se instituições estrangeiras sem levar em conta o espírito local que poderá achar-se ou não em situação capaz de perfilhá-las e rende homenagem insuspeita a bondade do monarca e que viera erguer o seu trono sob o céu dos trópicos, como declarar concordar com o mártir José de Luiz de Mendonça em que mudança instantânea da escravidão à liberdade representa um salto mortal [grifo nosso]53.
Com isso, esses intelectuais se lançaram em um campo de forças essencialmente ambíguo, desencadeando reações que, mesmo a contragosto, só poderiam ter eficácia se se valessem das “melhores armas” da Ciência. Desse ponto de vista, obras como Os sertões e Dom João VI no Brasil podem ser vistas como um campo de tensões cuja teia remete ao contexto e à cadeia de discussões e questões que temos abordado. Assim, lentamente, em processo não isento de mesclas, todos se articularam nesse campo de conflitos, em que polêmicas árduas assumiram caráter público, incidindo sobre a própria definição do público, e se encaminhando no sentido de alcançar um novo paradigma.
As caracteristicas do novo paradigma
Procuremos, agora, analisar mais detidamente as concepções sobre o conhecimento externadas por alguns dos principais intelectuais do período.
Em primeiro lugar, detectamos na produção desses intelectuais a consciência de que o conhecimento de alguma forma lida não só com simplificações, mas principalmente com complexidades. Malgrado predominasse a noção de que a ciência vinha para simplificar o complexo, a estupefação diante da imensidão da natureza e a dificuldade na detecção de regularidades nas relações de causalidade no âmbito dos fatos humanos são alguns temas constantes na obra e na trajetória de Euclides da Cunha, Oliveira Lima, Alfredo D’Escragnole Taunay e Oliveira Vianna – para mencionar apenas alguns nomes. O modo como Oliveira Lima trabalha as mediações entre economia, sociedade, política, cultura e natureza em Dom João VI no Brasil são indicativos desse apanágio da nova sensibilidade. Em Euclides da Cunha, a consciência da complexidade vem num arrebatamento lírico – a que o escritor, diante da impotência da ciência atual para formular uma visão total da Amazônia, reage atribuindo um papel heróico à arte54. Taunay, por sua vez, ao acompanhar os passos da metódica de Langlois e Seignobos em sua Introdução aos estudos históricos, irá longe ao afirmar que “os fatos humanos complexos e variados não podem ser simplificados como expressões matemáticas” (Os princípios da moderna crítica histórica, p. 341-342), e procurará um equilíbrio entre diferentes enfoques debatidos pela historiografia, refletindo sobre os impasses entre o prisma geral e a particularização; o detalhamento das operações de crítica de origem e hermenêutica; etc. Também os cuidados que John Casper Branner toma ao frear generalizações em relação à estrutura dos complexos geológicos brasileiros, em face da escassez de informações, remetem a esse novo realismo epistemológico.55
Oliveira Vianna, em seu discurso de posse da cadeira do baiano Aureliano Leal no IHGB, pronunciado em 1924, refletirá:
“Os fenômenos históricos, senhores, já não se apresentam mais aos olhos dos modernos historiadores com aquela singela composição com que apareciam aos olhos dos velhos historiadores. Para estes, os acontecimentos históricos (...) eram conseqüências da atuação de um número limitado de causas e, às vezes, de uma causa única. Hoje, ao contrário do que presumiam estes espíritos simplistas, os fenômenos históricos se mostram tais como realmente são e como deveriam ser: extremamente complexos, resultantes, que são, da colaboração de uma infinidade de causas, tão variadas e múltiplas que, embora utilizando as luzes de todas as ciências e aparelhada com incomparáveis métodos de pesquisas, a crítica histórica não consegue discernir e isolar senão uma certa parte delas, que nem sempre, aliás, é a maior parte.” (O valor pragmático da história, 1924, p. 319)
O segundo elemento desse novo paradigma do conhecimento está intrinsecamente ligado a esse reconhecimento do conjunto de complexidades com que lidava, em diversos níveis, o conhecimento: trata-se da consciência de que o conhecimento tem caráter limitado e, necessariamente, especializado. Nessa especialização, os objetos precisam ser drasticamente reduzidos – e, mesmo com essa redução, sua apreensão ultrapassa a vida de um único pesquisador e mesmo a vida de um conjunto de pesquisadores – embora não a de todos os conjuntos possíveis de pesquisadores futuros.
