O projeto de fundação de uma literatura nacional no Brasil foi formulado a partir da década de 1830 por um punhado de jovens escritores, do Rio e de Paris. A trajetória intelectual coletiva desses jovens inscreve-se plenamente no clima contrarrevolucionário que prevalecia na Europa, desde 1815 e o Congresso de Viena. Assim, as chamadas “Letras Pátrias” - letras em que o patriotismo é o valor primordial - são definidas, em certa medida, como uma reação às ideias herdadas do Iluminismo, acusadas de terem mergulhado a Europa no horror da revolução e da guerra civil1. Os escritores brasileiros reivindicaram seu apego à religião católica e elogiaram as virtudes da filosofia eclética, em plena expansão na França, na medida em que rompeu com o sensualismo e o materialismo atribuídos ao Iluminismo. Não se tratava de recusar o Iluminismo como um todo, principalmente em sua versão francesa, mas de inserir a nova cultura nacional no Brasil em uma filosofia da história compatível tanto com a exigência de modernidade, da qual o império constitucional brasileiro desejava ser uma encarnação, quanto com o espírito contrarrevolucionário ao qual esses escritores do Brasil império, muitas vezes descritos como "românticos", haviam sido formados em seus anos de estudo.
Neste trabalho, proponho enfatizar os processos de recepção e adaptação das ideias herdadas do Iluminismo que foram mobilizadas na formação das Letras Pátrias, durante as primeiras décadas da fundação deste movimento intelectual e literário, entre os anos 1830 e 1850. Este período de gestação foi marcado por uma intensa circulação cultural entre o Brasil e a Europa, particularmente a França. Para entender o papel desempenhado pela contrarrevolução no projeto de fundação de uma cultura nacional no Brasil, é essencial adotar as ferramentas de análise das circulações culturais transnacionais, e em particular o conceito de transferência cultural.
De fato, as formas de interculturalidade operam na definição de uma cultura nacional, como Michel Espagne e Anne-Marie Thiesse estabeleceram em seus trabalhos respectivos2. Para ir além da perspectiva muitas vezes restringente da "influência" de um modelo dominante, a circulação de mercadorias, pessoas e ideias entre diferentes espaços deve ser entendida em sua reciprocidade, além do fato de implicar profundas modificações no processo de recepção-adaptação, que a análise deve levar em conta:
As relações entre culturas [...] parecem ser geralmente estabelecidas em níveis heterogêneos, como se cada livro e cada teoria tivessem uma função radicalmente diferente daquela que lhe foi atribuída em seu contexto original. A noção de transferência cultural implica assim a ligação de dois sistemas autônomos e assimétricos3.
A transferência é determinada sobretudo pela conjuntura do contexto de recepção, que define o que pode ser importado ou o que, já presente em uma memória nacional latente, deve ser reativado para servir nos debates contemporâneos4. É, portanto, à luz desta exigência que devemos entender por que e em que medida as Letras Pátrias se construíram através de um constante diálogo com os "romantismos" europeus, um diálogo marcado às vezes pela incompreensão, distanciamento e até mesmo rejeição. É assim que poderemos apreender melhor a natureza das ligações entre as Letras Pátrias e o pensamento contrarrevolucionário.
A formação das Letras Pátrias é o resultado de um longo e complexo processo genético, em conexão constante com os romantismos europeus. Embora a estadia na Europa de muitos escritores esteja no centro do processo de formação da literatura nacional, o termo "Romantismo" não foi transferido para o Brasil5. A definição do "grande monumento nacional" brasileiro (assim José de Alencar define a literatura nacional) é, portanto, inseparável de uma reflexão sobre a natureza das trocas interculturais que ligaram o Brasil à Europa durante estas décadas de formação6. E o prisma do Iluminismo e da contrarrevolução constitui uma porta de entrada muito pertinente para a compreensão destes fenômenos.
A estadia em Paris nos anos 30 e a gênese das Letras Pátrias
A história literária, que começa a ser definida logo no século XIX, faz do ano de 1836 o ponto de partida da longa marcha em direção à emancipação cultural e literária do Brasil7. Isto se justifica por um duplo evento editorial, parisiense e brasileiro: por um lado, a publicação de uma nova revista literária; por outro lado, a publicação da segunda coletânea de poemas de Gonçalves de Magalhães, intitulada Suspiros poéticos e Saudades.
