Texto integral
Introdução
No livro bíblico de Samuel aparece, por duas vezes, uma insólita questão: “Está Saul também entre os profetas?” (1 Sm 10,11; 19,24)1. Saul é o primeiro rei do povo de Israel e, obviamente, não é profeta nem vive entre profetas. Os autores bíblicos, porém, não desperdiçaram a ocasião e contam-nos dois episódios nos quais o rei Saul se vê entre profetas, em êxtase, servindo como oráculo da divindade diante daqueles a quem, por nome e direito, competia tal exercício (veja-se 1 Sm 10,10-13; 19,18-24).
Não é o propósito desta contribuição discutir em detalhe nem a pergunta, nem as histórias que dali se coseram2. A tonalidade proverbial da primeira serve-nos, no entanto, para formular, em breves termos e como que em paráfrase, o assunto que nos propomos abordar: “Está Saramago também entre os rabinos?”.
No último romance publicado em vida, Caim (2009), José Saramago recria mitos e histórias do legado cultural judaico-cristão, num exercício de releitura crítica do Primeiro Testamento. Tal como n’O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), trata-se de reescrever a história sagrada com o fito de interrogar os seus postulados e desconstruir o monopólio de sentido que cobre, como um verniz, estas narrativas. Saramago convoca o texto bíblico como letra a ser explorada sem as regras e os interditos impostos pelo cânone das Escrituras, num esforço interpretativo que obedece apenas à fina liberdade da ironia. Se o intento “dessacralizador” do romance recebeu ampla nota3, falta estudar mais completamente o “método” saramaguiano. No caso concreto, a forma como José Saramago explora os interstícios do texto num processo criativo que o coloca, talvez inadvertidamente, sobre vias hermenêuticas já percorridas por mais devotos intérpretes bíblicos. É precisamente a semelhança entre o agir do autor português em Caim e as estratégias de leitura e suplementação da literatura de tipo midráshico que nos interessa aqui explorar.
Caim como romance “midráshico”
O termo “Midrash” é de difícil e contestada definição. A palavra deriva da raiz hebraica d-r-š que, enquanto forma verbal, exprime o ato de procurar ou de examinar algo e, por extensão, de o interpretar. Num sentido estrito, o termo “Midrash” designa um modo de interpretação dos textos das Escrituras (Primeiro Testamento ou Bíblia Hebraica), cultivado nos círculos rabínicos desde os princípios da nossa era, que implica não só uma leitura atentíssima (close reading) do texto, mas também a elucidação das possíveis ou imaginadas lacunas e ambiguidades. Aplicado aos textos legais, tal método recebe a designação “Midrash halakha”; no caso de textos não-legais, fala-se antes de “Midrash aggadah”. A práxis inclui, na sua expressão mais inventiva, uma radical releitura dos textos bíblicos destinada a “clarificar” ou ampliar o seu significado e expandir as linhas de intertextualidade4.
Dito isto, o termo “Midrash” (ou “midráshico”) pode ser e tem sido utilizado para caracterizar outros corpos literários. No campo da literatura bíblica e parabíblica, é habitual descrever-se o livro bíblico das Crónicas, que reelabora as histórias já contadas nos livros de Samuel e Reis, como um “Midrash”, porventura o primeiro do género (Seeligmann 1980, 14-32). Da mesma forma, é possível falar-se da qualidade “midráshica” de escritos parabíblicos, como o livro dos Jubileus ou o chamado Génesis Apócrifo, dois exemplos paradigmáticos do género “reescritura bíblica” (“rewritten Bible”), que floresceu no período histórico entre os dois Testamentos5. Passando dos “predecessores” aos “sucessores” desta tradição rabínica de interpretação, saúda-se com o mesmo termo (“Midrash”) um número significativo de obras literárias modernas e contemporâneas, nas quais as histórias bíblicas conhecem novo rosto e novas vidas6. Trata-se, em muitos casos, de celebrar o Midrash clássico como um modo de releitura próximo e, porventura, na origem da irreverente liberdade da forma moderna e pós-moderna de lidar com os textos e a significação7. Mais que um género ou uma estratégia de releitura, “Midrash” é agora sinónimo de indeterminação, termo-símbolo para a rejeição de qualquer forma de fixismo semântico em favor de significações múltiplas e sempre “diferentes”. Outros estudiosos, porventura mais prudentes, preferem que se reserve as designações “Midrash” e “midráshico” para aquelas obras que referem direta ou indiretamente determinadas tradições de interpretação rabínicas ou, pelo menos, se assemelham no método a estas últimas8.