Taunay, por exemplo, observava que a ciência histórica avançara tanto que ninguém poderia, na “atualidade”, descrever uma época, fazendo trabalho original, sem se dar a um trabalho imenso de pesquisa e de cotejo. Com isso, os campos a revolver haviam se restringido “singularmente”: algumas décadas encaradas “sob o prisma moderno” exigiam labor muito mais intenso do que outrora essas “catapúlticas obras que se desfazem no silêncio das bibliotecas” (Os princípios da moderna crítica histórica, p. 327). Oliveira Vianna, embora mantivesse uma perspectiva normativa e nomológica, considerava fundamental o viés monográfico no estágio “atual” da ciência no Brasil (op.cit.). Na carta que escreveu, quase na ocasião de sua posse no IHGB, para Alfredo de Mesquita Filho, clamou por mais estudos monográficos.56 Ao cogitar sobre a organização de um Instituto Nacional de Investigações Sociológicas, pensou, dentre outros fatores, provavelmente no amparo às pesquisas de caráter monográfico que recebia de todo o país.57
A noção de que as operações que objetivam o conhecimento, na forma “moderna” (assentadas sobre trabalho sistemático e elaboração narrativa), produzem uma visão particular sobre um tema limitado e mesmo assim válido – e monografias claras e abrangentes são acolhidas como verdadeiras façanhas – , aparece também na visão que Oliveira Lima lançava sobre uma exposição de quadros em 1912. Em seu elogio do pintor pernambucano Telles Júnior, o historiador fazia referência a características de uma representação artística realista que se aproximavam das questões epistemológicas que marcavam e ao mesmo tempo eram marcadas pelo contexto institucional e político de então:
“A quem do sertão, o céu pernambucano só é eternamente azul em poesia: na realidade não oferece o tom uno e metálico do céu do Egito. Escondem-no com freqüência nuvens cinzentas e grossas de chuvas que os fogos do sol poente tingem de rubro, dando-lhes aspectos de gigantesco brazido, e através dos quais o sol Zenith se filtra numa claridade que não chega a ser turva mas que é raramente deslumbrante, diluindo-a, a humidade do ar. Quando nuvens dessas não interceptam os raios dardejantes do sol, outras há, muito altas, muito leves, como que desfiadas, que põem manchas mascaradas no azul, geralmente desmaiado do horizonte.
É assim que se esforça para tratar, e logra reproduzir o céu desta limitada região brasileira, o pincel do paisagista que ela há encontrado mais fiel e mais harmônico com a sua própria harmonia, que a arte é impotente para traduzir na plenitude de sua perfeição, mas de que consegue transmitir a sensação mais ou menos verdadeira, ou antes a sensação pessoal58.
No texto, a representação mais realista da natureza dá-se no contexto mesmo de uma maior delimitação do objeto (“o céu desta limitada região brasileira”). A arte (assim como a ciência) é capaz de produzir uma representação tanto mais harmônica com a harmonia da própria natureza quanto possível. No entanto, é impotente para traduzir a plenitude de sua perfeição – embora transmita uma sensação “mais ou menos verdadeira, ou antes a sensação pessoal”. Note-se que a sensação pessoal está em comunhão com o sentimento de pertencimento ao torrão representado, assim como o conhecimento local deve também comunicar este elo de pertencimento coroado pelo sentimento.
