Deste mundo e do outro: um Saramago em botão

  • Deste mundo e do outro : un Saramago en herbe
  • This World and the Other: a Saramago in the Making

Publicado em livro pela primeira vez em 1971, Deste mundo e do outro é composto pelas 61 crónicas que José Saramago publicou no jornal A Capital entre 1968 e 1969. A nossa reflexão tem como objetivo perceber de que modo os temas abordados nestes textos breves vieram a servir de lençol freático literário para aquilo que seriam os grandes romances escritos a partir do final da década de 70. Se é verdade que foram obras como Levantado do chão, Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo, entre tantas outras, que tornaram Saramago num escritor de latitudes universais, não é menos certo afirmar que muitos dos temas e motivos abordados nos romances encontram-se já nas crónicas. Falar, portanto, de um Saramago em botão é dar luz a um campo da narrativa saramaguiana que merece mais atenção, pois é nele que encontramos muita da seiva literária que o escritor virá a utilizar no seu labor.

Publié pour la première fois sous forme de livre en 1971, Deste mundo e do outro comprend 61 chroniques que José Saramago a publiées dans le journal A Capital entre 1968 et 1969. Notre réflexion vise à comprendre comment les thèmes abordés dans ces textes succincts ont contribué à l’édification des grands romans écrits à partir de la fin des années 70. S’il est vrai que des œuvres telles que Relevé de terre, Le Dieu manchot, L’année de la mort de Ricardo Reis, L’Évangile selon Jésus-Christ, parmi tant d’autres, ont fait de Saramago un écrivain universel, nous pouvons également affirmer que nombre des thèmes et motifs abordés dans les romans se retrouvent déjà dans les chroniques. Parler donc d’un Saramago en herbe, c’est mettre en lumière un domaine de la production de Saramago qui mérite plus d’attention, car c’est là que l’on retrouve une grande partie de la sève littéraire qui nourrira son œuvre.

Published in book form for the first time in 1971, This World and the Other comprises 61 chronicles that José Saramago published in the newspaper A Capital between 1968 and 1969. Our reflection aims to understand how the themes addressed in those short texts contributed to the development of the great novels written from the end of the 70s onwards. If it is true that works such as Raised from the Ground, Baltasar and Blimunda, The Year of the Death of Ricardo Reis, The Gospel According to Jesus Christ, among many others, have made Saramago a universal writer, it is no less true to say that many of the themes and motifs addressed in the novels can already be found in the chronicles. To speak, therefore, of a Saramago in the making is to shed light on a field of Saramago’s narrative that deserves more attention, as it is there that we find much of the literary sap that will feed his work.

Plan

Texte

Texto integral

Uma árvore geme se a cortam, um cão gane se lhe batem, um homem cresce se o ofendem.
José Saramago,
O evangelho segundo Jesus Cristo

Celebrar o centenário de José Saramago é um ato de civilização e de cultura. O único Prémio Nobel da Literatura em língua portuguesa ocupa o lugar dos imorredouros, não só pela sua escrita única, mas também pelas suas personagens, reflexo da condição humana, assim como do seu constante empenho no pensamento sobre a existência desta espécie que somos, ao mesmo tempo bondosa e capaz das maiores atrocidades.

O autor de Levantado do chão é mormente conhecido pela escrita de romances, espaço, de resto, onde conquistou o seu lugar ao criar uma voz e um estilo único e tão característico. No entanto, cremos que a voz do Saramago romancista e criador de mundos e personagens surge nos finais dos anos 60, com a escrita das crónicas publicadas pela primeira vez no jornal A Capital, entre 1968 e 1969, e reunidas em livro em 1971, sob o título Deste mundo e do outro.

Assim, se “um homem cresce se o ofendem” (Saramago 1991, 324), como ficou plasmado na epígrafe que agora recuperamos, não é menos certo afirmar que um livro, uma escrita e um escritor nascem se forem cultivados e lidos. É o caso da escrita e da obra de José Saramago. Falar, pois, de um Saramago “em botão”, parafraseando, assim, as palavras que Pessoa escreveu sobre Álvaro de Campos na famosa carta a Adolfo Casais Monteiro (Pessoa 1999, 344), é dar luz a um campo da narrativa saramaguiana que merece mais atenção, pois é nele que encontramos muita da seiva literária que o escritor virá a utilizar no seu labor.

