No dia 14 de julho de 1793, a tragédia Zaira, de Voltaire, foi encenada na Casa da Ópera de Vila Rica. Pela primeira vez um texto de um dos philosophes mais controversos do séc. XVIII era representado naquele pequeno teatro colonial, localizado na capitania de Minas Gerais, o coração econômico da América portuguesa.
Teatro Municipal de Ouro Preto - Casa da Ópera
Zaira subia ao palco da Casa da Ópera num contexto particular. Possivelmente, a estreia marcava a reabertura do teatro após os desdobramentos da revolta antifiscalista e antimetropolitana de 1789, conhecida como Inconfidência Mineira (um marco na construção do imaginário pós-republicano do Brasil), em um dia que carregava simbologias políticas: 14 de julho era aniversário da Tomada da Bastilha, a data histórica do início da Revolução Francesa.
Naquele momento, Vila Rica talvez respirasse mais tranquila, pois os conspiradores que “questionaram o inquestionável1”, ou seja, o poder metropolitano, tiveram punição exemplar: o processo da devassa que durou três anos, entre prisões, interrogatórios, julgamentos, foi finalizado em 1792, no Rio de Janeiro. Os principais envolvidos na conjuração foram sentenciados com o degredo, e Joaquim José da Silva Xavier, o alferes agitador, foi condenado à forca. O “Suplício de Tiradentes2”, um espetáculo macabro de violência e morte na capital do vice-reino, terminou com a exposição da cabeça do condenado em alta estaca no centro de Vila Rica, ainda em 1792.
A cidade entre serras e penhascos acostumava-se agora com a ausência de muitos de seus “homens bons” - como se denominava a elite local, atuante em cargos públicos importantes na capitania, proprietária de terras, lavras e escravizados. Os que se envolveram na sedição, ou estavam mortos ou foram exilados em África, não mais participando do Senado da câmara, dos eventos das Igrejas e irmandades religiosas, das festas públicas, das reuniões no Palácio do governador, das tabernas e dos camarotes da Casa da Ópera. Inconfidentes como Tomás Antônio Gonzaga, José Álvares Maciel, Alvarenga Peixoto, João de Rodrigues de Macedo e Cláudio Manuel da Costa eram frequentadores da casa de espetáculos. Este último, inclusive, não era apenas um simples espectador. O poeta e advogado mineiro, além de ser assinante de camarotes no teatro, teve um texto de sua autoria, São Bernardo, encenado na primeira temporada de inauguração da Casa da Ópera, em 1770 - o único de um autor local3.
Cláudio Manuel também participou do processo de edificação do prédio teatral. É provável que tenha sido um articulador, costurando relações entre João de Souza Lisboa, o coronel e contratador construtor do teatro, e o governador-geral da capitania de Minas Gerais na época, José Meneses de Castelo Branco e Abranches, o Conde de Valadares, numa aliança entre a máxima autoridade local e parte da oligarquia intelectualizada da região para formar novos círculos letrados em Vila Rica. As práticas da cultura urbana expandiram-se para além dos salões e palácios, muito além das Igrejas, envolvendo um novo espaço construído para apresentar espetáculos, a Casa da Ópera4.
Essa articulação entre elite letrada e poder político já vinha sendo preparada anos antes, quando da chegada do Conde de Valadares, vindo de Portugal, em Vila Rica - por sinal, uma cidade com vida cultural intensa desde as primeiras décadas de formação da capitania. Na cerimônia de posse do governador, em setembro de 1768, Cláudio Manuel organizou um recital de poesias para a apresentação de poemas laudatórios em formato musicado, éclogas, odes e sonetos. Em dezembro do mesmo ano, houve a comemoração do aniversário de 26 anos do novo governador e Cláudio Manuel encenou seu drama musicado O Parnazo Obsequioso, inspirado na obra Il Parnaso Acusado e Difeso, de Metastasio5. Foi nessa ocasião que o poeta anunciou a criação da Arcádia Ultramarina, uma extensão da instituição literária Arcádia Romana6, em ambiente colonial.