Ao escolher aplicar o adjetivo “midráshico” ao último dos romances de José Saramago, o que pretendemos é demonstrar que uma tal caracterização pode contribuir para uma mais inteira inteligência da “mecânica” desta revisitação literária do cânone bíblico9. Na verdade, até pelos padrões mais cautelosos atrás referidos, Caim é um romance “midráshico”. O autor conhece e alude a várias tradições extrabíblicas de interpretação e de suplementação que são rabínicas na sua origem ou desenvolvimento. Veja-se, por exemplo, a noção de que caim10 se serviu de uma queixada de jumento para matar abel (Saramago 2016, 30) ou de que os irmãos chegaram à conclusão de que o senhor deus havia rejeitado o sacrifício de caim graças a um sinal exterior (Saramago 2016, 29: uma corrente de ar que impede o fumo do sacrifício de subir na vertical). Vejam-se, ainda, as referências às tradições ligadas à marca de Caim (Saramago 2016, 32: “uma pequena mancha negra”) ou à figura de Lilith11. Estas e outras instâncias revelam que o autor é, de alguma forma, herdeiro daquela tradição judaica de interpretação, ainda que a resposta à pergunta “arqueológica” – isto é, o “como” e “quando” se deu a influência literária – nos escape12. Em todo o caso, o propósito deste ensaio não é tanto o de identificar possíveis casos de empréstimo literário à tradição rabínica, mas de demonstrar que Saramago relê e reescreve o livro do Génesis (e do Êxodo e de Job) com uma sensibilidade para as minúcias da narrativa sagrada e uma “disciplina hermenêutica” que têm na prática midráshica clássica um eloquente paralelo. A análise comparativa incidirá sobre os processos de recriação de personagens, a transformação de presumidas “lacunas” do texto em oportunidades eisegéticas e a transferência de motivos entre relatos e personagens.
caim e o senhor (deus) de José Saramago como “construtos midráshicos”
Uma das mais salientes características da literatura judaica de tipo midráshico é a sua natural inclinação para criar novas histórias acerca dos heróis e vilões da narrativa sagrada; histórias que tanto podem contribuir para confirmar a caracterização original como para a modificar. A um leitor menos cuidadoso, tal processo criativo pode parecer totalmente arbitrário; na prática, porém, trata-se de um exercício subtil mas solidamente ancorado no texto bíblico, ainda que isso implique, por vezes, uma certa “acrobacia filológica”13.
Vejamos um exemplo. No livro do Génesis, não nos é dito nada acerca da vida de Abr(a)ão, o primeiro dos patriarcas, antes de a sua família ter decidido partir de Ur dos Caldeus (Gn 11,31). Em contraste, no Apocalipse de Abraão – um pseudepígrafo do séc. II da EC, que recolhe várias tradições midráshicas – abundam as histórias sobre a infância e adolescência de Abr(a)ão. Ali se relata como o jovem Abr(a)ão revelou, desde muito cedo, uma repulsa pela idolatria reinante, o que lhe valeu acesos diferendos com o pai, Terah. O conflito culmina numa conflagração que reduz a cinzas a casa paterna e precipita a partida de Ur dos Caldeus:
Estando eu [Abraão] a falar com meu pai Terah no pátio da casa, veio do céu, sob a forma de uma nuvem de fogo, a voz do Altíssimo, que gritou: “Abraão, Abraão!” Eu disse: “Eis-me aqui”. Ele continuou: “Procuras em teu coração o Deus dos deuses e o Criador: Sou eu! Sai da casa de teu pai Terah, sai dessa casa, para que não pereças nos pecados da casa de teu pai.” Eu saí. Estava ainda a sair quando se ouviu um relâmpago que o queimou e à sua casa, com tudo o que nela havia. Reduziu tudo a cinzas, quarenta côvados. (Apocalipse de Abraão 8)14
Estas tradições extrabíblicas à volta da figura de Abr(a)ão têm o propósito de oferecer razões para o facto de a divindade o ter escolhido entre tantos outros seres humanos, uma preocupação alheia ao texto bíblico. Contudo, tal não impede que tenha sido o texto, ou melhor, a letra do texto sagrado a inspirar semelhantes digressões literárias. O nome da cidade da qual a família de Abr(a)ão é originária, Ur, é homónimo, em hebraico, do termo utilizado para designar uma chama ou um fogo. Uma tal coincidência não escapou a estes minuciosos intérpretes. Na letra do texto, esconde-se o verdadeiro motivo da súbita partida da terra dos Caldeus: o “Ur” é afinal o fogo ou incêndio que recompensa o admirável zelo religioso do jovem Abr(a)ão.
