Saramago e o cinema: metaficção e autorreflexividade como expressão política

  • Saramago et le cinéma : métafiction et autoréflexivité comme expression politique
  • Saramago and Film: Metafiction and Self-Reflexivity as Political Expression

O presente trabalho propõe, a partir da leitura dos romances Ensaio sobre a cegueira e O ano da morte de Ricardo Reis e de suas adaptações fílmicas, por Fernando Meireles e João Botelho, analisar de que maneira o discurso cinematográfico se apropria dos romances de José Saramago no sentido de aderir à sua natureza metaficcional e política, compondo textos fílmicos de feição autorreflexiva.

Ce travail propose, à partir de la lecture des romans L’aveuglement et L’année de la mort de Ricardo Reis et de leurs adaptations cinématographiques par Fernando Meirelles et João Botelho, d’analyser comment le discours cinématographique s’approprie les romans de José Saramago dans le sens d’adhérer à leur nature métafictionnelle et politique, en composant des textes filmiques à caractère autoréflexif.

This work proposes, based on the reading of the novels Blindness and The year of the death of Ricardo Reis and their filmic adaptations by Fernando Meirelles and João Botelho, to analyze how the cinematographic discourse appropriates José Saramago’s novels in the sense of adhering to their metafictional and political nature, thus composing filmic texts with a self-reflexive feature.

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Texte

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I. Ensaio sobre a cegueira e Blindness

Da vasta produção ficcional de José Saramago, constam adaptações cinematográficas de A jangada de pedra (George Sluizer, 2002), Enemy/O homem duplicado (Denis Villeneuve, 2013), Blindness/Ensaio sobre a cegueira (Fernando Meirelles, 2008) e O ano da morte de Ricardo Reis (João Botelho, 2020).

Dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, Blindness (cuja tradução literal é “cegueira”), ao mesmo tempo que se refere ao título do romance em língua inglesa, afasta-se do título em português. Ao se anunciar como um ensaio sobre a cegueira, o romance se afasta de seus próprios paradigmas enquanto gênero literário e transcende a própria significação do fenômeno da cegueira quando a faz branca, contagiosa e epidêmica, transfigurando-se, então, em objeto de análise.

A imbricação de gêneros textuais e literários – sugerida, no caso supracitado, a partir de um romance que se intitula como ensaio – integra a produção de Saramago, que nos propõe considerar a dissolução de (supostas) hierarquias, isto é, de pretensas classificações que suscitam limites, distanciamentos entre os diversos exercícios artísticos e verbais.

A noção de inconciliabilidade entre a linguagem literária e a cinematográfica talvez se relacione à oposição entre ver e imaginar. Ao lidar com o verbal, a literatura sugere a composição de imagens através de recursos linguísticos e estéticos, contando ostensivamente com a participação/imaginação do leitor. O cinema, por sua vez, ao lidar com o audiovisual, produz a imagem e a expõe ao espectador. Isso não quer dizer que o processo e os produtos de adaptação fílmica constituam repetição e/ou tentativa (evidentemente vã) de reprodução do romance. Como observa Azerêdo:

A questão da iconicidade do cinema não quer dizer, de maneira nenhuma, transparência, referencialidade. O filme pode – e deve – provocar no espectador a mesma atitude de coautoria quanto à imaginação, quanto ao preenchimento de lacunas e posicionamento crítico, quanto à inventividade de elementos metafóricos, tão facilmente e largamente associados ao texto literário, que também pode ser (se mal escrito e destituído de valor estético) referencial e pobre. (Azerêdo 2013, 123)

Considerando, então, que literatura e cinema apresentam características particulares, o processo de adaptação – elaboração do roteiro e realização do filme – apresenta deslocamentos que realizam a “permutação de textualidades” (Stam 2006, 21), contrapondo-se a uma visão hierarquizante sobre a questão. No ensaio “Por um cinema impuro: defesa da adaptação” reunido no livro O que é o cimena?, André Bazin considera ilusória a noção de fidelidade como “decalcomania” (2014, 129) e defende que o adaptador deve buscar equivalentes cinematográficos ao texto literário, atitude que caracterizaria a adaptação como comprometida com o “espírito” do texto literário (Brito 1996, 20).