Antes de mergulharmos na obra, escutemos as palavras de Saramago a propósito da escrita das crónicas, pois é na palavra pensada, dita e escrita que podemos apresentar novos horizontes de expectativa e novas linhas de reflexão.

Em Diálogos com José Saramago, Carlos Reis pergunta ao escritor se ele tem noção “de que a sua obra – vamos agora falar dos anos 70 em diante – evoluiu” (Reis 2015, 44). A resposta do Nobel não podia ser mais direta:

Eu não sei se ela evoluiu. Penso que temos que voltar um pouco atrás, ou seja, às crónicas que foram mais ou menos publicadas entre os anos 68 e 72; são crónicas que eu publiquei n’A Capital e no Jornal do Fundão. Acho (o estudioso pode ter outra opinião, perfeitamente legítima e se calhar mais fundada), acho que, para entender aquele que eu sou, há que ir às crónicas. As crónicas dizem tudo [...] aquilo que eu sou como pessoa, como sensibilidade, como perceção das coisas, como entendimento do mundo: tudo isso está nas crónicas. (in Reis 2015, 44)

O autor d’O ano da morte de Ricardo Reis coloca, assim, as crónicas como um marco inicial, uma fons et origo, o lençol freático literário de tudo aquilo que o romancista viria a ser. Se é certo que o romancista não é o cronista, não será falso afirmar que é também graças ao cronista, e à sua escrita desimpedida e escorreita, que o romancista se descobriu por inteiro durante a oficina de Levantado do chão.

Recuando até 1968 e à correspondência que Saramago trocou com José Rodrigues Miguéis, é fácil entender como este último vislumbra nas crónicas de Saramago uma nova forma de escrever e de perscrutar o mundo. Escreve Miguéis a 24 de julho de 1968:

As suas Crónicas são excelentes, por vezes óptimas, e sempre de leitura absorvente; novas ou pelo menos raras no nosso ambiente de doutrinas [...]. Nunca [...] cai no fácil, no corriqueiro, no sentimental de bairro [...]. Você consegue sempre evitá-lo, mesmo nos quadros de rua [...] consegue sempre ser simples (que é o mais difícil) dentro da complexidade do seu estilo de Poeta. Porque estas crónicas são de um Poeta, pela visão e pela linguagem: algo críptica (como é devido!) mas sempre sugestiva e tão visual, e em geral risonha. (in Pereira 2010, 256, destacado do autor)

Não podemos esquecer o facto de que, à data, Saramago tinha publicado, para além de Terra do pecado (1947), dois livros de poesia, Os poemas possíveis (1966) e Provavelmente alegria (1970), daí o escritor e dramaturgo falar de Saramago como um poeta e não como um prosador ou romancista. Todavia, é na observação seguinte de Miguéis que podemos antever tudo aquilo que Saramago seria, e talvez já o fosse, seguramente, não apenas como artista, mas sobretudo como cidadão e ser humano:

Você desenha e colora a escrever! [...] Ao invés dos nossos cronistas e comentadores sentenciosos, que tudo vêem através dos vidros defumados de doutrinas mal digeridas, V. tem uma “filosofia” que, sem ser otimista, antes levemente céptica, amarga e protestante, nos leva a crer e a agir. (in Pereira 2010, 257)

Ora, Miguéis enfatiza ao mesmo tempo a subjetividade criativa de Saramago e a sua capacidade crítica e de observação. Ainda antes do romancista que viria a ser, o cruzamento de autor e narrador surge de forma evidente nas crónicas, não só por ser um género narrativo em que se relata, em termos subjetivos e de forma breve, “um episódio singular, um incidente ou uma ação observados no quotidiano do cronista”, mas também por traduzir “uma certa temporalidade histórica e uma circunstância de vivência pessoal”, como escreve Carlos Reis (2018, 69). O Saramago cronista é já, ainda que em botão, o Saramago romancista que surgiria anos depois.

Se é certo que hoje parece ser mais simples e cómodo afirmar que o cronista tinha já em si aquilo que viria a ser o escritor, uma vez que é uma observação feita a posteriori, a verdade é que os temas abordados, assim como as linhas de reflexão e pensamento, mais do que evidenciarem o artista, falam do homem e do cidadão.