José Saramago é um leitor atentíssimo do texto bíblico e, tal como os rabinos, parte à procura de “pregos eisegéticos” nos quais possa dependurar a sua irreverente e subversiva releitura do texto canónico. Na recriação das personagens bíblicas que figuram no romance, o escritor explorou habilmente a involuntária mas inevitável polissemia da letra sagrada, de tal forma que é justo dizer-se que os homónimos saramaguianos são surpreendentemente bíblicos, no sentido em que os heróis e vilões do Midrash clássico também o são.
caim
Comecemos por caim, um personagem bíblico que conheceu uma espécie de “reabilitação” na literatura moderna e contemporânea15. No romance de Saramago, o protagonista é praticamente imortal, além de se revelar uma espécie de viajante ou de “vagabundo espácio-temporal”. No caso do primeiro destes traços – a imortalidade –, trata-se de uma manobra de tipo midráshico que tem como base (e acaba por vitimar) Génesis 4,15. De acordo com o texto bíblico, depois de ter assassinado o seu irmão Abel, Caim vê-se a braços com a ira divina e acaba por ser condenado a uma vida de errância perpétua. Confrontado com a trágica perspetiva de vir a ser atacado e morto por quem o vier a encontrar no caminho, Caim protesta e obtém da divindade a promessa de que “se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais”, juntamente com uma marca ou sinal “a fim nunca ser morto por quem o viesse a encontrar” (Gn 4,15).
Na lógica do texto, uma tal promessa não constitui obviamente uma garantia contra a morte, mas a formulação empregue “deixa a porta aberta” a uma tal releitura. A declaração divina em Génesis 4 de que Caim não será morto por quem o encontre – i.e., de que não sofrerá uma morte violenta nas mãos de outro, como aquela que ele impôs ao seu irmão – torná-lo-ia “imortal” num mundo onde a regra fosse esse tipo de morte. Ao ler o romance, damo-nos conta de que o “mundo bíblico” saramaguiano, fruto de uma muito pessoal seleção de episódios bíblicos, é precisamente este género de lugar: quase todos os personagens (a exceção seria porventura o marido de lilith, noah; Saramago 2016, 106) morreram ou às mãos de outra criatura ou do irascível senhor deus. Nesse sentido, que caim sobreviva ao ataque de bandidos (Saramago 2016, 53-55), às tragédias no tempo de job (Saramago 2016, 115) e até ao dilúvio universal (Saramago 2016, 143-144), não é senão o corolário daquela inicial e aparentemente irrefletida decisão divina. É ela também que dá motivo e pertinência à própria conclusão do romance. Do violentíssimo “experimento” levado a cabo pelo senhor deus ao criar a humanidade, é lógico que só ele, deus, e caim, um improvável agraciado, escapem com vida:
Então a nova humanidade que eu tinha anunciado, Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. (Saramago 2016, 144)
Se a imortalidade de caim é fruto da arguta releitura de Génesis 4,15, a natureza da sua errância ou “vagabundagem”, bem como a estrutura do romance, dependem de uma reinterpretação einsteiniana de Génesis 4,12. De acordo com o texto, a divindade condena Caim a tornar-se “vagabundo e fugitivo sobre a terra” (Gn 4,12). Saramago toma à letra a maldição pronunciada, mas fá-lo à luz do princípio einsteiniano da indissociabilidade do espaço e do tempo e dá-lhe, por isso, um inesperado mas inevitável twist temporal. A pena divina implica que a errância de caim se faça não só entre lugares, mas também entre tempos:
E agora, que tencionas fazer, perguntou lilith, Depende, Depende de quê, Se alguma vez chego a ser dono da minha própria pessoa, se se acabar este passar de um tempo a outro sem que a minha vontade tenha sido para aí chamada, farei aquilo a que costuma chamar-se uma vida normal, como os demais, Não como toda a gente, casarás comigo, já temos o nosso filho, esta é a nossa cidade, e eu ser-te-ei fiel como a casca da árvore ao tronco a que pertence, Mas, se não for assim, se o meu fado continua, então, em qualquer lugar em que me encontre estarei sujeito a mudar de um tempo para outro, nunca estaremos certos, nem tu nem eu, do dia de amanhã, além disso, Além disso, quê, perguntou lilith, Sinto que o que me acontece deve ter um significado, um sentido qualquer, sinto que não devo parar a meio do caminho sem descobrir do que se trata. (Saramago 2016, 109)
Este originalíssimo e consequente passo hermenêutico é que dá esqueleto à obra: a ordem dos episódios a contar não é determinada pelo cânone bíblico, mas pela condição de “vagabundo espácio-temporal” do personagem principal. Ainda outra vez, é por uma decisão de Deus que a própria disposição e intenção divinas são subvertidas. A Bíblia saramaguiana, que é a “Bíblia de caim” constituída em alternativa à Bíblia canónica que eleva a linhagem de Seth a princípio de ordem, nasce de uma maldição que o “Midrash” do autor português soube transformar em oportunidade. Desta forma, Saramago nem sequer se vê forçado a seguir a linha cronológica imposta pelo relato canónico, cuja autoridade se propõe contestar16.