A iniciativa de Cláudio, longe de ser uma ação isolada, foi tramada em contato com outros poetas mineiros que estavam na Europa. Cláudio, que havia estudado Direito Canônico em Coimbra, tinha relação com Basílio da Gama, natural de São José do Rio das Mortes, Minas Gerais. Este, aproximara-se primeiramente da Arcádia de Roma, durante o período em que esteve na Itália protegido pelos jesuítas. Basílio tinha o nome pastoril de Termindo Sipílio e indicava sua naturalidade como “americano7”.
Para um luso-brasileiro, ser membro da Arcádia italiana era sinal de prestígio e reconhecimento. Era a certificação do novo partícipe como integrante dos círculos de produção da alta cultura ocidental. Além do mais, teria como pares ninguém menos do que Pietro Metastasio e Carlo Goldoni - os maiores libretistas italianos do século XVIII.
Uma prática da agremiação romana era a fundação de colônias em outras regiões da Itália. Cada “colônia” teria uma espécie de chefe local, chamado de “vice-custódio”, subordinado diretamente à Roma. Tudo leva a crer que uma dessas “colônias” era a Ultramarina, anunciada pelo vice-custódio Cláudio Manuel, em Vila Rica. Em 1768, Basílio da Gama esteve de passagem no Brasil e deve ter chegado a se encontrar com Cláudio Manuel na cidade mineira8. Outros letrados também seriam membros da instituição, como Joaquim Inácio de Seixas Brandão, natural do Rio de Janeiro e formado em Medicina, em Montpellier; e os mineiros formados em Coimbra, Manuel Inácio da Silva Alvarenga e Inácio José de Alvarenga Peixoto.
A Arcádia Ultramarina era de certa maneira um projeto coletivo, consequência também da circulação de homens letrados, muitos deles provenientes de uma elite colonial que investira na formação universitária - inexistente na colônia - enviando seus filhos para universidades europeias. Em terras estrangeiras, esses jovens estudantes deparavam-se com novidades científicas, filosóficas e literárias que marcaram o século XVIII como o século das “Luzes” - em Portugal, sobretudo a partir do governo de D. José I, com a reforma educacional da Universidade de Coimbra. Mas novidades e trocas teóricas não estariam limitadas ao contato a um só reino ou região, pois o cosmopolitismo era uma das caraterísticas indissociáveis do espaço alargado da República das Letras que se formara ao longo do século XVIII e culminaria nas revoluções posteriores9.
Por outro lado, tudo indica que a prática de fundação de diversas Arcádias não seria um projeto muito planejado por parte da instituição romana. Sérgio Buarque inclusive levanta a hipótese da Arcádia já estar em decadência naquele momento, escrevendo que “a academia do parnásio nunca se mostrou parcimoniosa quanto à admissão de novas “colônias” e novos pastores”. O historiador Sérgio Alcides, complementando a tese de Sérgio Buarque, analisa que numa “estimativa discreta”, no catálogo de associados à Academia haveria cerca de 15 a 20 mil acadêmicos10.
Mesmo assim, a possibilidade de formação da Arcádia Ultramarina em relação direta com a instituição romana significava uma forma de equiparação artística, ultrapassando os limites geográficos da América portuguesa, para colocar os poetas coloniais em “pé de igualdade diante da produção cultural européia11”, além de motivar o compartilhamento de referências e experimentações literárias baseadas em uma tradição discursiva e emulativa a partir de tópicas neoclássicas.
Os intelectuais e artistas que circulavam nas academias literárias mobilizaram debates sobre gêneros teatrais na Itália e na França. A forma teatral teria um interesse específico, dada sua capacidade de mobilizar audiências, pelo estabelecimento de uma relação direta com o espectador, em suma, por seu caráter “público”. A atualização francesa de utile et dulce, de Horácio, tornou-se para os autores acadêmicos setecentistas um princípio para defender a utilidade da arte. O teatro assumiria uma função pedagógica e civilizatória, seria capaz de moralizar e educar os costumes, representar vícios a serem combatidos e virtudes a serem exaltadas. O interesse pelo teatro estava presente nos círculos literários europeus, e por isso também estava no horizonte dos letrados coloniais.