No Brasil império, os anos da Regência foram um período de grande instabilidade política. Desde o exílio de seu pai, Pedro I, que havia retornado ao reino de Portugal, o príncipe herdeiro, ainda muito jovem para governar, foi assistido por regentes que lutaram para tentar estabelecer a legitimidade do poder central dentro das fronteiras do império. A década de 30 também corresponde aos anos formativos de um punhado de jovens estudiosos que estabeleceram os princípios de uma "reforma" literária que poderia contribuir para a consolidação de um império ainda frágil. Gonçalves de Magalhães tinha vinte anos de idade quando Pedro I voltou para Portugal. Sendo estudante, fez amizade com um jovem pintor, cinco anos mais velho, que havia deixado a província do Rio Grande do Sul para se estabelecer no Rio de Janeiro em 1827, Manuel de Araújo Porto Alegre. Ambos compartilharam a mesma paixão pelos estudos, o que os levou a seguir cursos de artes plásticas sob a direção de Jean-Baptiste Debret, assim como os cursos de filosofia que Monte Alverne ministrava no seminário de São José8. Quando Debret decidiu retornar à França em 1830, Araújo Porto Alegre foi autorizado a acompanhá-lo na viagem. Gonçalves de Magalhães e Francisco de Sales Torres Homem, que havia sido seu colega na Faculdade de Medicina, também foram para Paris em julho de 1833.
A estadia em Paris é vista aqui, não sem razão, como um passo importante na concepção do projeto de fundação das Letras Pátrias. Araújo Porto Alegre, Gonçalves de Magalhães e Torres Homem permaneceram lá até 1837. A cidade de Paris nos anos 1830 vê o florescimento deste romantismo liberal que foi bem recebido na América Latina, alimentado por uma filosofia eclética, numa época em que era preciso encontrar um equilíbrio entre a manutenção de uma estrutura socioeconômica colonial e novas práticas políticas e culturais, correspondentes à nova exigência do liberalismo e da "modernidade9".
Em 1832, Araújo Porto Alegre encontrou-se em Paris com Almeida Garrett, um dos fundadores do Romantismo português. Em 1855, o brasileiro fez o elogio funerário do autor português perante os membros do Instituto de História e Geografia do Brasil (IHGB). Nele menciona dois trabalhos iniciais, Camões (1825) e Dona Branca (1826), que o influenciaram em seus anos de formação:
Na primeira reslumbra o patriotismo, a missão do poeta elevado a generoso para com a sua nação; a livre mais sensata inspiração guiando a sociedade, e com ela a religião severa, santa e desinteressada. (…) estes dois poemas, filhos da escola byroniana, abateram a poesia idolatra, a musa plástica e anacrônica do paganismo, e abriram à juventude portuguesa essa nova época literária que tanta honra lhe faz10.
O discurso lembra algumas das principais ideias que levaram à criação das Letras Pátrias: o patriotismo, a liberdade do gênio poético e um profundo apego à religião cristã. O prefácio da primeira edição de Camões é, de fato, um verdadeiro manifesto a favor da inovação em matéria literária. Assim, o poeta se emancipa das regras do drama clássico e reivindica sua liberdade criativa: “Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma11)”.
Em Paris, o pequeno grupo de principiantes literários conseguiu integrar-se à vida intelectual parisiense, particularmente através do novo Institut historique de Paris, graças ao patrocínio de um de seus fundadores, Eugène de Monglave, que havia mantido o interesse pelo país e sua cultura desde sua estadia no Brasil12. O instituto foi fundado em 1834 e contava com quase cinquenta brasileiros recrutados durante os anos de 1830-1840 – a maior delegação estrangeira da época13. Ofereceu aos jovens estudantes a oportunidade de apresentar várias dissertações sobre o estado atual do Brasil. Entretanto, isto pressupunha elaborar um discurso coerente, alimentado por leituras, discussões em cafés e salões, mas também por aulas assistidas na Sorbonne, sobre a questão do estado da filosofia, das artes ou da literatura no novo império. Essas diversas apresentações alimentaram alguns meses depois, os dois números da revista Nitheroy, publicada em Paris, e considerada um marco fundador para as Letras Pátrias.