senhor (deus)
O coprotagonista, “o senhor, também conhecido como deus” (Saramago 2016, 9), surge aos olhos do leitor de Caim como um personagem cruel. Da “intervenção cirúrgica” pela qual “enfiou a língua pela garganta abaixo” do primeiro casal (Saramago 2016, 9) até ao dilúvio universal, passando pelos repetidos atos de vingança e carnificina gratuita, tudo, ou quase tudo, no senhor transpira violência e arbitrariedade. Como observa Robert Alter, uma tal imagem da divindade bíblica reflete, sobretudo, as escolhas saramaguianas, isto é, os “lugares-tempos” bíblicos pelos quais o autor português decide levar caim17. Ainda que assim seja, cabe-nos perceber e apreciar a forma como uma tal “distorção-desconstrução” faz do texto sagrado um contrafeito “aliado”, porque, como afirma o enigmático “velho das duas ovelhas”, “nos pormenores é que está o sal” (Saramago 2016, 55).
Quem se empenhe a ler os primeiros livros da Bíblia notará que a divindade (que recebe vários nomes: Eloim, El, Yahvé, etc.) se torna rapidamente uma presença mais ou menos intermitente. Personagem principal e único interveniente ativo em Génesis 1, a divindade parece “retirar-se” uma vez feita a criação (Génesis 2), aparecendo apenas esporádica e pontualmente. O texto não dá razão da “reserva divina”, tão-pouco das variações no seu modo de aparecer: em Génesis 2-3, a divindade caminha no jardim do Éden e, em Génesis 18, visita Abraão e Sarah; no livro do Êxodo, é apenas uma voz que ressoa do meio de uma sarça ardente ou de uma coluna de nuvem; finalmente, noutros livros, suas são já só as palavras pronunciadas por outros, ou nem isso18.
Os rabinos e, antes e depois deles, numerosos intérpretes judaicos e cristãos dos textos bíblicos mostraram-se sensíveis às interrogações que uma tal “inconsistência divina” poderia despertar. Animados pela vontade de “salvar” a imagem divina e lendo cada texto à luz da totalidade do cânone das Escrituras, esforçam-se por dar razões do que outros considerariam tão só prova do comportamento errático da divindade. Por exemplo, que no livro bíblico de Ester nunca se faça menção da divindade e que ela pareça ausentar-se quando o povo enfrenta o possível extermínio (o cortesão persa Haman conspira contra eles) coloca em interdito a noção de providência. Para os rabinos, a “solução” encontra-se em Deuteronómio 31,17-18: “Nesse dia, dir-se-á: ‘Não será porque Deus não está no meio de nós, que somos atingidos por estes males?’ Eu, porém, nesse dia esconderei a minha face, por causa de todo o mal que ele [o povo de Deus] fez ao voltar-se para outros deuses.”. Aqueles astutos intérpretes fazem notar que “esconderei” em Dt 31,18 se escreve com as mesmas consoantes que o nome de Ester em hebraico: ʼ-s-t-r. Tal coincidência permite-lhes “resolver” o possível problema teológico: a divindade ausentou-se por causa do pecado do povo. Porém, mesmo quando “se esconde” (ʼ-s-t-r), continua a proteger o seu povo por meio de figuras como Ester (ʼ-s-t-r)19.