Em Euclides da Cunha, a limitação do conhecimento no sentido da restrição dos objetos aparece com clareza em seus escritos sobre a Amazônia:
“Amazônia, ainda sob o aspecto estritamente físico, conhecemo-la aos fragmentos. Mais de um século de perseverantes pesquisas, e uma literatura inestimável, de numerosas monografias, mostram-no-la sob incontáveis aspectos parcelados. O espírito humano, deparando o maior dos problemas fisiográficos, e versando-o, tem-se atido a um processo obrigatoriamente analítico, que se, por um lado, é o único apto a facultar elementos seguros determinantes de uma síntese ulterior, por outro, impossibilita o descortino do conjunto.”
Segundo Euclides, o naturalista Walter Bates assistira mais de um decênio na Amazônia, onde realizou descobertas que estearam o evolucionismo nascente, “surpreendendo” os Institutos da Europa. Todavia, durante aquele período, não saíra da estreita listra litorânea desatada entre Belém e Teffé. Ao cabo de sua “fecunda empresa”, Bates poderia garantir que não esgotara sequer o recanto apertadíssimo em que se acolhera. Euclides da Cunha concluía: “Não vira a Amazônia. Daí o ter visto mais que os seus predecessores.” Assim, o conhecimento, mesmo restrito, permanece como conhecimento válido. É, com efeito, a própria validade do conhecimento fragmentário que forma a base das antíteses com que opera Euclides no texto: diante dos fragmentos, dos traços “vigorosos e nítidos, mas largamente desunidos”, temos uma enormidade que só se pode medir quando repartida; uma amplitude que tem de ser diminuída para que seja avaliada; e uma grandeza que só pode ser vista apequenando-se nos microscópios. Nessas antíteses, o que opera o pólo oposto é sempre a ciência, que acaba por dosar um infinito “a pouco e pouco, lento e lento, indefinidamente, torturantemente.”
É importante retermos essa imagem do infinito dosado a pouco e pouco, de forma lenta, indefinida, difícil. Essa consciência em relação à dificuldade e à validade de um processo que lida com complexidades e precisa restringir-se para produzir resultados parciais é repleta de consequências. Em primeiro lugar, devemos reiterar que essa consciência, atenta a resultados práticos, evitava, a todo custo, uma postura cética. Isto explica porque características do paradigma anterior são mantidas: vários autores cultivarão, por exemplo, a crença de que o “conhecimento total” seria um dia alcançado. Esse dia estava, porém, extremamente distante, como se vê nas formulações, dentre outros, de Euclides da Cunha:
“Mas ao mesmo tempo, convém-se em que esta marcha sobremaneira analítica, e de longo discurso remorado é fatal. A inteligência humana não suportaria, de improviso, o peso daquela realidade portentosa. Terá de crescer com ela, adaptando-se-lhe, para dominá-la. (...)
É a guerra de mil anos contra o desconhecido. O triunfo virá ao fim de trabalhos incalculáveis, em futuro remotíssimo, ao arrancarem-se os derradeiros véus da paragem maravilhosa, onde hoje se nos esvaem os olhos deslumbrados e vazios.
Mas então não haverá segredos na própria natureza. A definição dos últimos aspectos da Amazônia será o fecho de toda a História Natural...”59
De uma forma geral, se as grandes filosofias da história caem em certo ostracismo, o enfoque com ênfase na totalidade, embora perca terreno, não é completamente rejeitado. Assim, a momentânea impossibilidade da totalidade é aceita, mas o enfoque monográfico deve ser combinado a uma atenção às leis ou, pelo menos, fatores de ordem mais “geral”. É desse ponto de vista que se entendem os debates sobre a escrita biográfica, que ressaltam, a partir de diferentes perspectivas, a necessidade de refinar o método de estudo da sociedade ou de toda uma época através do acompanhamento de uma trajetória individual. Nesse sentido, os próprios termos do concurso que o IHGB abriu em virtude da comemoração da vinda de D. João VI, e que previa a elaboração de uma biografia de D. João VI, abria perspectivas para o conhecimento do país. Lembremos a carta que Euclides da Cunha, que parece ter se fascinado com a idéia, escreveu em 1904 a Max Fleiuss, quando ainda cogitava participar do concurso:
(...) Um velho paulista – homem dos bons tempos – cedeu-me a sua coleção completa da Revista do Instituto – e ali tenho colhido muitos materiais para fixar a fisionomia da nossa gente no princípio do século passado. Sem a conhecer bem, jamais poderei fixar os traços essenciais do nosso velho Caxias.