Todos os Ultramarinos de alguma maneira escreveram sobre/ para teatro, alguns tornando-se também frequentadores ativos da Casa da Ópera de Vila Rica, o palco que apresentará Zaira em 1793. Cláudio Manuel, além de São Bernardo, era autor de vasta obra teatral, envolvendo poesias dramáticas, textos em rima solta e traduções de peças de Pietro Metastasio, como consta na carta que enviou para a Academia Brasílica dos Renascidos, na Bahia, em 175912. Basílio da Gama foi tradutor de obras teatrais italianas e francesas, e trocou correspondências com o próprio Metastasio, relatando sobre teatros coloniais frequentados por gente “que não sabe que existe Viena no mundo13”. Em Portugal, Basílio também era reconhecido por seu envolvimento com o teatro. Em 1773, um estudante de Coimbra, que assina como J.C.D.M (João Cabral de Melo), escreve Epistola a Joze Bazilio da Gama sobre a utilidade de hum Theatro em Coimbra, solicitando o apoio do poeta para a iniciativa teatral14.
Alvarenga Peixoto pode ter sido autor de uma tradução da tragédia Mérope, de Maffei15 - texto, inclusive, reformulado por Voltaire. E Tomás Antônio Gonzaga, por sua vez, que não era da geração dos Ultramarinos - mas que depois se aproxima de Cláudio Manuel - cita a Casa da Ópera de Vila Rica em seu poema satírico As Cartas Chilenas, obra que circulou em forma de panfletos anônimos, no ano de 1786. Na dedicatória da obra, inclusive, destaca a função pedagógica do teatro, reiterando o discurso ideológico neoclássico do “teatro como escola da moral e dos costumes16”.
Por fim, Silva Alvarenga, poeta mestiço, que também estudou Cânones na Universidade de Coimbra, entre 1768 e 1776, dedicou seu primeiro poema publicado ao próprio Basílio da Gama - amigo com quem conviveu nos oito anos em que esteve em Portugal. Na epístola, Silva Alvarenga cita Nicolas Boileau ao elogiar Basílio da Gama e, ao fim do poema, celebra feitos do Marquês de Pombal, carregado de otimismo quanto ao reinado de D. José I:
Hoje aplana os caminhos aos séculos vindouros/ A glória da nação se eleva e se assegura/ Nas letras, no comércio, nas armas, na cultura./ Nascem as artes belas, e o raio da verdade/ Derrama sobre nós a sua claridade./ Vai tudo a florescer, e porque o povo estude/ Renasce nos teatros a escola da virtude./ Consulta, amigo, o gênio, que mais em ti domine: /Tu podes ser Molière, tu podes ser Racine. / Marquezes tem Lisboa, se cardeais, Paris./ José pode fazer mais do que fez Luiz17.
O texto alude à função moralizante do teatro, estimulando o amigo homenageado a escrever para o teatro. Os referenciais neoclássicos estão claros: “Tu podes ser Molière, tu podes ser Racine”, indicando talvez o desejo de Basílio da Gama de se tornar um dramaturgo.
Mais tarde, quando retornou à América, Silva Alvarenga teria uma das maiores bibliotecas da colônia, com mais de 1500 exemplares. O autor possuía coleções de obras completas de Pierre Corneille, Crébillon, Marmontel, Molière, Ludovico Ariosto, textos teóricos de Nicolas Boileau e D. Roland, o tratado de retórica de Quintiliano, textos de Racine, e o teatro completo de Voltaire18. Aliás, o philosophe era uma presença importante nas bibliotecas dos letrados luso-brasileiros.
Voltaire não era um dos filósofos mais radicais do movimento que ficou conhecido como “luzes” ou “república das letras”: circulava em ambientes aristocráticos e burgueses, criticava valores da sociedade do antigo regime sem, contudo, propor uma ruptura radical com a nobreza; sofria com o autoritarismo e censuras persecutórias, ao mesmo tempo em que era aclamado por parte de suas obras - especialmente o teatro e a poesia. Suas ideias mobilizaram debates polêmicos no século XVIII e, anos mais tarde, em 1791, em pleno processo revolucionário, numa espécie de apoteose triunfal, seu corpo foi panteonizado no Panteão, o templo “onde tudo será Deus, exceto o próprio Deus19”.