José Saramago também constata e interpreta as “intermitências divinas”. Em Génesis, o criador manifesta uma tendência para desaparecer imediatamente antes dos eventos que contradizem a ordem por si estabelecida e reaparecer logo que o crime foi consumado, para confrontar as suas criaturas. Elemento de efeito dramático no relato bíblico, tal fenómeno transforma-se em Caim em meio de caracterização: o senhor (deus) está mais interessado em castigar que em prevenir o “pecado”. No caso da desobediência de adão e eva, o sadismo divino vê-se sugerido na súbita e estrepitosa reaparição (Saramago 2016, 14: “anunciado por um estrondo de trovão, o senhor fez-se presente”) e na forma como agora se veste: “vinha trajado de maneira diferente da habitual, segundo aquilo que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla e empunhando o ceptro como um cacete” (Saramago 2016, 14). O contraste entre a grandiloquência do senhor e a infantilidade das respostas dadas por adão e eva (Saramago 2016, 14-16) reforça a mesma impressão. No episódio de caim e abel, o timing e traje divinos voltam a estar em evidência:
Foi nesse exacto momento, isto é, atrasada em relação aos acontecimentos, que a voz do senhor soou, e não só soou ela como apareceu ele. Tanto tempo sem dar notícias, e agora aqui estava, vestido como quando expulsou do jardim do éden os infelizes pais destes dois. Tem na cabeça a coroa tripla, a mão direita empunha o ceptro, um balandrau de rico tecido cobre-o da cabeça aos pés. (Saramago 2016, 30)
É caim, contudo, quem termina por expor a malícia do senhor (deus), que criara tanto a ocasião do crime como o imperativo do castigo (Saramago 2016, 30-32). Imagina, aliás, um cenário alternativo que acrescenta motivo à condenação:
Nesse momento não se lembrou de que havia dito ao senhor que ambos eram culpados do crime, mas a memória não tardou a ajudá-lo, por isso acrescentou, Se o senhor, que, segundo se diz, tudo sabe e tudo pode, tivesse feito sumir dali a queixada de burro, eu não teria matado abel. (Saramago 2016, 34)
O autor português explora também, ainda que apenas brevemente, o acima referido “ocaso” da divindade bíblica. Fá-lo pela boca do narrador, que acompanhou a vagabundagem de caim por uma série de “episódios negros” do registo bíblico que culmina na cruenta vingança do senhor contra os israelitas por causa do bezerro de ouro (veja-se Êxodo 32) e no massacre e espoliação dos madianitas às portas da terra prometida (veja-se Números 31):
Do que não há dúvida é de que as coisas estão muito mudadas. Antigamente o senhor aparecia à gente em pessoa, por assim dizer em carne e osso, via-se que sentia mesmo certa satisfação em exibir-se ao mundo, que o digam adão e eva, que da sua presença se beneficiaram, que o diga também caim, embora em má ocasião, pois as circunstâncias, referimo-nos, claro está, ao assassínio de Abel, não eram as mais adequadas para especiais demonstrações de contentamento. Agora, o senhor esconde-se em colunas de fumo, como se não quisesse que o vissem. (Saramago 2016, 90-91)
E acrescenta-se logo uma inflamatória sugestão, em tom irónico: “em nossa opinião de simples observadores dos acontecimentos andará envergonhado por algumas tristes figuras que tem feito, como foi o caso das inocentes crianças de sodoma que o fogo divino calcinou” (Saramago 2016, 91). Tal como caim, também o senhor (deus) saramaguiano nasce da letra da narrativa bíblica, que oferece ao romancista a matéria-prima para recriar “midrashicamente” a divindade do Primeiro Testamento. O que na hermenêutica crente convoca noções como providência e mistério recebe em Caim uma irreverente releitura, servindo agora para insinuar a imoralidade e patética tirania do doppelganger de invenção saramaguiana.
Dizer lá onde o texto cala: a eisegese das “lacunas”
Se a arte de explorar a ambiguidade e polissemia do texto sagrado une Saramago e os rabinos no esforço de redesenhar o perfil e destino das personagens herdadas, é possível identificar um outro parentesco metodológico na forma de elevar o “não-dito” da narrativa bíblica, que é por natureza circunspeta, à categoria de “lacuna” a preencher ou, eventualmente, aproveitar20.