Os chamados equivalentes cinematográficos à linguagem literária, que consistem no uso do aparato técnico e estético do cinema, podem ser tão simbólicos quanto o verbal e até mesmo amplificar as potencialidades semânticas de um texto escrito. Como o processo de adaptação é resultante de uma interpretação e/ou de uma leitura crítica do texto literário, os deslocamentos em relação à fonte são inevitáveis e até mesmo desejáveis, em se tratando de uma aproximação dialógica e/ou intertextual e da composição de uma obra autônoma.

A adaptação do texto de Saramago para o cinema é certamente atravessada pela profunda preocupação e pelo comprometimento do autor com a escrita, propondo rebeliões verbais no interior de seus textos; trata-se de uma linguagem viva, que desafia e estimula o processo de leitura e significação ou, segundo Cerdeira, “histórias que fazem evocar outras histórias, textos que dialogam com outros textos que a imaginação deixou inscritos no nosso imaginário cultural” (2011, 28).

A insubmissão a convenções e “regras” textuais como a pontuação, a retirada dos marcadores de discurso direto, além da adoção de uma voz narrativa profundamente reflexiva, irônica, consciente e autoconsciente, impõem ao adaptador cinematográfico várias questões: como construir, a partir do cinema, significações semelhantes às do universo da escrita saramaguiana, considerando que elas se baseiam na exposição ostensiva da falibilidade da linguagem? De que maneira um meio de expressão como o cinema (por vezes) sustentado e motivado por questões mercadológicas, obviamente derivadas do capitalismo e da consequente associação cinema/cultura de massa, pode evocar as potenciais significações políticas da ficção de José Saramago?

Sendo consequência da relação dialógica, intertextual, de simbiose entre linguagem literária e linguagem cinematográfica, a adaptação cinematográfica se configura como um processo ampla e abertamente autoconsciente, tanto em sua produção, como em sua recepção: seu produto, o filme – e materiais ligados a ele – considera e carrega em si a existência de um texto que está na sua origem. O espectador (frequentemente) sabe que o filme a que se propõe assistir resulta de um texto literário, aspecto que pode condicionar seu olhar. Dessa forma, o processo de adaptação demanda um posicionamento crítico de roteiristas e de realizadores em relação ao material literário; o contato do adaptador com o texto literário é de natureza perscrutadora, atenta às suas potencialidades intersemióticas. O filme adaptado se apresenta como a materialização desse aspecto, uma recriação resultante de uma leitura cocriativa. O que ocorre em Blindness é o reconhecimento de que, diante da ficção de José Saramago, não há “saída” a não ser transportar para o cinema a natureza desmistificadora da linguagem e das realidades por ela produzidas. O despertar para o olhar saramaguiano em meio ao processo de adaptação de sua obra é uma convocação para que o cinema questione sua linguagem e, a partir dela mesma, se exponha, confronte suas convenções estilísticas mais sagradas para que, afinal, se encontre a si mesmo.

A partir da fotografia, o filme de Meirelles busca reconstruir – no âmbito do audiovisual – um dos elementos mais importantes do romance: a cegueira branca e leitosa. Através da saturação da luz, as sequências em que se encena a contaminação das personagens o fazem por meio do enquadramento em câmera subjetiva, que permite ao espectador enxergar como as personagens contagiadas. A essa estratégia subjaz um trabalho de interpretação, que entende a cegueira branca como excesso – uma vez que o filme a encena pela saturação da iluminação – e não como falta, assim como entendemos a cegueira como condição inata ou patológica. Em momentos específicos da narrativa fílmica, a cegueira também se faz presente através da incrustação de uma tela branca (que impede a visualização da cena), da sobreposição de quadros, do desfoque das imagens (flou) e da adoção de planos e angulações de câmera pouco comuns e aparentemente infrutíferos. Essas estratégias discursivas impõem a vivência da cegueira branca ao espectador, negando o acesso ao que há de mais fundamental no cinema, a imagem, mas levando-o a perceber que o cinema está para além de apelos imagéticos (há algo ali que não é ou não está exposto ao olhar distraído).