Para os Ultramarinos, a Henriade, de Voltaire, inspirou diretamente a composição do poema Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa, de 1773, e exemplares de obras como Dictionnaire philosophique, Romans et Contes, Œuvres e Siècle de Louis XIV, presentes nas bibliotecas privadas coloniais20, deviam circular entre os letrados.
Ao mesmo tempo, o interesse específico pelas obras teatrais do filósofo francês se dava também pelo sucesso público de suas tragédias nos palcos europeus setecentistas. A Voltairomania, termo criado pelo Abade Desfontaines, como título do seu texto de resposta aos ataques anônimos de Voltaire: La voltairomanie, de 173921, rapidamente dissociou-se do conteúdo de provocação ao filósofo francês para se tornar sinônimo da popularidade das obras voltairianas na França e em outros lugares do mundo (voltairofilia/ voltairofobia).
Em Portugal, enquanto em 1770 textos polêmicos de Voltaire entravam para o Index das obras proibidas pela Real Mesa Censória, com a alegação de serem “abomináveis produções da incredulidade e da libertinagem de homens tão temerários e soberbos22”, Basílio da Gama, na época matriculado na Universidade de Coimbra, entregou um requerimento para a instituição censória com a tradução da tragédia Mafoma, ou o fanatismo, do filósofo francês23. O texto fora proibido, mas posteriormente, outras tentativas foram feitas, com veredictos favoráveis. Em 1776, há outro pedido de aprovação para licença de representação da peça no Teatro da Calçada da Graça e apesar de não haver o nome do tradutor, o registro de localização indica o nome de “José Basílio da Gama24”.
O poeta, anos antes, escreveu um poema dedicado ao teatro, chamado A Declamação trágica, em 1773, inspirado pela obra La Déclamation Théâtrale, de Claude-Joseph Dorat, um tratado em verso publicado entre 1758 e 1767. Na obra em questão, Basílio da Gama dirige-se a uma atriz anônima e usa ao longo de todo o texto citações de várias peças francesas, majoritariamente de autoria de Voltaire, inclusive Zaira, nosso objeto de estudo25.
Outro acadêmico luso-brasileiro, filiado à Arcadia Romana e amigo de Basílio da Gama, chamado Seixas Brandão, pode ter traduzido duas peças de Voltaire para o português (Zaira e Alzira), provavelmente ainda no final da década de 1760, depois de formado em Montpellier, quando já circulava por Lisboa, segundo Adrien Balbi26.
Se no reino, o teatro de Voltaire era lido, discutido e começava a entrar nos palcos com força no final da década de 1760, por intermédio inclusive de luso-brasileiros como o próprio Basílio da Gama e talvez Seixas Brandão, data de 1778 a primeira representação de uma tragédia do philosophe na América portuguesa, mais especificamente, Zaira, na Casa da Ópera do Rio de Janeiro - 15 anos antes da encenação de Vila Rica. Foi o musicólogo Curt Lange (1903-1997) quem encontrou uma partitura musical para a encenação da peça no teatro carioca27.
Naquele momento, a casa de espetáculos, em atividade desde a década de 1760, seguia um cronograma de temporadas teatrais anuais, com espetáculos toda a semana. Seu repertório, como o de outras Casas da Ópera como a de Vila Rica, baseava-se sobretudo em adaptações de óperas italianas de Metastasio, comédias de Goldoni e António José da Silva, o Judeu, entremezes e adaptações cômicas “ao gosto português28”. As noites de espetáculo eram conhecidas como jornadas teatrais, envolvendo música, dança, pantomimas e intermédios cômicos, com cenários de aparato barroco e maquinários para a produção de uma teatralidade híbrida e de efeitos. Os ares aristocráticos das óperas italianas misturavam-se ao apelo popular das comédias. Por isso que a encenação de Zaira trouxe novidades também em termos formais: era a primeira vez que uma tragédia declamada francesa era encenada em um teatro da América portuguesa.