Assim, ao invés de tentadoramente colocarmos Saramago na linha daqueles escritores que começaram a sua carreira escrevendo crónicas, qual vocação narrativa – lembremos Eça de Queirós no Distrito de Évora, por exemplo –, recuperemos as palavras do autor de Caim:

Provavelmente o que há é o seguinte: é que não só nas crónicas, mas em tudo aquilo que foi sendo escrito, incluindo as crónicas políticas, incluindo a poesia de que se fala pouco [...], é possível fazer isso a que chamo as preocupações da pessoa que o autor é, independentemente de méritos estéticos. E penso que assim se observaria uma coerência, uma tentativa, um esforço para dizer e para dizer-se que pode ser uma espécie de fil rouge que acompanha toda a obra. (Reis 2015, 55)

O que as crónicas ajudam a descobrir é, pois, aquilo que o nosso Nobel é como pessoa, “bem como aqueles que serão os temas e alguma coisa do seu futuro estilo enquanto autor, [...] verdadeiro manancial, ou manual, [...] do universo ficcional da pessoa-escritor” (Arnaut 2008, 18, destacado da autora).

A capacidade de ver e de observar do Saramago cronista, que é também o Saramago escritor e cidadão, será aprofundada e desenvolvida ao longo da sua carreira literária, pois, nas palavras do próprio:

O que há ali são livros que eu, como cidadão, como pessoa que sou, diante do tempo, diante da morte, diante do amor, diante da ideia de um Deus existente ou não, diante de coisas que são fundamentais (e que continuarão a ser fundamentais), procuro colocar ali o conjunto de dúvidas, de inquietações, de interrogações que me acompanham e que podem ser de carácter tão imediatamente político [...] como podem ser interrogações de outro tipo. (Reis 2015, 47)

Num artigo intitulado “O autor como narrador”, Saramago volta a falar da importância do cidadão que escreve e se identifica com o narrador: “um livro é, acima de tudo, a expressão de uma parcela identificada da humanidade: o seu autor” (Saramago 1997, 40). Ver, observar, pensar no que se viu e transformá-lo em escrita é, pois, um ato de consciência cívica, ao mesmo tempo que pode ser um ato estético-literário.

Mergulhemos nas crónicas para melhor entendermos como o Saramago de Deste mundo e do outro vê as coisas a partir da escrita. Na crónica intitulada “O fato virado”, o autor reflete sobre o último dia do ano e sobre as pessoas fazerem projetos de mudanças que nunca irão concretizar, colocando em evidência não só a nossa hipocrisia, como a nossa preguiça e comodismo. Escreve o cronista:

Incorrigível fabricante de ilusões, o homem (eu, tu, aquele) nunca o é tanto como no último dia do ano. [...] Pois no último dia do ano viramos fatos. O mentiroso vai ser verdadeiro, o hipócrita será sincero, o leviano descobre que a constância é virtude que lhe convém, o invejoso já promete aplaudir, o avarento começa a desabotoar as algibeiras. Enfim, o que é mau, prejudicial e nocivo, ali mesmo se desdiz e arrepende. Vai principiar a fraternidade universal. E isto é tão certo que ainda os calendários designam assim o primeiro dia de janeiro. [...] E não há remédio para isto? Pois não há, não. A natureza humana é mesmo assim e o homem lobo do homem, declara o meu barbeiro, que tem o espírito tão afiado como a navalha com que não me barbeia. (Saramago 1986, 84)

A par das reflexões sobre a natureza humana, o cronista intercala de forma sadia e harmoniosa aquilo que é a sua opinião com a introdução de uma personagem do quotidiano, um barbeiro que adquire o estatuto de sábio, ao proferir o adágio “homem lobo do homem”, que Saramago irá explorar, posteriormente, em diversas obras, como os Ensaios ou As intermitências da morte, entre outras. E o cronista continua:

Mas não será possível?, insiste esta ingenuidade de nascença que alguns desgostos me tem dado. Possível, possível, talvez, é o que responde o meio-oficial dando enérgicas e rápidas tesouradas na atmosfera. Mas era preciso um mundo diferente. Primeiro, que todos os dias fossem o último do ano, para não dar tempo a arrefecerem as promessas. Depois, e aqui é que está a dificuldade maior, que a verdade fosse tão lucrativa como a mentira, que a sinceridade desse mais proventos que a hipocrisia. E por aí fora, trocando tudo. Afundo-me na cadeira, desanimado. Julgava-me com um barbeiro e sai-me um profeta, um Elias. Quando, finalmente, me apanho na rua, respiro. Procuro bem dentro de mim e encontro os defeitos todos. Não me falta nada. Nem sequer a frase que atiro à mulher que pede esmola: “Tenha paciência”. Pois a paciência é também uma virtude, como todos nós aprendemos e não esquecemos. (Saramago 1986, 84-85)

O diálogo encetado com o barbeiro e a sua elevação a personagem, ainda que fugaz, fazem do cronista um narrador que pode, assim, legitimar as suas opiniões e observações sobre o mundo e sobre aqueles que nele habitam. Deste modo, o Saramago cronista e cidadão é também um ensaísta imbuído da mais completa humanidade. Quando escreve “procuro bem dentro de mim e encontro os defeitos todos”, o cronista-autor-narrador não se exclui do mundo em que vive. Antes pelo contrário, participa nele de forma ativa. Não por acaso, Saramago dirá: “provavelmente eu não sou um romancista; provavelmente eu sou um ensaísta que precisa de escrever romances porque não sabe escrever ensaios” (Reis 2015, 50).

A crónica é também ela um laboratório de escrita, de observação e de análise. O espaço ou o lugar das pinceladas breves, do manual que se irá pintar e escrever com palavras, personagens e mundos.

No aparente desfasamento que surge no final da crónica já citada, encontramos uma relação com as palavras de George Steiner em O silêncio dos livros:

Enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada? As torres que nos isolam são mais sólidas do que o marfim. (Steiner 2007, 49)

Acreditamos que o teor da reflexão de Saramago quando escreve em relação aos seus defeitos e aos da humanidade é o que também ocupa o pensamento de Steiner. A mesma humanidade que escutava as cantatas de Bach ou as sonatas de Beethoven durante a noite era capaz de, no dia seguinte, queimar e matar em câmaras de gás milhares de pessoas inocentes.

Enquanto cronista, Saramago sai do barbeiro sentindo-se um Esteves sem metafísica que se apercebe da crueldade do ser humano; em Steiner, por seu turno, é a angústia de tentar perceber como é que a mais subida humanidade e cultura permitem a injustiça, a fome, a guerra, a barbárie e a morte. O cronista que sai da barbearia e relata a sua história é já o Saramago que se diz “pessimista e cético em relação a esta coisa que nós chamamos espécie humana, em relação ao que estamos a fazer do mundo e de nós próprios” (Reis 2015, 51). O discurso narrativo do nosso Nobel revela, desde as suas primícias, “uma tentativa literária de instauração paradigmática de uma nova cultura e de uma nova sociedade” (Real 2021, 207).

Intitulada “A cidade”, a crónica que abre Deste mundo e do outro encontra-se pejada de referências intertextuais, seja em relação à narrativa homérica e às batalhas mitológicas, seja ainda ao episódio bíblico de José no Egito.

Naturalmente que as reverberações literárias, mitológicas e culturais acabam por ter impacto biográfico, pois o homem “que vivia fora dos muros da cidade” (Saramago 1986, 11) pode muito bem ser o Saramago escritor e cronista que chega a Lisboa praticamente desconhecido do mundo literário português.

A crónica termina quase da mesma forma como se inicia, com a intemporal expressão que serve para desatar o novelo de qualquer história: “Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome” (Saramago 1986, 13).

A cidade de José é Lisboa, mas parece-nos mais pertinente ver nas crónicas a verdadeira cidade que o cronista relata e (re/des)constrói, invocando memórias, lugares, pessoas e acontecimentos que ultrapassam o contexto particular e nacional, mas sem nunca o esquecer ou pôr de parte.

No que diz respeito à memória, Saramago invoca não só a velha casa da infância, como também os seus avós, Josefa Caixinha e Jerónimo Melrinho. Aliás, este cenário e estas figuras voltarão a aparecer em A bagagem do viajante, de 1973, no discurso de Estocolmo, em 1998, e posteriormente, em 2006, n’As pequenas memórias.