O filme de Meirelles, portanto, (auto)consciente da natureza também opaca da linguagem cinematográfica, leva o espectador a reparar em outros elementos, como o áudio e os recursos de distorção e sonegação da imagem. Tal atitude evoca – através de elementos peculiares à linguagem cinematográfica – a natureza rebelde da linguagem de Saramago, chegando quase a encenar a epígrafe do romance: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Saramago 2003).

Nesse sentido, o material fílmico se mobiliza para que as implicações semânticas de seus artifícios orientem a reconsideração de paradigmas da linguagem cinematográfica, como a já referida hegemonia da imagem (já que o filme satura, distorce, dificulta e por vezes impede o acesso à sua camada visual) e a noção convencional de que a câmera subjetiva necessariamente reproduz o que uma determinada personagem enxerga (porque a câmera de Blindness assume o olhar de personagens que não enxergam). De orientação autoconsciente e autorreflexiva, essas estratégias, além de representarem a necessidade premente de um olhar aguçado, problematizam o poder da imagem, afirmam a falibilidade de discursos considerados pelo senso comum como indefectíveis e, portanto, irrefutáveis – a imagem falha, tornando-se passível de problematização e, talvez, de desmascaramento.

Na busca de alternativas que comuniquem a despeito da imagem (ou de seu desvirtuamento), o som diegético e a trilha sonora assumem um papel fundamental em um filme que eventualmente “abre mão” do potencial discursivo da imagem, assim como a audição que se aguça em meio à cegueira física. No filme de Meirelles, a captação do som amplifica os ruídos de cada cena, os sons emitidos pelas personagens, e boa parte da trilha sonora original resulta da produção do grupo Uakti (Pereira 2010, 31-32), que utiliza instrumentos musicais artesanais, confeccionados a partir de matéria-prima pouco comum, como alumínio, tubos de pvc, vidro. Essa oposição entre industrial e instrumental – sintético e orgânico – indicia o contraste entre o processo de desumanização das personagens e os momentos em que elas reencontram resquícios de sua humanidade.

O romance Ensaio sobre a cegueira mantém uma forte relação com os procedimentos descritivos: a composição de imagens que reforçam o potencial dramático do caos instaurado frente à cegueira generalizada emerge como um dos sustentáculos da alegoria. Destaca-se a imprecisão espaciotemporal como sugestão de que aquela cegueira epidêmica, contagiosa e branca, se refere a uma metáfora de todo e qualquer tempo, inclusive o nosso, e de qualquer lugar, independentemente de limites geográficos. Em Blindness, essa noção é amplificada pelas locações externas que mostram uma miscelânea de referências a distintos espaços urbanos. Sequências que se passam, por exemplo, na região central de São Paulo apresentam letreiros de publicidade escritos em inglês, táxis que se assemelham aos de Nova Iorque e uma exuberância de luzes que remetem a Tóquio. Além de diluir os limites geográficos do alastramento da cegueira, o filme desmonta convenções relativas ao espaço cinematográfico (não há qualquer esclarecimento sobre a mistura de ambientações), desorientando o espectador, que busca outras possibilidades de significação não para o espaço, mas para essa opção discursiva do cinema.