Zaira foi representada no último ano de governo do Marquês do Lavradio, o responsável pela criação da Academia de Ciências do Rio de Janeiro, em 1771, um dos espaços letrados mais importantes do Rio de Janeiro naquele período. A Academia era organizada por meio de sessões que discutiam e apresentavam trabalhos ligados à História Natural e à Medicina. O interesse de Lavradio pelas Ciências Naturais não o impediu que se aproximasse também do teatro. O vice-rei descreve a casa de espetáculos em suas correspondências29. Em 1776, recebeu a dedicatória de um poema encomiástico de Alvarenga Peixoto, como prólogo do drama lírico Eneias no Lácio (de temática clássica a partir de um episódio da Eneida, de Virgílio):
Ao mesmo Marquês [do Lavradio]/ Servindo de prólogo ao drama Enéas no Lácio/ Se armada a Macedônia ao Indo assoma, / E Augusto a sorte entrega ao imenso lago;/ Se o grande Pedro errando incerto e vago/ Bárbaros duros civiliza e doma;/ Grécia de Babilônia exemplos toma,/ Aprende Augusto no inimigo estrago,/ Ensina a Pedro quem fundou Cartago/ E as leis de Atenas traz ao Lacio e Roma./ Tudo mostra o teatro, tudo encerra;/ Nele a cega razão aviva os lumes/ Nas artes, nas ciências e na guerra./ E a vós, alto senhor, que o rei e os numes/ Deram por fundador à nossa terra,/ Compete a nova escola de costumes30.
Na ocasião, Alvarenga Peixoto havia acabado de retornar de Portugal, depois do tempo de estudos em Coimbra, para assumir o posto de ouvidor da Comarca de Rio das Mortes, em Minas Gerais. Estava de passagem pelo Rio de Janeiro e deve ter encontrado uma boa oportunidade de aproximação com Lavradio para tramar novas articulações de redes letradas na América Portuguesa. O poeta sabia que a proteção do poder público era fundamental na organização de instituições coloniais e que Lavradio era um vice-rei interessado na ciência e nas artes.
No mesmo ano de 1776, o poeta mestiço Silva Alvarenga chegava à cidade também vindo de Portugal. Dali retornaria a Minas para depois, em 1782, assumir o posto de professor de retórica na cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde, estaria envolvido em outro episódio caracterizado como sedição, a Inconfidência Carioca, de 1794, em torno de investigações sobre a Sociedade Literária do Rio de Janeiro, da qual foi um dos fundadores.
A presença dos dois Ultramarinos na capital do vice-reino pode ter trazido novas discussões sobre a poética teatral, juntamente com exemplares de textos dramatúrgicos à América portuguesa. O apelo do teatro neoclássico francês, assunto de debates no reino entre os letrados luso-brasileiros, deve ter atualizado conversas entre os homens cultos do Rio de Janeiro. Datam também de 1776 encenações de Molière na Casa da Ópera31. Ou seja, o teatro francês chega no ambiente colonial no mesmo ano de retorno de dois poetas ultramarinos, Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto.
É curioso porque a primeira edição conhecida de uma tradução portuguesa de Zaïre data de 1783, em Lisboa, feita pelo ator Pedro António, quando o pedido para representação da peça no Teatro do Bairro Alto data de 176932. Ou seja, a encenação carioca de 1778, se seguiu uma tradução para o português, baseou-se no manuscrito da encenação ou teve outra origem. Quem teria se empenhado nessa tradução? Teria sido feita pelos próprios Ultramarinos? Talvez Basílio da Gama, que já tinha traduzido Mafoma, ou o Fanatismo, de Voltaire, ou Seixas Brandão, como apontado por Balbi.
O fato é que o círculo de letrados mineiros, apesar da não continuidade da Arcádia Ultramarina - que provavelmente teve uma vida curta, tal como outras tentativas coloniais e inclusive portuguesas - manteve-se ativo durante toda a década de 1780. Em Minas Gerais, com a chegada de novos letrados em Vila Rica, como o poeta Tomás Antônio Gonzaga, as sociabilidades expandiram-se: “A Arcádia Ultramarina, ainda que não tivesse mais esse nome, achava-se agora viva, mais viva, de fato, do que ao tempo do Conde de Valadares33”, como escreve Sérgio Buarque. E apesar da dispersão em 1789, devida à revolta da Inconfidência Mineira, de certa maneira a vida literária em formação34 desdobrou-se no Rio de Janeiro, com Silva Alvarenga e a Sociedade Literária.