A revista trata de uma variedade de assuntos, que vão da literatura às artes e ciências, assim como economia e política. Ao fazer isso, reúne cultura e política em torno de uma causa comum, a nação:
As ciências, a Literatura Nacional e as Artes que vivificam a inteligência, animam a indústria, e enchem de glória e de orgulho os povos, que as cultivam, não serão de nenhum modo negligenciadas. E destarte, desenvolvendo-se o amor e a simpatia geral para tudo que é justo, santo, belo e útil, veremos a pátria marchar na estrada luminosa da civilização, e tocar ao ponto de grandeza, que a Providência lhe destina14.
O discurso ao leitor pode ser lido como o manifesto fundador das Letras Pátrias. Revista generalista e "brasileira", Nitheroy consagra um lugar de destaque às belas-letras. Em particular, a resenha por Torres Homem de Suspiros Poéticos e Saudades é o primeiro passo de uma estratégia coletiva e de comum acordo para fazer da obra a primeira pedra do panteão das Letras Pátrias. Magalhães é apresentado como o arauto de uma “nova escola”, “ardente de futuro, e de glória, com a cabeça repleta de harmonias, e o coração pesado de nobres emoções15”.
A capa da coletânea em questão reproduz uma litografia de P. Langlois que representa uma lápide sobre a qual uma cruz de pedra se levanta, um monumento cristão erguido no meio de uma natureza exuberante.
A escolha da ilustração, que faz eco à "Terra da Santa Cruz", é perfeitamente coerente com o projeto do poeta, tal como é exposto no aviso que abre a coletânea, onde o autor revela as raízes cristãs de sua poesia:
O Poeta sem Religião, e sem Moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos procuram aí aplacar a sede.
Ora nossa Religião, e nossa Moral, é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa, e a América: e só este balsamo sagrado devem verter os cânticos dos Poetas Brasileiros16.
Assim, a obra inaugural das Letras Pátrias reivindica que o catolicismo é constitutivo da identidade brasileira (e, mais amplamente, ocidental) e que é a religião que liga a nação ao "mundo moderno", do qual a Europa é o berço.
Manifestos por uma poética espiritualista
Entretanto, este ato de fé está explicitamente inscrito, como eu gostaria de mostrar aqui, no movimento de renascimento do sentimento religioso na Europa, após a Revolução Francesa. No ensaio Génie du christianisme (Gênio do Cristianismo, 1802), Chateaubriand afirmou que o continente tinha entrado em uma "nova era do século literário", reatando com o legado católico dos séculos passados. A obra, que visa "restaurar a influência salutar da religião", lembra o quanto esta inspirou obras-primas nas belas-letras17. Para Chateaubriand, "a religião é o motivo mais poderoso para o amor da pátria; escritores piedosos sempre espalharam este nobre sentimento em seus escritos". A segunda e terceira parte da obra elogiam a "poética do cristianismo" e condenam o poeta incrédulo, do qual Voltaire seria a encarnação exemplar:
Um escritor que se recusa a acreditar em um Deus que é o autor do universo e o juiz dos homens cujas almas imortais ele fez, primeiro bane o infinito de suas obras. Ele encerra seu pensamento em um círculo de lama, do qual ele não pode mais escapar. Ele não vê nada de nobre na natureza; tudo é feito por meios impuros de corrupção e regeneração18.
Chateaubriand justifica a inferioridade do "século literário" que chega ao fim por sua "irreligião". A salvação das letras pressupõe, portanto, que elas sejam regeneradas pela fé cuja essência tem inspirado tantos grandes escritores. O sentimento religioso também alimenta o patriotismo. E o autor propõe a seguinte equação: religião + louvor à natureza = patriotismo :
Se o homem religioso ama a sua pátria, é porque seu espírito é simples e os sentimentos naturais que nos prendem aos campos de nossos antepassados são como o fundo e o hábito de seu coração. Ele dá a mão a seus pais e filhos; ele é plantado no solo nativo, como o carvalho que vê suas velhas raízes afundando na terra abaixo dele e brotos nascentes em seu cume olhando para o céu19.
Encarnação do pensamento contrarrevolucionário na França, Chateaubriand foi um autor lido e apreciado pelos jovens escritores brasileiros da década de 1830, especialmente aqueles que, como Gonçalves de Magalhães, estavam hospedados em Paris na época. Assim, na coletânea de 1836, encontramos as ideias do Gênio do Cristianismo adaptadas ao Brasil: o patriotismo é baseado na religião para melhor exaltar a natureza e a nação.