Na crónica intitulada “As bondosas”, o autor recupera a casa da infância enquanto invoca a importância da memória com a passagem do tempo:

O desaparecimento das coisas é grave. Se me é permitido exprimir-me assim, direi que a casa organizava o espaço de uma certa maneira [...]. E agora estava ali outra casa [...]. Vi e passei adiante, e nem sequer olhei para trás. Nada tinha que ver com o que ali ficava: uma casa sem passado, que o virá a ter, por certo, mas que, moldado num outro espaço, não será meu. Desta maneira é que morrem as infâncias, quando os regressos já não são possíveis, porque as pontes cortadas baixam para a água infatigável as vigas desunidas no espaço alheio. Então não há outro remédio senão fazer como a cobra: largar a pele em que já não se cabe, deixá-la no chão, entalada no mato rasteiro, e passar à idade seguinte. A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver. (Saramago 1986, 40)

Os regressos impossíveis transformam-se, pois, em matéria de uma crónica, superando assim a barreira do tempo e da sua inexorabilidade. Todo o espaço, toda a infância, todos os lugares se tornarão um dia inevitavelmente numa memória. Por seu turno, a memória presente nestas crónicas, para além de servir de mecanismo de recuperação ou preservação de um passado, serve também como âncora ou fio condutor do escritor que Saramago virá a ser.

Em A salvação do belo, Byung-Chul Han escreve que “a vista mantém a distância” e que, sem a distância, “não é possível a mística” (Han 2016, 14). Relendo hoje as crónicas presentes em Deste mundo e do outro, torna-se evidente não só o fulgor literário que Saramago irá explorar no futuro, mas também a oficina do romancista em criação, uma vez que a escrita e as reflexões do autor português demostram desde logo a sua vocação narrativa e literária.

Recuperando o texto “A crónica como aprendizagem: uma experiência pessoal”, dos anos 1990, Saramago escreve o seguinte sobre a relação entre as crónicas e os romances que lhes sucederiam:

E à pergunta, ingénua mas inevitável, de se ao escrever aqueles textos breves nos estávamos preparando, conscientemente, para o romance, a única resposta honesta que podíamos dar, e temos dado, foi a de que, então, nos encontrávamos tão longe da simples ideia de um dia virmos a escrever histórias de trezentas ou quatrocentas páginas [...]. De todo o modo, os factos estão à vista: entre a primeira linha da primeira crónica e a última linha do último romance, parece ser discernível um fio contínuo ligando tudo [...] a esses romances para os quais a crónica foi insciente aprendizagem, que sem ela não teriam existido, ou teriam existido de outra maneira, para nós inimaginável. (Saramago 1990, n.p.)

Sem as crónicas, os romances e as obras posteriores não teriam sido como foram e, de facto, os sinais encontram-se em diversos textos1. A universalidade da condição humana parece surgir ao longo de várias crónicas, através da reflexão em torno de episódios e personagens que expõem tanto da nossa grandeza, união e generosidade como da nossa malvadez, hipocrisia e injustiça.

Em “Carta para Josefa, minha avó”, Saramago realça a beleza e a serenidade daquela mulher que, aos noventa anos, com o fogo da “adolescência nunca perdida”, afirma: “o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!” (Saramago 1986, 28). Já na crónica “O meu avô, também”, o autor destaca o valor do silêncio e da palavra, da palavra que salva quando usada no tempo certo e de forma exata, capaz de habitar e superar o tempo e a memória, transformando-se, portanto, em literatura:

Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira – ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia [...]. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. (Saramago 1986, 30-31)

Isabel Moutinho, num artigo intitulado “A crónica segundo José Saramago”, escreve que o desiderato do autor é, desde logo e desde aquelas crónicas que constituem Deste mundo e do outro, “a vontade de superar o efémero”. De facto, a tal esforço interessará, “para além da limitação temporal da crónica, a do próprio ser humano” (Moutinho 1999, 81). É o que acontece nas crónicas “O amola-tesouras”, “Salta, cobarde”, “O planeta dos horrores” e “A neve preta”.