Sabe-se que Zaira teve mais uma encenação em Cuiabá35, três anos antes da de Vila Rica, em 1790, como consta na descrição das comemorações pelo aniversário do ouvidor de Cuiabá, Dr. Diogo de Toledo Lara Ordenhes36. Homem erudito, admitido na Academia das Ciências de Lisboa, em 1795, foi considerado o “primeiro naturalista de São Paulo”, segundo Taunay37. De família paulista, Ordonhes foi licenciado em Cânones, em Coimbra, em 177938, e assumiu o posto de juiz de fora da Vila de Cuiabá, em 1785. Não há indícios de um contato mais direto com os poetas mineiros, mas é certo que as redes de letrados estenderam-se na América portuguesa, num contexto de difusão das Luzes: a elite intelectualizada luso-brasileira devia se conectar não só pelo referencial acadêmico, mas também pela formação universitária europeia, pelos laços de sangue e vínculos familiares, pelos altos postos que ocupava, pelos negócios lucrativos a tratar.
Pelas fontes documentais, Zaira só será encenada novamente em Vila Rica, em 14 de julho de 1793 - a última representação registrada do século XVIII, na mesma temporada onde será representada Mafoma, também de Voltaire. Zaira, a tragédia de maior sucesso do philosophe, escrita em 1732 em versos alexandrinos e apresentada pela primeira vez no mesmo ano na Comédie-Française, narra a história de Zaira, uma jovem escravizada desde o nascimento em Jerusalém, no tempo da sétima cruzada do rei francês São Luís, ou Luís IX. O conflito gira em torno dos personagens de Zaira e Orosman, filho do sultão Saladin e atual soberano, que quer se casar com Zaira, contrariando o costume poligâmico muçulmano. De acordo com Voltaire, é um “jeune homme plein de grandeur, de vertus, et de passions39”. Zaira corresponde seu amor, embora desde a primeira cena se anuncie a tensão religiosa que se desdobrará ao longo das cenas. A protagonista tem origem francesa e cristã, mas por ter sido criada em cativeiro num reino muçulmano, nunca fora batizada. A tragédia atinge seu ápice quando seu pai, Lusignan, rei cristão de Jerusalém, que é prisioneiro de Orosman, é libertado e a reconhece como filha. Uma série de mal-entendidos levam ao desenlace final, com a morte de Zaira por Orosman, enlouquecido de ciúmes.
Voltaire estimulado por estudos filosóficos e históricos, escreve a primeira tragédia com tema “francês”: os personagens são de origem francesa, baseados em um período determinado da história do reino. O autor quis colocar em cena o “contraste de valores como honra, pátria, amor, religião40”, a partir do conflito entre as ideias de fanatismo e tolerância. Em suas próprias palavras seria uma “tragédia cristã41”, que estimularia debates filosóficos e um aprendizado moral por parte do público. A peça, nesse sentido, contribuiria para a relativização de religiões diferentes. O final trágico mostraria pela via contrária o princípio universalizante da tolerância religiosa.
A discussão religiosa era vital na obra de Voltaire, que assumiu por vezes uma postura militante, como no caso jurídico de Calas, de 1761, motivador da escrita do Tratado sobre a Tolerância, redigido entre 1762 e 176342. A tolerância como imperativo moral em Voltaire abria a possibilidade para a constituição de um ethos ou modelo comportamental universal, ao mesmo tempo em que se apresentava como força política pacificadora. O princípio da tolerância conectava-se com a ideia de liberdade, também defendida por Voltaire: liberdade política, civil e religiosa que deviam se espalhar para além das fronteiras de um único território.
A liberdade também aparecia como tema na tragédia ao representar a escravidão. Zaira é uma mulher escravizada desde a infância, e infiel aos olhos dos cristãos, porque não fora batizada. A despeito da condição de cativa e da “alma infiel”, como descreve seu irmão, Nérestan, é virtuosa. Voltaire cria impasses morais na personagem: pela sociedade, é escravizada, pela religião é infiel, mas do ponto de vista da subjetividade, é cheia de virtudes, capaz de cultivar um espírito “elevado”, estabelecendo uma identificação dos espectadores com a personagem. Não à toa, a peça foi considerada um “sucesso de lágrimas43”. O discurso emocional da tragédia abriria espaço para se pensar de outra forma na ideia de liberdade como oposição categórica, através do discurso da escravizada virtuosa?