A sua carta perturbou-me. Realmente, um estudo da época de d. João VI é tentador. Além disto, para mim seria o melhor prólogo à grande vida do nosso grande e tranqüilo herói. É bem possível, portanto, que transfira para mais tarde o desempenhar-me do compromisso que tomei, para concorrer ao certame que se abrirá. Mas que prazo tem para isto ? Para mim o grande valor da tese a desenvolver, está menos na figura de d. João VI que na alta significação da sua época. Quem explanar com segurança fará simplesmente uma coisa extraordinária As Origens do Brasil Contemporâneo. 60
Além disso, o principal “orientador” dos trabalhos historiográficos do período, Capistrano de Abreu, faria, em 1900, sugestões a Oliveira Lima para a elaboração do capítulo III de Dom João VI no Brasil, “O que era o resto do Brasil”:
Volta a seus velhos amores de D. João VI ! Eu gosto dele, ridículo ou não, se para Portugal foi fatal, para o Brasil foi o verdadeiro fundador do império e sobretudo da União. Quando chegar à época em que ele veio dar ao Brasil, leia de lápis em punho todos os viajantes, apresente um quadro largo do estado do Brasil, e ver-se-á quanto é falso e acanhado tudo quanto até agora se tem feito61” (Correspondência de Capistrano de Abreu, vol. II)
Entretanto, os ideais de construção de um saber total, tal como apareciam em teorias vindas dos séculos XVIII e XIX, estavam cada vez mais dissociados da prática concreta tanto da pesquisa como da elaboração geral do conhecimento. O conhecimento possível na atualidade era o conhecimento monográfico, e o século XX era o “século dos especialistas”, ainda que um tipo particular de especialistas: aqueles que conseguiam interpretar e relacionar temas particulares a fatos gerais, malgrado em âmbito limitado, ou ainda vincular assuntos particulares a ações com significado claramente definível em relação a linhas gerais de pensamento e ação. No contexto de especialização e “dispersão da matéria histórica”, Oliveira Lima argumentaria que era preciso conciliar ciência e arte, história e literatura, ciência e “crítica”, ciência e interpretação, a fim de “comunicar vibração às turbas desaparecidas”, de reconstituir, com um aglomerado de pormenores, um caráter humano, ou dele deduzir uma “lei da evolução”. Esta elaboração demandava, mais do que uma faculdade psicológica aguçada por sólida e moderna preparação científica, a ingente obra crítica com que escritores como Michelet e Taine haviam contado a ampará-los:
Remontando mesmo mais longe, dentro do século findo, do que a Michelet e Taine, Thierry escudara-se com os pacientes trabalhos dos Beneditinos e com os resultados das pesquisas das Academias, e Alexandre Herculano, ainda que abrangendo a sua produção um longo esmiuçar de monumentos históricos, sentia-se arrimado aos faustosos mas excelentes frutos da atividade da Academia de História e da Academia de Ciências62.