Na tradição de interpretação judaica, a atenção aos silêncios da Escritura parece ser animada, pelo menos nalguns casos, por uma certa ansiedade religiosa. Recebidas como palavra divina, as prescrições cultuais e religiosas contidas na letra sagrada pecam, em geral, por lacunares: ao devoto judeu chamado a cumpri-las sobrariam mais perguntas que certezas. O “Midrash” de tipo “halákhico” atrás referido enfrenta este problema, suplementando as leis bíblicas com um sem-número de novas prescrições que são, muitas vezes, apresentadas ou justificadas com recurso a uma eisegese inventiva que subordina a letra do texto aos objetivos do leitor21. Se o preenchimento dos “vazios legais” da Torá obedece aos imperativos urgentes da consciência crente, é possível encontrar também casos de um aproveitamento mais lúdico ou didático do que ficou por dizer. No livro dos Jubileus – uma espécie de “Midrash” pré-rabínico do livro do Génesis –, reconhece-se um curioso interesse pelo destino dos animais que viviam no jardim do Éden ao tempo da expulsão do primeiro casal. A Bíblia é omissa neste ponto. Para o autor de Jubileus, uma tal “lacuna” merece ser preenchida:
Naquele dia, as bocas de todos os animais – do gado, dos pássaros, de tudo o que caminha sobre a terra – tornaram-se incapazes de falar, porque até ali podiam conversar uns com os outros numa língua comum. Ele [Deus] expulsou do jardim do Éden todos os seres vivos que estavam no jardim do Éden. Os seres vivos dispersaram-se, cada um de acordo com a sua espécie, e foram para o lugar que tinha sido criado para eles. (Jubileus 3:28-29)22
Ali se diz, portanto, que também os animais (embora inocentes) se viram expulsos do jardim e obrigados a procurar um lugar para viver no resto da terra. Além disso, é-nos dito que foram igualmente privados de fala neste dia trágico: para o autor de Jubileus, a capacidade de falar com os seres humanos evidenciada pela serpente de Génesis era comum a todos os animais e é necessário dar razão do seu desaparecimento. Resolve-se assim, com a elegância possível, um “esquecimento” bíblico.
Saramago não partilha das preocupações religiosas dos sábios judaicos, nem comunga da sua reverência pelo texto bíblico. Porém, é igualmente sensível ao que os relatos deixam por dizer e usa estas “lacunas” como “arma de arremesso” contra a divindade bíblica ou como ponto de partida para uma reformulação da trama narrativa.
Ilustrativa é a pergunta, logo no início do romance, a respeito da origem das peles de animal que o senhor ofereceu a adão e eva no dia em que os expulsou do jardim. A narrativa bíblica fala de “túnicas de peles” (Génesis 3,21), sem dizer como foram obtidas. O escritor português delicia-se a insinuar a violência subjacente ao que até parecia ser um ato benevolente: “o que não se sabia era donde tinham vindo as peles que o senhor fizera aparecer com um simples estalar de dedos, como um prestidigitador. De animais eram, e grandes, mas vá lá saber-se quem os teria matado e esfolado, e onde” (Saramago 2016, 19-20).
Outro exemplo, ainda com o casal adão e eva, prende-se com a capacidade de cumprirem o mandato-maldição divina de “arrancar alimento à terra à custa de penoso trabalho” (Génesis 3,17). Adão, o personagem do romance, lamenta-se ao querubim azael, encarregue de guardar a entrada do jardim do éden, de que ninguém lhe ensinou a trabalhar o solo, nem lhe deu os instrumentos para o fazer, nem lhe mostrou como os devia manejar (Saramago 2016, 24). Azael propõe então um plano destinado a salvar o primeiro casal e a dar a adão a oportunidade de aprender o que não sabe (Saramago 2016, 25). Novamente, o silêncio das Escrituras é a matéria pela qual Saramago desconstrói a imagem da divindade bíblica, com recurso, neste caso, às tradições extrabíblicas acerca dos anjos caídos e do seu papel como “heróis culturais”23.