Em um artigo intitulado “Considerações gerais sobre a literatura brasileira”, Joaquim Norberto de Sousa Silva elogia a obra de Magalhães que “dando o sinal para a reforma se constituiu chefe de uma revolução toda literária20”. A ideia de revolução sublinha a ruptura temporal e paradigmática que a literatura experimentou no Brasil na década de 1830. O ideal reformista, cuja genealogia remonta sem dúvida à filosofia do Iluminismo, é reinvestido pelos idealistas das Letras Pátrias em nome do progresso e da civilização. Ferdinand Wolf, um dos primeiros historiadores da literatura brasileira, consagra uma longa resenha no Le Brésil littéraire (1863) à coletânea de Gonçalves de Magalhães, apresentada como o monumento fundador da literatura nacional:
Um verdadeiro entusiasmo pela revelação divina do cristianismo e pelo bem da pátria, um sentimento muito vivo pelas belezas da natureza, um exame cuidadoso de sua semelhança com a vida humana, meditações morais e religiosas inspiraram de fato esses "Suspiros poéticos e Saudades"; nada frívolo, nenhuma discordância perturba sua harmonia e o tom elegante com que transbordam; o próprio amor só raramente encontra lugar neles, e sempre de uma maneira séria e ideal21.
Francisco de Sales Torres Homem, que escreveu uma crítica muito positiva da coletânea na revista Nitheroy, também foi o autor do manifesto da nova revista literária Minerva Brasiliense, em 1843. Este artigo, intitulado "Progresso do Século Presente", expõe as principais ideias defendidas pela revista, da qual participaram Araújo Porto Alegre, Joaquim Norberto de Sousa Silva e Santiago Nunes Ribeiro, entre muitos outros. Torres Homem louva a reabilitação do cristianismo que ocorreu na Alemanha e na França, e também retoma o empreendimento já realizado por Chateaubriand de defender e ilustrar as virtudes da Igreja através dos tempos:
Se queremos conhecer sua influência sobre os progressos das sociedades, vemos o cristianismo abrindo as fontes da antiguidade, conservando a tradição das letras no meio do dilúvio da barbaridade, a das sombrias revoluções da Europa moderna, estabelecendo a civilização com as artes ; a política e humanidade, girando o universo precedido do archote de uma luz divina, que domina o tempo. (…)
Em conclusão, compreende-se, que o cristianismo considerado em sua doutrina, em sua moral, em suas instituições, em seus benefícios e na sua história, oferece em tudo com riqueza inesgotável santas máximas para a viagem da vida, sentimentos para o coração, e a verdadeira solução do destino humano22.
Este texto fundador de uma das principais revistas literárias do Brasil na era imperial faz da religião o alfa e ômega do progresso de qualquer sociedade humana, o escudo contra as ameaças da barbárie e o protetor da "tradição das letras". Alguns meses depois, a revista publicou um artigo de Adolphe Mazure, traduzido por Januário da Cunha Barbosa, intitulado "Influência do Espiritismo no Gênio Literário", no qual o autor rejeita claramente as ideias materialistas na literatura23.
No ano seguinte, o jovem escritor Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa publica nas primeiras páginas da sua obra Os Três Dias de um Noivado (1844) "Alguns pensamentos". Trata-se de um longo argumento para denunciar mais uma vez os males do sensualismo e da descrença, e para sublinhar bem pelo contrário a importância do sentimento religioso para o homem:
é dessa ideia sublime, que dimanam as ideias de uma religião benéfica, de uma moral santa, e de uma virtude inabalável! e essas são as ideias, que mais quis eu que sobresaíssem, e esplendecessem no meu Poema24 !
O prefácio reinveste no campo da criação literária os princípios fundadores da renovação espiritual que acompanha a fundação das Letras Pátrias desde os anos 30. Junqueira Freire, um jovem monge e poeta baiano, também celebra a revolução romântica, na qual acredita ver a glorificação da mensagem divina:
D. Romualdo Antônio de Seixas25, um dos maiores literatos que o Brasil possui, não pode desconhecer no romantismo a essência religiosa, que lhe é consubstancial: não pode negar que esta nova escola tem por sinal característico o tomar seus assuntos e suas inspirações na Bíblia, e ali beber uma palavra com a fé do cristão, ardente como o seu amor26.