Em “O amola-tesouras”, o cronista recupera essa figura da sua memória e do passado, introduzindo-o sem pretexto aparente: “como vou eu agora, por exemplo, saber por que bulas me aparece um homenzinho de boina basca desabada, a empurrar a sua maquineta de uma roda só” (Saramago 1986, 33). O aspeto da figura, assim como a efabulação que Saramago dela faz, transformam-na num elaborado esboço de uma personagem. Leiamos as palavras e a criação do ambiente externo e íntimo para vermos o amolador:

A rua estava tranquila, recatada, com roupas às janelas, talvez cravos, se era o tempo deles, ou sardinheiras, que têm o tempo quase todo. [...] A mim, que espreitava por trás dos vidros, fazia-me arrepios a expressão concentrada do amolador, atento ao fio, como se para ele não houvesse (e não havia) missão mais importante na vida do que dar a cada qual um gume bem vivo que serviria para a prosaica tarefa de descascar batatas, para degolar menos prosaicamente uma galinha (eram então raridade os frangos), ou pôr ao sol as tripas de um inimigo. Indiferente, o amolador dava o gume. Quanto à serventia, se lho perguntassem, talvez respondesse com uma ária da sua flauta. Às tantas, sumia-se. [...] Entretanto, ao longe, o som da flauta esmorecia. E eu, rapazinho que vivia apertado na pele que lhe coubera, lançava o bafo às vidraças e traçava desenhos incompreensíveis, com a vaga inquietação de quem adivinha que há nas coisas sentidos ocultos que só ocultamente podem ser entendidos. (Saramago 1986, 34)

Do aparente prosaico de uma crónica, surgem ideias e diversas realidades sobre o trabalho do amola-tesouras. É a imaginação do cronista criança, mas também do cronista homem adulto, que constrói uma possibilidade de leitura sobre aquela personagem. A ária da flauta daquele homem parece encantar e seduzir, como Hamelin.

Nas crónicas “‘Salta, cobarde!’” e “O planeta dos horrores”, Saramago realça a maldade humana e revela um pessimismo latente em relação aos nossos comportamentos e atitudes. Na primeira, o cronista relata a história do suicídio de um jovem alemão incentivado por transeuntes que observam o seu desejo de saltar de uma altura considerável. Ainda que caia na rede estendida pelos bombeiros, o jovem Jürgen não resiste às lesões e hemorragias internas. Escreve Saramago:

Era esta história que eu tinha para contar. Aí a tem, leitor. Faça dela o que quiser. Neste planeta Terra, que os homens habitam, há horas de felicidade, sorrisos, amor, alguma beleza, flores para todos os gostos. E há os monstros. Não se distinguem de nós, que o não somos. Têm um lar, família, amigos, uma vida normal. [...] Disseram apenas: “Salta, cobarde!”. Depois vão jantar, dormem em boa paz, defendidos pela lei e defensores dela. E beijam os filhos. Adeus, Jürgen. Que desgostos seriam os teus, não sei. Mas que desgosto maior que este de viver no meio de uma humanidade assim? (Saramago 1986, 184)

Da mesma substância é a crónica “O planeta dos horrores”:

Se o leitor cuida que eu sou masoquista, desengane-se. Gosto da luz do dia, da claridade, do aperto de mão de um amigo, de uma boa palavra reconfortante, gosto da esperança, amo o amor, amo a beleza das coisas e das pessoas (que todas são belas) – mas tudo isto me pode ser tirado de um momento para o outro. Em todo o mundo há mísseis apontados para todo o mundo, por cima do mundo cruzam-se aviões com bombas nucleares capazes de derreter o mundo, em certos sítios do mundo estão guardadas bactérias suficientes para exterminar a vida em todo o mundo. (Saramago 1986, 192)

Em ambas as crónicas, recuperamos a ideia de um Saramago atento aos problemas do mundo e à crueldade humana, refletindo, tal como Steiner, sobre a possibilidade de viver num mundo capaz de criar Romeu e Julieta, Anna Karénina e, ao mesmo tempo, guerras, pestes e todo o tipo de injustiças e desigualdades. A substância dos textos continua atual porque somos a mesma humanidade, a mesma matéria, com a diferença de termos mais conhecimento e/ou informação e acesso ao conhecimento e experiência do mal, do bem, da justiça e da injustiça. Não por acaso, nos Cadernos de Lanzarote, Saramago escreve, a 21 de janeiro de 1997: “apesar de tudo, não creio que o mal seja o motor que faz bater o coração humano. Embora me pareça igualmente que não é o bem que o faz bater” (Saramago 1999, 23).