Por outro lado, a dramaturgia de Zaira com o final de mortes sucessivas marca a virada de Orosman de um líder justo e amoroso, que “traitait avec douceur les esclaves chrétiens”, para um personagem impetuoso, violento, cego de ciúmes, “bárbaro”, como o próprio Nérestan o chama. O choque entre modelos de culturas intensifica-se ao longo da peça através do posicionamento autoritário de Lusignan ao não aceitar a união de Zaira com Orosman, do discurso intolerante e arrogante do próprio Lusignan e de Nérestan em relação aos muçulmanos. A tragédia termina com o triunfo da religião católica, que surge através da redenção de Orosman e a libertação de todos os cristãos de Jerusalém. A possibilidade de convivência entre religiões não se efetiva plenamente: a morte de Orosman marca as suas desmedidas pessoais que transbordam para seu governo, minimizando as atitudes intolerantes dos cristãos ao longo de toda a peça.
Além disso, não há um processo de mudança nem de aprendizado para os personagens: o que se anuncia no início potencializa-se até o final, pois os conflitos religiosos e políticos entre cristãos e muçulmanos só se intensificam a ponto de terminar em mortes e lágrimas. O amor entre Zaira e Orosman não foi suficiente para evitar a tragédia.
Entre o sentimentalismo cristão e o discurso sobre a tolerância religiosa no cenário exótico de Jerusalém (influenciado pelos grandes espetáculos operísticos), a complexa trama que remetia à Othello, de Shakespeare, mas principalmente à Bajazet, de Racine, era agora presentificada na Casa da Ópera de Vila Rica. Dada a gravidade dos acontecimentos políticos anteriores em Minas Gerais e a memória da Inconfidência que permanecia na capitania através de boatos e murmúrios, é possível indagar sobre o significado político dessa encenação no 14 de julho.
A Casa da Ópera, agora propriedade da Junta da Fazenda44, tinha como autoridade máxima o governador geral, Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, Visconde de Barbacena - o mesmo responsável pelos primeiros desdobramentos jurídicos da Inconfidência após a suspensão da derrama de fevereiro de 1789 e a delação de Silvério dos Reis. Nessa ocasião, Barbacena garantira a proteção de alguns sediciosos, entre eles o contratador João de Rodrigues de Macedo, que não seria submetido a nenhum interrogatório, investigação ou implicação. Este último, um dos protagonistas da conjuração, era um dos homens mais poderosos de Minas Gerais. O contratador fora credor de figuras eminentes, como Alvarenga Peixoto; era o principal cliente do advogado Cláudio Manuel da Costa e figura constante no tribunal de Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor de Vila Rica. Ou seja, não era acadêmico, mas tinha relações muito próximas com os letrados. Macedo justamente tinha assinado um camarote no teatro de Vila Rica em 1793, acompanhando a temporada teatral que mesclou óperas italianas, comédias e entremezes com a obra de Voltaire45.
O contratador talvez fosse um dos únicos vivos conectados diretamente com a geração dos poetas que ajudou a construir o teatro mineiro e frequentou o espaço ao longo das décadas de 1770 e 1780. Mas os debates estéticos e filosóficos protagonizados pelos inconfidentes que motivaram a existência do próprio teatro já não mais eram ouvidos na vila colonial. A cultura urbana de Vila Rica modificava-se agora com a ausência de seus letrados rebeldes, e novos “cidadãos” teriam de ocupar os assentos do prédio teatral. A condenação à morte e o degredo dessa elite intelectualizada na capital do vice-reino um ano antes, em 179246, trazia para a atmosfera de Vila Rica um clima de fantasmagoria.
A Casa da Ópera estava lá, como um dos resultados materiais do projeto ideológico dos Ultramarinos; Voltaire era apresentado nos palcos, remetendo a ciclo de estudos, debates, trabalho em torno do teatro neoclássico francês pelos mesmos poetas desde Portugal e o Rio de Janeiro, passando talvez por Cuiabá; e a data escolhida para o início da temporada com a apresentação da tragédia, 14 de julho, como se numa tentativa de reatar laços com os Inconfidentes que já não mais existiam, remetia à Revolução Francesa, às leituras radicais de autores como Abade Raynal, Diderot, Robertson, Condillac e Mably, às correspondências com Tomás Jefferson47.