Assim, a poética espiritualista, visualmente encarnada no frontispício da coletânea de Gonçalves de Magalhães, define o cânone literário das Letras Pátrias.
A filosofia eclética como baluarte contra o sensualismo e o materialismo
Ao seguirem o exemplo de Gonçalves de Magalhães ou Teixeira e Sousa, muitos dos fundadores das Letras Pátrias enfatizaram a dimensão moral da fé religiosa27. Santiago Nunes Ribeiro, em um artigo publicado na Minerva Brasiliense de 1843, denunciou o perigo dos livros inspirados na "filosofia sensualista" do século XVIII, em nome da superioridade da verdade divina e de uma filosofia cristã que invalidou muitas ideias herdadas do Iluminismo: “Neutralizar, pois, os efeitos da instrução danosa que esses livros nos hão dado, elevar depois o sentimento moral à altura da sua divina essência, é sem dúvida a missão da literatura atual dos grandes povos28”.
A luta contra o sensualismo tomou caminhos diferentes, literários e filosóficos. M. M. Carvalho, em um artigo intitulado "Filosofia no Brasil" publicado em 1844 na mesma revista, menciona a filosofia eclética de Victor Cousin para denunciar a devastação do materialismo no Brasil: “O materialismo equivale ao indiferentismo e incredulidade em religião, ao interesse pessoal, à anarquia em política, ao desprezo e abandono nas artes, à desconfiança e torpor na agricultura e comércio, a superficialidade, arrogância nas ciências29”.
O autor compara o materialismo e a descrença religiosa a um ataque à pátria, tanto no plano econômico quanto intelectual. O espiritualismo elaborado por Cousin e seus seguidores é uma resposta ao materialismo de seus antecessores, em particular Condillac30. Em seu Cours (Curso) publicado em 1828, Victor Cousin faz o retrato de uma humanidade inspirada pelo sopro divino: “Deus é claro no mundo que o manifesta e para a alma que o possui e sente. Em todos os lugares presente, ele retorna a si mesmo na consciência do homem, que expressa seus atributos mais sublimes, pois o finito pode expressar o infinito31.” Defendendo a imortalidade da alma e a existência de Deus, o ecletismo, um termo emprestado à Enciclopédia de Diderot, é pelo menos um deísmo e, portanto, compatível com o catolicismo, sem se reduzir a ele.
Ao propor uma doutrina filosófica coerente e capaz de pensar o mundo em sua totalidade e profundidade histórica, Cousin traça em seus cursos uma "história da filosofia", levando em conta o fato de que o espírito de uma época se manifesta primeiramente através do meio geográfico e depois pelos elementos constituintes que são a indústria, as leis, a arte, a religião e a filosofia; que este espírito se encarna nos grandes homens, que são os representantes da Ideia na História. Segundo Cousin, a verdadeira história da humanidade é sua história interior, ou seja, a determinação da ideia representada por um povo, uma época, um país. Em suas palestras na Sorbonne, Victor Cousin postula uma humanidade em perpétua evolução rumo à sua perfeição; uma ideia que alimenta o otimismo dos românticos brasileiros na hora de se pensar a grandeza futura de sua nação: “A humanidade tem seu objetivo e, portanto, desde seu ponto de partida até esse objetivo, ela caminha constantemente e com firmeza: ela se aperfeiçoa32”.
Esta humanidade se divide em unidades autônomas que são os diferentes povos, que os jovens escritores brasileiros enxergam a partir de um princípio de igualdade: “Cada povo representa uma ideia e não outra. Esta ideia, geral em si mesma, é particular em relação àquelas representadas pelos outros povos do mesmo período; é particular, ela é ela e não outra, e como tal exclui todas as ideias que não são ela33”.
Corrente espiritualista a serviço da nação, o ecletismo encontrou um terreno fértil para se adaptar no Império constitucional brasileiro. Frente à ameaça do materialismo, os escritores brasileiros optaram por brandir a bandeira do pensamento eclético, extraído do campo intelectual francês e adaptado ao Brasil, onde encontrou verdadeiro sucesso, como o relata Pedro Maria de Oliveira em 1859:
Três longos séculos de elaboração, de lutas e de reformas foram necessários para fundir a civilização antiga na civilização moderna, para aliar as ideias do finito e do infinito com a sua relação; foi necessário um parto laborioso para a fusão e combinação dos elementos da razão, e a glória desse grande resultado estava reservado ao século XIX, que viu aparecer e triunfar o Ecletismo. Mas o que é o Ecletismo, senão a aliança do Estado com a Igreja, da religião com a filosofia, do principio de liberdade, do céu com a terra, do homem com Deus34 ?