O terceiro exemplo vive de uma “lacuna” que tanto os rabinos como José Saramago souberam aproveitar. No relato do “sacrifício” ou “ligadura de Isaac”, a divindade bíblica ordena a Abraão que ofereça o seu filho único em sacrifício “num dos montes que [lhe] indicar” (Gn 22,2). A história continua e nunca nos é dito de que monte se trata nem como Abraão conseguiu identificá-lo. A tradição rabínica não só preenche estes “vazios” como os transforma em oportunidade: os três dias de caminho de que fala o texto da Escritura são afinal três dias de deambulação à espera da indicação ou sinal divino; dias nos quais Abraão e o filho Isaac viram posta à prova a sua resolução em obedecer ao mandato divino24. Saramago reescreve totalmente este conhecido episódio bíblico e utiliza aquela mesma “lacuna” para dar razão, pelo menos parcialmente, do atraso do anjo encarregado de interromper o sacrifício mandado, atraso esse que quase se ia revelando fatal para Isaac. Além do “problema mecânico” na asa direita, o contrito mensageiro divino queixa-se de que “não [lhe] tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício” (Saramago 2016, 68). No romance, um tal “esquecimento divino” quase condena o já de si macabro exercício. Ironicamente, cabe a caim, um assassino proscrito, salvar uma vida inocente e assim dar ainda motivo às programadas mas vazias palavras de bênção que o anjo insiste em declamar, apesar da evidência do seu falhanço e, mais ainda, da monstruosidade do sucedido.
Acrescentar semelhança: a transferência de motivos literários
O terceiro e último ponto nesta comparação entre os “métodos” rabínico e saramaguiano de releitura dos textos bíblicos tem como foco os processos de assimilação entre relatos e personagens por meio da transferência de motivos literários. No campo do estudo da receção da tradição bíblica nas literaturas judaica, islâmica e cristã antiga e medieval, um tal fenómeno tem despertado um interesse renovado. Para aqueles intérpretes e comentadores, o cânone bíblico funciona como caixa de ressonância do que seria, afinal, uma mensagem divina una e coerente25. Uma tal convicção parece autorizar, senão mesmo reclamar, o exercício de transformar possíveis semelhanças em paralelos, num processo que sublinha os contrastes e as comparações entre personagens e serve ainda para retroalimentar a impressão de harmonia e perfeição.
Veja-se, por exemplo, o Midrash medieval Sefer haYashar, que reproduz e transforma tradições mais antigas. O “sacrifício” ou “ligadura de Isaac”, que o texto bíblico descreve como um teste, conhece ali uma importante transformação graças à transferência do motivo literário do “despique entre Deus e Satanás” que abre o livro de Job:
Num certo dia em que os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor, Satanás apresentou-se também juntamente com eles. O Senhor disse a Satanás: “Donde vens?” Ele respondeu: “Venho de dar uma volta ao mundo e percorrê-lo todo.” [...] O Senhor disse-lhe então: “Reparaste no meu servo Abraão? Não há ninguém como ele na terra: homem íntegro, recto, que teme a Deus e se afasta do mal. Pedisse-lhe eu que me oferecesse em sacrifício o seu filho e não mo negaria, quanto mais se eu lhe pedisse apenas para me oferecer em sacrifício animais do rebanho.” Disse Satanás: “Diz a Abraão o que me acabas de dizer a mim e verás se não transgredirá e rejeitará a tua palavra”. (Sefer haYashar, Wa-Yera 43b)26
Para os rabinos, não se trata finalmente de esclarecer uma possível “dúvida divina” a respeito da fidelidade de Abraão, mas de mostrar que, tal como Job, e ainda mais do que Job porque Abraão obedece sem lamentações nem perguntas, o patriarca de Génesis é capaz de um heroísmo na fé que faz lograr o plano satânico e gera espanto até entre os demónios.
No romance Caim, Saramago recorre a esta mesma “prática midráshica” com notáveis frutos. O motivo do “teste divino”, que é próprio de Génesis 22, emerge logo na interação entre caim e o senhor na sequência da morte de abel. O senhor deus reconhece que quis pôr à prova caim ao recusar repetidamente o seu sacrifício, ato que precipitou o crime (Saramago 2016, 30). Com esta transferência ou antecipação do motivo, o autor português desfaz o “mistério” à volta do agir divino em Génesis 4 e, num certo sentido, no resto da Bíblia, insinuando que se trata apenas e sempre de capricho e irresponsável experimentalismo.