Completava Oliveira Lima que, no Brasil, apenas “hoje”, graças justamente ao labor de Varnhagen (descrito como um ardente investigador, infatigável ressuscitador de crônicas esquecidas nas bibliotecas e de documentos soterrados nos arquivos, um valioso corretor de falsidades e ilustrado colecionador de fatos), a estudos especiais como os de Norberto de Sousa sobre a conjuração mineira, do Dr. José Higino sobre o período do domínio holandês no Norte e do Sr. Lúcio de Azevedo sobre os jesuítas no Grão-Pará, e
ao impulso prestado às monografias, dissertações e comparações de documentos pelas associações de que são modelos o Instituto Histórico do Rio de Janeiro e, em menor escala, os Institutos de Pernambuco, Ceará, Bahia, São Paulo, etc., poderá um sincretizador tentar firmar numa vista de conjunto a sua concepção particular do desenvolvimento pátrio63
A passagem é importante porque coloca o IHGB acima dos institutos estaduais, e dá ao historiador - que aparece como figura independente, que produz uma concepção “particular”, mas válida, do desenvolvimento pátrio, tendo assim a função de formular uma visão geral (ou tão geral quanto possível) com base nesse labor prévio – concebido como um labor coletivo. Assim, na virada do século XIX para o século XX (e ao avançarmos neste, cada vez mais), era fácil chegar à conclusão de que o processo complexo e penoso do conhecimento precisaria de maior e mais diversificado apoio institucional para ser levado adiante (nesse sentido, é interessante lançar atenção à organização da pesquisa tanto no âmbito das instituições que as amparavam, como no dos pesquisadores individuais em seus arquivos pessoais). Mais do que isso, era preciso que esse apoio institucional tivesse um centro articulador. Com efeito, a maior consciência em relação, de um lado, à complexidade e ao caráter (momentaneamente) parcial do conhecimento e, de outro lado, aos riscos inerentes ao contexto de multiplicação dos lugares institucionais de produção do saber e de seus conflitos reciprocos, reforçava a consciência em relação à necessidade de articulação institucional – o que resultou em uma frente de atuação intensa por parte dos próceres da República.
Nesse sentido, também Oliveira Vianna verá no IHGB essa função articuladora – a qual não estava isenta de desdobramentos políticos tendo-se em vista tanto seus conhecidos posicionamentos justificadores de um poder central forte, inspirado no papel que jogara o Estado Imperial como força social plasmadora frente à nossa “dispersão”, como sua posterior relação próxima com o Estado Novo no âmbito do alento conferido por Getúlio Vargas ao IHGB64:
Há, certamente, outras instituições sábias no país; mas esta não só e a mais venerável e a mais austera, como mesmo a mais compreensiva e menos especializada, pois o estudo da História, abrangendo todas as especialidades, pede a colaboração de todas as ciências: as ciências da natureza, as ciências do homem, as ciências da sociedade.”(...) as grandes sínteses históricas ultrapassam modernamente as possibilidades de um só indivíduo e só as grandes associações culturais serão capazes de realizá-las65
Paradoxos, limites e início de uma superação
Tais palavras de Oliveira Vianna já repercutem, porém, em um contexto de crise da Primeira República. Ora, o IHGB era uma das instituições em que essa República tentara projetar um espaço de legitimidade frente às disputas inter-estaduais e inter-regionais (e também frente aos crescentes conflitos sociais). Vimos, aliás, que esse espaço era também necessário do ponto de vista dos próprios contendores. Assim, quando estes passaram a não mais reconhecer as instituições republicanas como legítimas – em virtude de fatores como o acirramento das disparidades regionais, o agravamento da “questão social” e outros desequilibrios nos jogos de poder – , surgiu um espaço tanto para a idealização das instituições do Império, conjugada, porém, à consciência de que elas não poderiam voltar (o que culminaria em um fortalecimento das posições que defendiam a implantação de um Estado de poder discricionário)66, como para a visão da necessidade de um novo contexto institucional para a produção do saber. Um novo contexto em que a produção do conhecimento ficasse relativamente mais distante das instituições politicas (mas não apenas isso, já que havia sido a complexidade de uma configuração multipla, envolvendo todo o arcabouço politico-juridico e cultural da Primeira República, que havia possibilitado a evolução do conhecimento e de seu próprio paradigma fora de um contexto universitario). Com o desabamento daquela configuração muito particular da Primeira República, tornou-se inevitavel que os agentes politicos e sociais que buscavam renovação se voltassem para a alternativa da criação, afinal, no Brasil, de um enquadramento universitario.