Síntese histórica e filosófica do legado dos séculos passados, o ecletismo permite assim conciliar todos os princípios fundadores da "civilização moderna": o Estado imperial, a Igreja Católica, a liberdade reivindicada pelos românticos e a filosofia espiritualista. A modernidade definida nas colunas da revista literária Ensaios Literários integra-se perfeitamente ao projeto das Letras Pátrias e dá ao ecletismo um lugar de destaque no campo intelectual brasileiro.
A adaptação do ecletismo no Brasil
A recepção do ecletismo no Brasil se deve muito à mediação de Francisco do Monte Alverne e ao Seminário Episcopal de São José do qual participou no Rio de Janeiro. Em 1829, o franciscano ocupou a cadeira de retórica do bispo do Rio, antes de assumir as cadeiras de filosofia e teologia dogmática alguns anos mais tarde. Como professor, foi responsável pela formação intelectual de muitos jovens estudiosos, incluindo Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre. Foi ele quem os iniciou ao ecletismo de Victor Cousin, alimentando assim alguns temas românticos, como o culto do “eu”, a experiência individual do cristianismo, as artes e as letras colocadas ao serviço da religião, ou a exaltação da pátria35.
Não se deve subestimar a influência dos religiosos, pregadores e pensadores que, desde o início do século, produziram no Brasil obras cheias de religião. Nos anos 1810-1820, a poesia religiosa e a oratória dominaram o espaço cultural do Rio. Antonio Candido destacou a importância da eloquência sagrada na gênese do movimento romântico:
A Capela Real, depois Imperial, onde conviviam maestros e pregadores, era uma espécie de sala de concertos e conferências, unindo-se deste modo duas das principais influências formadoras da nova sensibilidade. Homens como os frades Sampaio e Monte Alverne, o cônego Januário (...) ampliavam a ação do púlpito por uma atividade intensa que os tornou mentores da juventude, marcando-a fundamente pelo seu espiritualismo e patriotismo, enquanto a sua retórica permaneceu como paradigma da elevação intelectual36.
Tanto Monte Alverne quanto Borges de Barros popularizaram através de sua pregação uma concepção da palavra a serviço da religião, inspirada em exemplos do passado para nos lembrar, sermão após sermão, a função civilizadora da Igreja. Os oradores da Capela Real ocuparam um lugar de destaque na Corte. Na presença do rei e depois do imperador, suas pregações ajudaram a consolidar a ligação entre a fé e o patriotismo. Em uma revisão crítica das Obras Oratórias de Monte Alverne publicada na revista Guanabara em 1854, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro conta a longa história da "eloquência sagrada", que teve suas raízes no cristianismo europeu e chegou depois à Corte brasileira37. Ele se inspira de Abel-François Villemain, em seu Tableau de l'éloquence chrétienne au quatrième siècle38 (1849), para evocar "a grandeza da missão do orador sagrado", antes de se deter no renascimento desta tradição na França após os tempos catastróficos da Revolução, em particular através da obra de Denis Frayssinous39. Fernandes Pinheiro traça um paralelo entre o renascimento na França e a tradição brasileira da eloquência sagrada, herdada dos precursores da veia romântica. Destaca em particular o papel do franciscano Monte Alverne, saudado unanimemente pelas duas primeiras gerações românticas como o pai do pensamento nacional no Brasil.
Ele mesmo reivindica ter tido um papel essencial para a geração fundadora das Letras Pátrias, em uma carta de agradecimento ao IHGB em 1847:
Alguma coisa fiz ou desejei fazer na minha vida para a ilustração do meu país, durante os trinta anos que ocupei o púlpito e a cadeira do magistério : alguma coisa fiz para a minha pátria, porque vejo ocupando os cargos de honra, a científicos e literários, muitos dos meus discípulos, e alguns deles com um nome indestrutível aos arremessões da inveja40.