Em certa medida, Blindness transporta para a materialidade da linguagem cinematográfica as metáforas políticas de Saramago ao realizar um exercício autorreflexivo e anti-ilusionista – que realiza transgressões de convenções discursivas e estéticas mediante a adoção de estratégias de ruptura com a noção de imersão que o discurso cinematográfico clássico propõe –, desafiando a experiência do espectador, levando-o ao desenvolvimento de um olhar crítico diante do filme. Em O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação (1981), Robert Stam expõe o reconhecimento da noção de arte baseada em artifícios estéticos como forma de crítica. Dessa maneira, autores considerados “anti-ilusionistas” (Stam 1981, 26) proclamam a artificialidade de suas obras, compondo uma “crítica da ficção”, que “traz consigo uma crítica implícita à sociedade que alimenta suas próprias ilusões” (Stam 1981, 26). Com base nestas ideias de Stam, percebe-se que estratégias explicitamente anti-ilusionistas, como as que estão presentes em Blindness, aguçam o olhar de leitores e espectadores, conscientizando-os acerca dos mecanismos de composição do discurso artístico e, portanto, mobilizando sua atenção no processo de significação:

A ideologia da transparência explora aquilo que o público não sabe. O anti-ilusionismo, ao contrário, inicia o público no ofício secreto de sua arte, esperando transformar leitores e espectadores em colaboradores. O anti-ilusionismo não degrada a arte para desmistificá-la, apenas restaura as suas funções críticas. (Stam 1981, 48)

De forma semelhante aos cegos em Blindness, os espectadores são impelidos a desenvolver maneiras diversas de perceber o mundo que se apresenta. No filme, a perda das identidades individuais em um contexto de cegueira contagiosa e generalizada e a consequente irrupção da barbárie evidenciam as dimensões políticas da narrativa: alheias ao escrutínio público, incapazes de se verem a si mesmas e ao outro, além de expostas à brutalidade, as personagens se corrompem nas suas tentativas de sobreviver. Por outro lado, afetados por essa cegueira, os indivíduos se agrupam, protagonizam uma experiência coletiva que emerge como única forma de resistência e superação do caos.

II. O ano da morte de Ricardo Reis

O título do romance O ano da morte de Ricardo Reis prenuncia sua natureza autorreflexiva e intertextual ao fazer menção ao heterônimo de Fernando Pessoa e, com isso, evocar uma presença do próprio e da sua obra. Essas claras referências ao universo literário estabelecem também rompimentos com o senso comum: como pode morrer aquele que sequer existiu?

Chegando à terra natal nos últimos dias de 1935, após a morte de Fernando Pessoa, o Reis saramaguiano presencia a onda de consolidação de regimes totalitários na Europa, os antecedentes da eclosão da Guerra Civil Espanhola e o recrudescimento do Estado Novo em Portugal, que se estende por quarenta e um anos. O dado histórico, portanto, é condicionante das vivências ficcionais; Ricardo Reis encontra-se em descompasso com aquele mundo que parece não admitir a contemplação passiva e silenciosa.

O romance presentifica, dramatiza outras linguagens a partir da implantação de textos jornalísticos, bilhetes, cartas, propagandas, programas de rádio, poemas e romance em meio ao discurso ficcional. São textos que Reis lê de maneira frequente. As encenações dos atos de escrita e de leitura, por seu turno, mostram Reis tentando escrever poemas e frustrando-se, paralisado, consciente ou inconscientemente, pela situação política que tomava forma na Europa no período em que se desenvolve a narrativa. Quanto mais lê sobre a (suposta, porque construída por veículos de comunicação corrompidos pelos sistemas autoritários) realidade, menos o poeta-personagem se mostra capaz de vivenciar e produzir arte, literatura e menos ainda de manter sua visão de mundo. A sentença “Ricardo Reis lê os jornais” (Saramago 2020, 380) repetida diversas vezes, também atesta a presença, a importância e a fragilidade da linguagem jornalística, que no período de ascensão do totalitarismo se destaca pela permissividade, pelo tom propagandístico, resultados da atuação da censura no silenciamento das vozes divergentes. Essa caótica colagem de textos opera a demolição dos limites entre ficção e real e evidencia o hibridismo do romance metaficcional, que duvida de sua própria forma, além de fomentar a dúvida sobre a linguagem em suas diferentes nuances. Fuks percebe essa prática como uma tendência do romance literário, identificada como de “reascensão”, fortemente atrelada a significações políticas:

Por toda parte, também, nas mais diversas sociedades, nos mais diversos regimes, um conjunto grande de escritores vem se incumbindo de promover uma reflexão sobre as repressões várias, as violências oficiais, as incontáveis formas de autoritarismo, os muitos traumas históricos. Por toda parte a literatura tem se ocupado de combater o déficit de memória e a sordidez da linguagem institucional, enfrentando, ainda que tardia e quiçá inutilmente, a máquina coletiva de recalque. (Fuks 2021, 172)

As características do heterônimo concebidas por Pessoa são incorporadas no romance como elementos da construção da personagem romanesca e como deflagradoras de seu conflito com o estado de coisas. Ricardo Reis, “o estóico, o ‘epicurista triste’” (Perrone-Moisés 2001, 33), que se contentaria com o espetáculo do mundo, está sempre a ler, observar e flanar por Lisboa; parece não se saber afetado pelo que o circunda, mas ainda assim contradiz o que Pessoa pensou ser o Reis heterônimo.

A tessitura do romance sugere simbolicamente a consciência de que a linguagem é artifício, seja ela constituída de pretensões informativas ou artísticas. Paradoxos vários compõem a noção de desajuste que resulta na desmistificação de entes consolidados pelo senso comum: ao poeta/heterônimo falta a voz – elemento tão atrelado à poesia, em sua feição performativa (uma vez que ele encontra dificuldades em escrever e compartilhar seus escritos); aos jornais falta o comprometimento com a verdade (incógnita, manipulada ou interdita); ao romance falta ação, drama, conflito (em suas concepções convencionais); ao poeta (Pessoa) falta o olhar e a capacidade de convertê-lo em palavra (está sem seus óculos, não mais lê, não mais escreve); à musa falta a imaterialidade, a mística (Lídia é uma mulher comum, da classe trabalhadora, mantém uma relação carnal com Reis e o coloca em contato com visões divergentes, produzindo nele um profundo incômodo).

O convívio ficcional entre o poeta Fernando Pessoa e seu heterônimo Ricardo Reis e as evocações a Luís de Camões – seja por meio de seus poemas, de sua estátua ou da do Adamastor – tornam possíveis, a partir da ficcionalização, o encontro entre essas vozes-símbolo de Portugal. Mediante a informação histórica, torna-se absurda a possibilidade de convívio real entre Pessoa e Reis, sendo eles “a mesma pessoa” e um deles (Reis) “nunca ter sido uma pessoa”. Esse paradoxo reafirma a insubmissão do discurso literário ao que se entende como realidade, não apenas pela promoção do encontro entre criador e criatura, mas pela significação desse contato. Pessoa, espectral, fantasmagórico, faz suas aparições a Reis, com quem trava diálogos provocadores. O Pessoa, que existiu, é agora visão, aparição, espectro; o Reis, heterônimo, criação, “existe”. No entanto, em O ano da morte de Ricardo Reis, ambos são ficção; é ela que permite o encontro dessas figuras imbricadas, aspecto que demonstra – no âmbito do texto saramaguiano – a natureza complexa da heteronímia, que redunda na ideia de que “Pessoa é um poeta fictício, tão irreal quanto os heterônimos que inventou” (Perrone-Moisés 2001, 17).

Já Luís de Camões não se materializa como personagem. Entretanto, sua evocação é constante, espiritual, uma vez que alguns dos embates verbais entre as personagens ocorrem junto da estátua do profético Gigante Adamastor. Igualmente espectral e “do alto” de sua estátua em Lisboa, Camões ronda Pessoa e Reis, onipresente. Camões reside em Pessoa (o “supra-Camões”) e, consequentemente, em Reis, heterônimo de Pessoa. À coexistência dos dois pilares das letras lusitanas, Camões e Pessoa (e Reis), junta-se José Saramago, que se deixa entrever a partir da voz narrativa, representando a “relação com um outro, de outro tempo, que não está presente mas não cessa de voltar”, segundo Perrone-Moisés (2016, 151). A autora percebe essa dinâmica de convívio e/ou diálogo entre personagens e aparições espectrais, desde Hamlet, como caminho para o cotejo entre passado e presente e sua consequente transformação:

O espectro é uma figura da lei que nos observa, nos vigia, nos olha sem reciprocidade (pois é ele que tem o direito de olhar, não nós), um arquivo que volta e nos interpela. [...] Nossas respostas às interpelações dos espectros têm uma responsabilidade e um alcance político, pois podem influenciar o porvir. (Perrone-Moisés 2016, 151)

Para além da dramatização dos poetas, o romance propõe a imbricação de seus textos ao inserir excertos de seus poemas deformando ou reformando o verso para que se adapte à forma da prosa, omitindo também qualquer referência a título e/ou autoria. Os escritos literários – tal como a figura de Pessoa, a presença de Camões, Borges, Eça – são visitas que não anunciam sua chegada, não alardeiam sua permanência. O entrecruzamento dessas vozes ecoa e/ou reflete a narrativa do romance, estabelecendo com ele uma relação de complementaridade.

A decisão de Reis de se retirar e desaparecer na companhia de Pessoa para o mundo dos mortos, em meio ao período de fortalecimento do autoritarismo e da violência em Portugal, Espanha e outros países da Europa, fecha o ciclo de deslocamento e inadequação do poeta-personagem: não há espaço para um Ricardo Reis contraditório, em conflito com o mundo que exige mobilização. Para além de uma batalha com a crueza das situações que testemunha, a saber, o alastramento de ideias e práticas nazifascistas, Reis personagem romanesca vive em conflito com suas peculiaridades (características do heterônimo Reis); são facetas inconciliáveis. Em estado de estupefação, o Reis personagem tenta se convencer de que o Reis heterônimo ainda sobrevive:

Escondeu os olhos com o antebraço para poder chorar à vontade, lágrimas absurdas, que esta revolta não foi sua, sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, hei de dizê-lo mil vezes, que importa àquele a quem já nada importa que um perca e outro vença. (Saramago 2020, 424)

A partida de Reis e de Pessoa, que traduz o desaparecimento da poesia frente à brutalidade do autoritarismo, ocorre quando o criador comunica ao seu heterônimo: “O meu tempo chegou ao fim” (Saramago 2020, 427).

O filme O ano da morte de Ricardo Reis, de João Botelho (2020), atento ao caráter problematizador da presença de múltiplos discursos no romance, apresenta uma feição autorreflexiva e autoconsciente. A despeito de ser realizado em tempos de cinema digital, o filme opta pela fotografia em preto e branco, uma escolha que reproduz um lugar-comum talvez deliberadamente, considerando que a estética do filme em questão dialoga com a cinematografia dos anos 1930, a saber, o filme noir, o melodrama, os filmes de propaganda fascista e nazista, como forma de presentificar o espírito do tempo em que Reis e Pessoa se encontram.

A narrativa fílmica se constrói com referências visuais ao cinema do passado, aspecto que se faz presente nas metodologias de atuação (os atores adotam tons mais teatrais, reforçados por olhares, projeção de voz, movimentação gestual), na fotografia (que apela para recursos como névoa, iluminação dos rostos femininos, que no cinema dos anos 30 evidenciava a beleza das atrizes, promovendo o culto à ideia de diva hollywoodiana), na trilha sonora (dramática, sobretudo em sequências em que se percebe de forma mais acentuada a referência aos melodramas, como durante a cena em que Reis examina a mão de Marcenda) e na montagem (fade in e fade out circulares, sobreposição de imagens, cortes secos). Tais condutas discursivas evidenciam o tom paródico do filme, que se apropria de convenções consagradas no sentido de expor seus problemas e de pensar o cinema, sugerindo, com isso, um posicionamento crítico em relação à tradição.