É esse ceticismo consciente e atento das crónicas que surgirá, posteriormente, nos romances. Na crónica “A neve preta”, Saramago ilumina, uma vez mais, as funduras da alma humana, desta feita através do desenho de uma criança que pinta a neve de preto. Impaciente, a professora não compreende, revelando, deste modo, a face intolerante e irascível do ser humano:

Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê? “Porquê?”, pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. [...] A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: “Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu.” Daqui por um mês chegaremos à lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu? (Saramago 1986, 205)

A sensibilidade de um cronista, de um homem e de um cidadão que nunca exclui a livre reflexão e o pensamento próprio dos seus textos, sejam eles textos escritos para um jornal, sejam romances, é uma das marcas que fará de Saramago um autor de alcance universal.

Não por acaso, um ano após a saída de Deste mundo e do outro, João Palma-Ferreira escreveu uma recensão sobre a obra afirmando que a José Saramago “ficamos a dever um dos mais belos livros de crónicas até agora publicados em Portugal” (Palma-Ferreira 1972, 83). Para o ensaísta, esta obra de Saramago ultrapassa a mera terminologia, uma vez que não será fácil “classificar este livro caleidoscópico onde a realidade é atacada pelo irreal [...]. Nem será necessário classificá-lo: crónicas, contos, antecipação, memorialismo, confissão... que importa o rótulo?” (Palma-Ferreira 1972, 84).

Um outro tema que este Saramago em botão aborda nas crónicas e que estará presente sobremaneira em muitos dos seus romances é o da história enquanto narrativa do que aconteceu, do que não aconteceu e do que poderia ter acontecido, lógica, aliás, muito cara à estética post-modernista.

Na crónica “O Direito e os sinos”, Saramago resgata uma figura esquecida da história, neste caso, da história italiana, mas que, pela sua representatividade, é um símbolo de todas as personagens, de todos os momentos e realidades esquecidos pela história ou que não ficaram registados por não terem do seu lado o poder político, religioso ou institucional. Escreve o nosso Nobel:

Que é, que não é, quem morreu que não sabemos – e eis que o sino se cala e à porta da igreja aparece o camponês que estivera a fazer as vezes de sineiro. Dobra o espanto como tinha dobrado o sino, e, às perguntas, o camponês responde: “Toquei a finados pelo Direito, porque o Direito morreu.” Assim mesmo, como quem já sabia que falava para a História. Este camponês, diz o narrador, via todos os dias o senhor da terra tirar-lhe uma fatia do seu pequeno campo. Reclamou, protestou, sem resultado. Então decidiu anunciar urbi et orbi – o mundo pode ter o tamanho de uma aldeia – a morte do Direito. Se a história é inventada, juro que não a inventei eu. Encontrei-a, num livro, preto no branco, em letra de forma, com nome de autor e editor – todas as garantias, portanto. Vou, pois, pela verdade deste camponês e do seu acto, no século XVI e em Florença. E agora imaginemos os sinos do mundo, em todos os templos que usem sinos para chamar, chorar e protestar, dobrando a finados, num ressoar universal que salta de cidade em cidade, por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras por sobre os oceanos. Vamos ensurdecer todos. Quem poderá suportar este clamor? Não há, bem sabemos, maneira de remediar as muitas injustiças da vida. Mas o esquecimento a que estava condenado o meu camponês, antes de eu o descobrir no século XVI e em Florença, passa, por obra minha, a ter emenda. Proponho, pois, um grande peditório público para um monumento ao aldeão anónimo que fez do seu coração ofendido um sino. (Saramago 1986, 148-149)

O monumento ao esquecido, ao pobre, ao oprimido, enfim, ao anónimo, será uma constante na obra de Saramago. Lembremos, de imediato, os Mau-Tempo de Levantado do chão.