Em um discurso de 1852, Monte Alverne lembra as eminentes funções da religião e do oratório ao serviço dos "impérios" e das "instituições". O orador foi, a seu parecer, a primeira encarnação do "gênio brasileiro41". No Rio, portanto, parece que a eloquência do púlpito foi a primeira a manifestar o gênio nacional e assim prefigurou as futuras pretensões de jovens escritores dispostos a fundar uma literatura autônoma.
Autor de um Compêndio de filosofia composto em 1833 e publicado postumamente em 1859, o franciscano nunca escondeu a sua admiração por Victor Cousin, um gênio que foi capaz de restaurar o "sistema filosófico" sobre as ruínas deixadas pelo sensualismo e idealismo42. Em 1833, Gonçalves de Magalhães assistiu às aulas de Théodore Jouffroy, um discípulo de Cousin, na Sorbonne, e informou através de cartas seu mestre no Rio de Janeiro das últimas obras dos filósofos franceses, como a publicação do Curso de 1828 de Victor Cousin. Ao ocupar a cadeira de filosofia no Colégio Imperial em 1842, Gonçalves de Magalhães ensinou o pensamento eclético aos jovens estudantes destinados a ingressar na burocracia estatal43.
Uma chave para entender a transferência do ecletismo para o Brasil é a óbvia correspondência entre a filosofia de Cousin e o pensamento político daqueles jovens estudiosos brasileiros que foram os defensores de uma monarquia constitucional liberal e católica, cujos méritos o próprio Cousin elogiou durante a Restauração. Deve-se lembrar a este respeito que esta filosofia havia se tornado a doutrina oficial da Universidade francesa durante a Monarquia de Julho. A influência do Curso de 1828 foi considerável sobre a juventude romântica, e sabemos que Gonçalves de Magalhães foi um de seus leitores mais fervorosos.
As Letras Pátrias em vez da bandeira romântica
O projeto intelectual e político formulado em Paris não corresponde exatamente ao que era o "romantismo" na França dos anos 1830. Na correspondência de Magalhães, a admiração muitas vezes coabita com o espanto ao comentar as peças de teatro às quais ele assistia. Esta ideia encontra-se também no prefácio de 1839 da tragédia Antônio José, onde afirma a originalidade de sua escrita:
Talvez tenham razão [os críticos], sobre tudo se quiserem medir esta obra com o compasso de Aristóteles e de Horácio, ou vê-la com o prisma dos Românticos. Eu não sigo nem o rigor dos Clássicos, nem o desalinho dos segundos; não vendo verdade absoluta em nenhum dos sistemas, faço as devidas concessões a ambos; ou antes, faço o que entendo, e o que posso44.
Este é, entretanto, um argumento emprestado ao prefácio da obra Camões que Almeida Garrett compôs em Paris. O postulado de independência exprime-se através de uma retórica que é também um lugar comum da representação romântica do gênio literário, desse culto do eu que é próprio dos poetas românticos. Com Antônio José, Magalhães compõe uma tragédia que rejeita a “exuberância” ou mesmo o “grotesco” do drama romântico francês. No entanto, a recusa das obras de um dos grandes nomes do romantismo francês tem a ver com a filosofia contrarrevolucionária do escritor brasileiro.
O espiritualismo dos fundadores das Letras Pátrias justifica a exigência de "beleza moral" na qual se baseia o cânone literário. É em nome dessa exigência que Magalhães condena no prefácio da sua peça Olgiato, encenada em 1839, a estética dramática defendida por Victor Hugo, percebida como uma profanação, um rebaixamento da arte e de seu criador:
Posto que a arte seja livre, diz Mr. V. Cousin, não pode contudo escolher outro fim que não seja o belo moral; nos meios de exprimir é que está a liberdade da arte. Assim todo o artista que, cingindo-se à natureza, contentar-se em copiá-la fielmente, cairá da fileira de artista para o dos obreiros45.
Esta relação ambígua com o romantismo francês se traduz por certa relutância em usar este conceito, já que o “Romantismo” na França não se reduzia às exigências espiritualistas que animavam os jovens literatos brasileiros. A principal razão desta relutância é a inadequação entre um conceito semanticamente complexo e plural, o do "romantismo", e as aspirações da jovem geração de intelectuais brasileiros. Para usar uma metáfora climática, o início do "romantismo" no Brasil corresponderia a uma inversão da geografia continental dos climas: enquanto os romantismos europeus, e em particular a sua versão francesa, carregam consigo ondas violentas e tempestades na década de 1830, o romantismo se adapta no decorrer desses mesmos anos nas latitudes tropicais do Brasil sob a forma de temperança46.