A tolerância e liberdade evocadas no texto de Voltaire talvez ecoassem no imaginário pós-Inconfidência. Por outro lado, os próprios limites temáticos da peça abriam espaço para o discurso católico “triunfar” no palco de Vila Rica. E estranhamente, a história de Zaira, contemporânea ao rei Luís IX da França, canonizado como São Luís, duplicava-se na religiosidade local pela presença da pintura do próprio rei francês na Igreja do Carmo, vizinha à Casa da Ópera48. Teria Zaira, no teatro colonial, um sentido também religioso? A presença católica nos palcos do teatro, desde a encenação de São Bernardo, de Cláudio Manuel, ganhava novos ares, impulsionada pela atualização frente ao repertório português, que cada vez mais se influenciava pela dramaturgia neoclássica francesa. A provocação política como um eco da Inconfidência Mineira, através das coincidências implícitas à autoria de Voltaire, e à escolha do dia 14 de julho, estaria amalgamada à cultura religiosa local.
Ao mesmo tempo, a encenação, organizada pelo empresário Antônio de Pádua, subordinado ao governador-geral, foi feita por atores e atrizes negras e mestiças, libertas e escravizadas, os trabalhadores dos teatros coloniais. Aliás, a dimensão da escravidão em cena, temática da peça, se materializava no palco, ganhando outros sentidos com esses artistas que mesmo pintando suas caras de branco, mostravam a cor da pele escura pelas mãos49.
Pelos relatos existentes de outras encenações, como a de Cuiabá, a cena provavelmente foi construída como tragédia declamada, misturada a entremezes cômicos e apresentações musicais, motivados pelo apelo popular e mercantil de uma cena espetacular, de efeitos e comicidades. É de se perguntar para quem o texto francês estava sendo encenado: se para os sobreviventes da revolta, partícipes de uma geração que não mais existia; se para um público interessado em atualizações do repertório europeu, envolvido mais com sensações estéticas espetaculares do que com sentidos de discurso; se para membros de uma nova elite letrada, que de alguma maneira reivindicava o movimento antimetropolitano; se para os interessados no elogio da religião católica, envolvidos com as irmandades locais; se para o próprio governador, figura contraditória no movimento da Inconfidência mineira. O que estreou no palco do teatro em 1793 era uma apresentação ambígua, que diante de sua relação com o passado recente local, temática da peça, influência religiosa e hibridismo de formas, explicitava o contexto de crise política em fins do Antigo Regime colonial, fechando uma espécie de ciclo ilustrado e sedicioso, iniciado com Cláudio Manuel da Costa, Basílio da Gama e os letrados Ultramarinos.
Fontes Manuscritas
CARTA enviada por João de Sousa Lisboa a Rodrigo Francisco Vieira em 14 de Dezembro de 1770 sobre o aparecimento da Ópera São Bernardo, Belo Horizonte, APM, CC 1205, fls. 45v e 46.
CARTAS enviadas pelo Dr. Claudio Manoel da Costa à Academia Brazilica dos Renascidos em Salvador da Bahia, Belo Horizonte, APM, Col. APM Cx. 01 doc. 03.
O Parnazo Obsequioso e Obras, Manuscrito, 1768, AHMI, Ouro Preto, MG.
Partitura da encenação de Zaira no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, ACL/UFMG. Cx. 23, Série 10.3.16.13, fl. 4.
Recibo passado ao Sr. João Rodrigues de Macedo por Antônio de Pádua pela assinatura de um camarote de 14 de julho de 1793 a 2 de março de 1794, Belo Horizonte, ACL/UFMG Cx. 23. Série 8.1.30.44.
Regimento da Real Mesa Censória, “Título X: Das regras que se devem observar na Censura dos Livros, em quanto se não formar hum novo Index Expurgatorio, e do que na formaçaõ se deve praticar Lisboa, ANTT, RMC.