A preocupação de Saramago levá-lo-á, na sua obra, a resgatar e a invocar para a história todos aqueles que não têm voz, recuperando as palavras de Paul Ricœur, quando o filósofo se refere a estas pessoas como as “ausentes da história”, isto é, “viventes que existiram antes de se tornarem ausentes” (Ricœur 2007, 374). Esta lógica está muito presente na narrativa saramaguiana; vejamos por exemplo, a seguinte descrição do Memorial do Convento:

Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, mas nenhum o tal, [...] e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos. (Saramago 2016, 266-267)

Podemos ver como “a ficção histórica [...], mesmo parodicamente, mais e melhor se identifica com o conteúdo da História que, de um modo ou de outro, sempre tende à recuperação do passado” (Arnaut 2002, 310). Eduardo Lourenço escreve que a ficção saramaguiana nasce de um propósito de reescrever uma história que já está escrita, e que se vive e aceita como verdade “de uma época ou de um mundo, ou da humanidade quando ela é a sua ficção não inocente” (Lourenço 2017, 279). Já Fokkema, a propósito do universo do post-modernismo, diz-nos que:

As palavras inventam o nosso mundo, dão forma ao nosso mundo, tornaram-se a única justificação para o nosso mundo. Por essa razão, o pós-modernista continua a falar, ainda que tenha consciência de que não pode fazer mais do que reciclar significados cristalizados. (Fokkema 1988, 70)

É certo que o caminho que vai das crónicas de finais dos anos 60 até ao começo da escrita dos romances é longo. Todavia, os temas, as ambiências, alguns lugares e imaginários começam a ser esboçados naqueles breves textos, ainda que de forma insciente. Transversal a toda a obra saramaguiana, no género e no tempo, é a importância da palavra, do pensamento e da reflexão.

De acordo com Lamberto Maffei, “só a escola [...] pode formar o modo de pensar e de agir” (Maffei 2019, 70); no entanto, a escrita de Saramago, e neste caso, as suas crónicas, são já uma forma de ler o mundo e de agir com as palavras. Se um homem cresce quando o magoam, uma crónica pode vir a ser um romance, ou, dito de outra forma, um cronista pode esboçar barbeiros filosóficos da mesma forma que o romancista cria mulheres que veem o interior das pessoas.

Bibliographie

ARNAUT, Ana Paula. José Saramago. Lisboa: Edições 70, 2008.

____________ Post-modernismo no romance português contemporâneo: fios de Ariadne, máscaras de Proteu. Coimbra: Almedina, 2002.

FOKKEMA, Douwe W. História literária: modernismo e pós-modernismo. Lisboa: Vega, 1988.

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LOURENÇO, Eduardo. O canto do signo: existência e literatura (1957-1993). Lisboa: Gradiva, 2017.

MAFFEI, Lamberto. Elogio da palavra. Trad. José Serra. Lisboa: Edições 70, 2019.

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PALMA-FERREIRA, João. “Deste mundo e do outro, de José Saramago”. Colóquio/Letras. Março 1972, nº 6, p. 83-84.

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PESSOA, Fernando. Correspondência (1923-1935), v. II. Ed. Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.

REAL, Miguel. Pessoa & Saramago. Lisboa: D. Quixote, 2021.

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____________ Dicionário de estudos narrativos. Coimbra: Almedina, 2018.

RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

SARAMAGO, José. “A crónica como aprendizagem: uma experiência pessoal”. Anos 1990. URL: https://www.josesaramago.org/conferencia/a-cronica-como-aprendizagem-uma-experiencia-pessoal/ [acessado em 20 de junho de 2022].

____________ Cadernos de Lanzarote: diário V. Lisboa: Caminho, 1999.

____________ Deste mundo e do outro. 3ª ed. Lisboa: Caminho, 1986.

____________ Memorial do Convento. Lisboa: Porto Editora, 2016.

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STEINER, George. O silêncio dos livros. Trad. Margarida Sérvulo Correia. Lisboa: Gradiva, 2007.

THIMÓTEO, Saulo Gomes. Está lá tudo: a crônica e o cosmos de José Saramago. Curitiba: Editora Appris, 2016.

Notes

1 Para uma leitura diversa e com outro aprofundamento, ver o livro de Saulo Gomes Thimóteo (2016). Retour au texte

Citer cet article

Référence électronique

José Vieira, « Deste mundo e do outro: um Saramago em botão », Reflexos [En ligne], 7 | 2023, mis en ligne le 21 avril 2023, consulté le 25 avril 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/1560

Auteur

José Vieira

CLEPUL / Università degli Studi di Padova

jose.vieira@unipd.it

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