Em 1837, durante as solenidades organizadas pela Sociedade Amante da Instrução em homenagem a Evaristo da Veiga, foram lidas duas composições de Magalhães, este “jovem poeta Brasileiro, que tem sabido aproveitar as belezas da escola moderna, sem lhe aprovar ou imitar os excessos e as extravagâncias, dando às suas poesias uma cor grave e patética47”. A modernidade é assim equiparada à moderação que convém às elites brasileiras.
Além disso, se o nascimento do romantismo no Brasil corresponde a um efêmero parêntese de cumplicidade intelectual com o liberalismo constitucional francês, a virada conservadora no Brasil a partir de 1837 acentua as divergências. Operou-se no Brasil um duplo distanciamento: à leitura crítica feita por Magalhães e outros intelectuais junta-se a distância induzida pela conversão das elites intelectuais ao conservadorismo saquarema, que se tornou hegemônico por várias décadas no Brasil.
Ao voltar ao Rio, os jovens literatos se convenceram das virtudes do projeto saquarema, no qual a cultura era vista como um elemento essencial da política de centralização e consolidação do império. A esperança de uma pacificação da vida política lhes deu a possibilidade de se integrarem ao aparato estatal48. Assim, a política saquarema acabou seduzindo os jovens talentos que retornaram ao país, na medida em que preservou a integridade imperial e contribuiu para estruturar o espaço literário em sua dependência ao campo político. Além disso, o jovem imperador, que tinha grande curiosidade pelas questões intelectuais e que foi educado por seus tutores com a ideia da grandeza da civilização francesa, se tornou durante aqueles anos o primeiro protetor das artes e letras49.
A conversão ao ideário saquarema foi, portanto, uma reação pragmática a uma situação política sobre a qual esses jovens escritores não tinham o controle. É notável, por exemplo, que a abolição da escravidão - embora promovida na revista Nitheroy – se tornou um tema tabu a partir de 1837, até reaparecer na praça pública a partir da década de 1860. A conversão das elites imperiais ao dogma da escravidão como um mal necessário acompanhou o crescimento do comércio ilegal de escravos, do qual dependia a prosperidade de uma economia baseada na agricultura de exportação50.
Conclusão
Louvar a fé foi um precioso baluarte em um século conquistado por ideias "positivas", valores específicos da sociedade burguesa que acompanharam a gradual descristianização da sociedade. Ora, os literatos tinham certeza de que a religião era intimamente ligada ao culto da pátria, por um lado, e à civilização ocidental, por outro. Se o pensamento contrarrevolucionário foi constituinte do pensamento romântico nas primeiras décadas do século, fica também claro que o "Romantismo" tomou na década de 1830 rumos novos na Europa, até se tornar incompatível com os princípios fundadores das Letras Pátrias. A primeira geração de intelectuais, embora formados em uma matriz liberal, demonstrou sua capacidade de escolher o que lhes pareciam bom dentro da profusão das manifestações românticas na Europa, na hora de construir o fundamento intelectual sobre o qual construir uma nação unida e comum.
Assim, o distanciamento com o legado do Iluminismo, percebido através do prisma da Revolução Francesa e de seus "excessos", explica a condenação do sensualismo e do materialismo, tal como a adesão a um romantismo contrarrevolucionário que já não era hegemônico na Europa dos anos 1830. A adaptação da filosofia eclética no Rio, através da pregação dos oradores e das viagens de estudos em Paris, reflete este compromisso em torno do qual a modernidade política do modelo constitucional conseguiu coexistir com a realidade de um império oligárquico e escravista, cujas estruturas sociopolíticas são em grande parte herdadas da época colonial. Portanto, é fácil entender a relutância do pequeno meio literário em assumir a bandeira do Romantismo, e sua preferência por expressões alternativas como "Letras Pátrias" ou "literatura pátria" na hora de qualificar a literatura nacional em formação.
Em meados do século, à medida que o número reduzido de literatos brasileiros crescia, a unidade intelectual se rompia gradualmente: se a tradição contrarrevolucionária permaneceu no ideário de muitos, já não era tão fundamental para as gerações mais jovens, especialmente entre aqueles intelectuais que se afastam do modelo imperial e até mesmo do lugar da religião na sociedade brasileira51.