É preciso salientar, além disso, que a visão do caráter publico e institucional de que deveria se revestir o conhecimento não encontrava um contexto ideal na configuração político-institucional da Primeira República, e, por outro lado, não era o único desdobramento do caráter necessariamente lento e difícil do modo como se via cada vez mais o processo de construção do conhecimento. A percepção desse caráter era importante também porque tinha uma outra faceta prática, com desdobramentos políticos, e que operava em sentido inverso ao da modernização do paradigma do conhecimento: um resultado não é facilmente obtido, mas também não é facilmente contestado. Nesse sentido, vemos que as discussões que se processam nas revistas dos Institutos regionais ou nos trabalhos realizados sob a sua tutela, tomam um caráter de discussão sobre as regras do jogo e de revalidação de sua legitimidade. O problema era que, em um contexto de disputas, o campo de legitimidade incluía uma margem para manipulação: se um determinado grupo detém o controle sobre os documentos de sua região, pode manipulá-los e interpretá-los à sua maneira e segundo seus interesses – mantendo, é claro, certos princípios. Mesmo que o acesso aos documentos seja relativamente livre, o ônus da prova terá sempre de satisfazer as enormes exigências de uma ciência que se pretende válida para aliados e adversários.
Nesse sentido, é interessante evocar algumas das dificuldades que Thiers Fleming apontava, em 1918, à solução dos conflitos nas regiões de territórios litigiosos ou contestados nas fronteiras interestaduais. Embora vazasse uma perspectiva elitista, destacando, em primeiro lugar, o obstáculo decorrente do “espírito regionalista” de populações “sem instrução e sem educação cívica”, Fleming mostrava com clareza, nas outras dificuldades que apontava, o quanto a opacidade no modo de funcionamento da esfera pública e da produção do conhecimento eram fatores que encontravam explicação nos não raro poderosos interesses contrariados. Dentre elas, destacava a oposição protelatória de certos advogados e políticos a bem de seus interesses particulares; o horror das responsabilidades por parte da maioria dos dirigentes; os obstáculos criados por muitos habitantes das zonas litigiosas que aproveitam a situação anômala para não pagar impostos e fazer “justiça” à sua vontade; a falta de medidas dependentes do Poder Legislativo; a falta de rápido andamento das causas que pendem do Poder Judiciário; e a falta de ação do Poder Executivo dos Estados.67
É impossível não pensar nos possíveis vínculos dessas questões com outras como as dificuldades que Francisco Antonio de Carvalho Lima Jr. encontrou ao tentar consultar documentos relativos aos limites da Bahia com Sergipe nos arquivos “públicos” baianos68, e das resistências que o Barão de Studart impunha ao acesso aos preciosos documentos relativos à história do Ceará, que reunia (vide sua correspondência com Capistrano de Abreu). A propósito, John Casper Branner observava que muitas dúvidas que cercavam o conhecimento da geologia do Brasil vinham não da falta de dados, mas da falta de conhecimento dos dados e de sua coordenação69. Além da falta de serviços oficiais – com a exceção dos de São Paulo, Minas Gerais e do federal (criado apenas em 1907), havia poucas repartições às quais os geólogos, os engenheiros e o público podiam se dirigir à procura de informação a respeito da geologia do país –, outras circunstâncias prejudicavam a circulação e a própria dinâmica da produção do conhecimento no Brasil, como o fato de o país ser escassamente povoado, e de ter grandes áreas em que as estradas de ferro não penetraram, além de poucas boas estradas de rodagem. Com isso, Branner lançava atenção à importância da divulgação e publicização no processo de construção do conhecimento, não acreditando que a imprensa e outros órgãos semi-oficiais, como os Institutos Históricos e Geográficos, fossem suficientes para facilitar a produção do conhecimento e sua articulação. Havia, assim, uma deficiência de ordem institucional que tornava dispersa e difícil a publicização e a circulação do conhecimento – e, portanto, também a sua verificação. Não surpreende, assim, que Branner conferisse grande relevância a seus informantes brasileiros e a todo o aparato institucional norte-americano que o amparava.