Outro motivo cuja transferência serve análogo propósito é o da morte de crianças inocentes. No final do livro bíblico de Jonas, a divindade evoca a presença, em Nínive, de mais de “cento e vinte mil pessoas que não sabem distinguir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda” (Jon 4,11), isto é, crianças, como motivo para não destruir a cidade. José Saramago nota que uma tal benevolência não se aplicou noutros casos e, pela boca de caim, evoca as crianças de sodoma e das outras cidades queimadas pelo senhor, apesar da promessa de as poupar se nelas houvesse dez inocentes:
No regresso, por casualidade, detiveram-se por um momento no caminho onde abraão tinha falado com o senhor, e aí caim disse, Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e a sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas. (Saramago 2016, 76-77; veja-se também 144)
O mesmo motivo é evocado ainda a propósito dos extermínios levados a cabo em madian e jericó (Saramago 2016, 107-108), naquilo que é uma justa obsessão do autor português com a violência perpetuada em nome de uma divindade que se mostra tão seletiva, ou dir-se-ia errática, em suas fúrias e compaixão.
Este exercício concreto da arte da reescritura desempenha um papel igualmente importante na caracterização de lilith. Resgatada ao fundo mitológico judaico-cristão, lilith transforma-se no romance numa figura humana e humanizadora27. Para tal contribui também a subtil assimilação de lilith com as personagens bíblicas da mulher de Putifar e Bathsheba. Herda da primeira uma vibrante energia sexual e a iniciativa: o “entra” à double entente de lilith (Saramago 2016, 49-50) evoca o escandaloso “deita-te comigo” da mulher de Putifar em Gn 39,12. Este jogo literário transforma ainda caim numa espécie de anti-José (o personagem bíblico que é filho de Jacob e bisneto de Abraão): à heroica resistência de José aos avanços da mulher de Putifar, opõe-se a rendição incondicional do protagonista do romance aos encantos e ao irresistível poder de lilith.
Por seu lado, a lilith saramaguiana pede emprestada à figura de Bathsheba a cena que desperta o desejo do rei David, para dizer a expressão livre da sua sensualidade de femme fatale:
Certa tarde David levantou-se da cama, pôs-se a passear pelo terraço do palácio e avistou dali uma mulher que tomava banho e que era muito formosa. (1 Samuel 11,2)
Lilith não se encontrava no quarto, estaria na açoteia, nua como era seu costume, a tomar o sol. (Saramago 2016, 55)28
Finalmente, é possível ver na suposta copulação de lilith com os dois irmãos, “o falso abel” e o muito real caim (Saramago 2016, 56: “vamos para a cama, [...] foste o abel que conheci entre os meus lençóis, agora és o caim que me falta conhecer”), a inversão do motivo bíblico do homem que casa com duas irmãs (veja-se, por exemplo, Jacob, que casa com as irmãs Leia e Raquel, de acordo com Génesis 29), num jogo de contraste que acaba por denunciar e desconstruir o patriarcalismo da versão canónica.
Conclusão
Caim é um romance admirável na forma como interage com o texto bíblico. Saramago deleita-nos com uma mordaz releitura das histórias sagradas e uma contundente crítica das tradições de interpretação judaico-cristãs, mas fá-lo com e a partir da letra da Escritura. Na heterodoxia saramaguiana, há, por isso, uma certa forma de “ortodoxia” ou “ortopraxis” hermenêutica. Este surpreendente lado da arte da reescritura saramaguiana tem sido, em grande medida, ignorado ou, pelo menos, obscurecido pela repetida insistência em considerar antes de mais, senão quase exclusivamente, a intenção e os resultados “dessacralizadores” de romances como Caim ou ainda O evangelho segundo Jesus Cristo.
Convocando a tradição midráshica clássica como ponto de referência e comparação, cremos ter demostrado, neste breve estudo, que, pelo menos no caso de Caim, José Saramago inscreve o seu esforço de releitura das narrativas bíblicas numa longa linhagem de intérpretes, replicando os seus métodos e práticas. Esta qualidade “midráshica” da escrita saramaguiana é simultaneamente um tributo ao génio rabínico e a prova de que o autor português nada deve em arte e engenho àqueles primeiros e devotos leitores. É, por isso, “entre os rabinos” que é justo colocar ou reconhecer Saramago, qual irreverente e sacrílego mestre do milenar ofício de dar ao texto bíblico as palavras que lhe faltam.