O processo de modernização do paradigma do conhecimento na Primeira República foi repleto de paradoxos. Conjugando-se à sua imperfeição, desencadeavam-se disputas que em última instância seriam encaminhadas ao Congresso Nacional ou o Superior Tribunal Federal. Se a dinâmica dos conflitos tornava necessária uma esfera superior reconhecidamente legítima, em que o verdadeiro e o falso pudessem ser discernidos e definidos em face das provas, a esfera da produção do conhecimento era fundamental para construir e fundamentar argumentos. Tornava-se urgente, porém, produzir um conhecimento que estivesse à altura dessa instância julgadora – a qual, por sua vez, adotava o discurso republicano e liberal e se propunha como instância modernizadora, ao lado da ciência e da técnica. Assim, a assimilação do modo moderno de produzir ciência e técnica foi imprescindível à sobrevivência das oligarquias, que dosaram, porém, o seu caráter público e coletivo.
É claro que o problema pode ser encarado também do ponto de vista de como essa modernização fazia parte de uma ideologia que justificava argumentos mesmo em caso de derrota, quando a questão tinha desdobramentos econômicos, sociais e políticos que incidiam não apenas sobre as disputas interestaduais, mas sobre a dinâmica dos conflitos internos ao próprio estado. É talvez dessa perspectiva que possamos entender um fator importante para a compreensão da incompletude do processo de modernização – que bloqueava, por exemplo, a realização plena do caráter público do conhecimento – o que se reflete notoriamente no caso do acesso às fontes do conhecimento, que se juntava a problemas como o das “coimas de egoísmo irredutível e de baralhamento intencional, peculiares a tais controvérsias.”70 Assim, a dinâmica do conhecimento faz parte da lógica de reprodução, com maior ou menor perfeição, da dominação – a qual precisava, todavia, como todos explicitamente reconheciam, fazer concessões. Nesse sentido, um dos grandes temas dos estudos geográficos e históricos do momento foi o da ascendência de um centro irradiador civilizado para o interior71. As elites ilustradas precisavam estender seu raio de influência sobre o interior do Estado, abrangendo relações de cunho econômico (associação comercial, estradas de ferro, açudes, impostos); e religioso cultural (escolas; ensino secundário concentrado na Capital; ascendência sobre paróquias e outras organizações de cunho religioso, etc); dentre outras, reveladoras da estrutura marcada pelas brigas e pactos intra-oligárquicos e o poder dos “coronéis”. Nesse contexto, procuraram todos os meios possíveis, procurando intervir, por exemplo, no campo complexo da própria literatura de cordel – um dos fortes veiculos de irradiação do conhecimento/poder para a população não letrada ou semi-letrada no “Norte”/ “nordeste”.72 Era este, portanto, também um campo complexo de disputas e conflitos, já que os folhetos de cordel também veiculavam e expressavam, tal como o campo de performance (gestual, ritual etc.) da vida cotidiana e da oralidade, de modo não linear, heterogêneo e muitas vezes ambíguo, diversos tipos de hierarquias e contestações à ordem dominante.
Em síntese, a crise da Primeira República pode ser vista também como a crise do modo como a produção do conhecimento se relaciona às estruturas políticas e sociais. Em face do acirramento das desigualdades e de complexificação da questão social, para os quais concorreram muitos fatores, aquela articulação já não era mais possível. Nesse contexto, o paradigma do conhecimento entra em crise, e precisa se renovar não tanto em seus pressupostos – que poderão ser em parte semelhantes aos anteriores – mas em seu próprio contexto institucional e modo de articulação com o poder. Nascem, daí, as condições para que o antigo projeto universitário encarne as projeções de uma esfera mais universal e moderna de produção do conhecimento – a qual, no caso de São Paulo, começará pela composição de uma equipe de professores recrutados junto aos grandes centros da produção científica mundial. É aí que começa, portanto, o percurso “antropófago” que, associado a sucessivas ondas de transformação social, econômica, cultural e política (encaminhadas nos diversos sentidos em que sera' encarada, ao longo das décadas, a “modernização” e sua discussão), e apoiado, de um lado, no saber técnico-cientifico (ciências naturais e aplicadas), e, de outro, em um saber hiper-critico e especializado da sociedade (humanidades), acabará por dar ao Brasil algumas das principais instituições universitárias da América Latina na atualidade.