Na sequência em que Reis vai a um comício salazarista, no qual se fazem presentes agrupamentos do partido nazista, há uma clara referência aos filmes de propaganda fascista e nazista, como O triunfo da vontade (1934) e Os deuses do estádio (1938). O ano da morte de Ricardo Reis reproduz os padrões da montagem e elementos de cena, como cartazes, bandeiras, simetria e sonorização. Contudo, não se vê nele a exaltação estética desses regimes, mas a exposição do mal-estar diante do transe coletivo. João Botelho utiliza as mesmas estratégias do cinema de propaganda para provocar uma reação de repulsa tanto em Reis, que participa do evento cercado da massa favorável ao alastramento do totalitarismo na Europa, como no espectador, que conhece os fatos que transcorreram como consequência dessa disseminação do autoritarismo.

A inserção de outros textos no filme ocorre a partir de elementos de mise en scène (os jornais estão por toda parte no quarto de hotel, o rádio ocupa um lugar de destaque na casa do protagonista), bem como a partir da voz das personagens: são interrupções do fluxo narrativo por meio das quais os atores exacerbam sua natureza de veículo de representação e olham para a câmera, recitam, assumem outras personagens. A performance se amplifica propondo, por exemplo, a artificialidade do discurso cinematográfico. As sequências em que Marcenda e Reis conversam sobre a condição física da jovem se aproximam dos filmes de melodrama, como Escravos do desejo (1934), abusando de uma trilha incidental que se estende pelas sequências inteiras e focalizando o exagero (deliberado) da atuação de Chico Diaz e Victória Guerra, que contrasta com o tom construído até aquele momento. Por meio dessa estratégia, realiza-se a exposição de elementos que são convencionalmente obscurecidos em nome da impressão de realidade no cinema, como o trabalho dos atores.

O conflito entre o discurso dos jornais e a sensibilidade poética que contrasta com a contemplação do espetáculo brutal ecoa na sequência em que Reis, ouvindo notícias no rádio, recita intensamente “Ouvi contar que outrora ...” ao mesmo tempo que compõe seus versos e reage violentamente. Há um embate de vozes: o poeta recita e escreve, a rádio noticia e, ao fim de tudo, prepondera o som do rádio, que acaba por reverberar os versos do poema: “Quando o rei de marfim está em perigo / Que importa a carne e o osso / Das irmãs e das mães e das crianças?”.

O tempo dos poetas chega ao fim, retiram-se Pessoa espectral, Reis deslocado, porém afetado pelo espetáculo de um mundo brutal, e fica Camões, representado pelo Adamastor, em seu grito pétreo, remetendo ao passado, sinalizando para um futuro potencialmente trágico, em sua expressão de desespero. No filme, a sequência do desaparecimento dos poetas é produzida em contre-plongée. No quadro, estão Reis e Pessoa diante da estátua do Adamastor, captados pela câmera de baixo para cima, recurso que amplifica o significado da presença de Camões entre os poetas. O filme, entretanto, parece extrapolar os significados desalentadores do romance sem anulá-los por completo. Considerando que o enquadramento em contre-plongée produz a impressão de que os elementos captados são maiores, transmitindo a ideia de poder, essa estratégia pode sugerir que, a despeito do contexto caótico e do desaparecimento dos poetas, ainda lhes pertence a faculdade de representar o mundo pela arte e assim suplantar o autoritarismo, acenar ao futuro. Por outro lado, é possível observar que a figura do Adamastor parece ainda maior que as de Pessoa e Reis por se localizar em um ponto mais alto do quadro: seu grito silencioso, mas plástico, e sua feição de desespero oprimem as personagens, sugerindo que a potência de um futuro em desespero está à espreita dos poetas.

Assim como em Ensaio sobre a cegueira e Blindness, o romance O ano da morte de Ricardo Reis e sua adaptação cinematográfica compõem universos ficcionais em que violência e desumanização evocam significados políticos. As linguagens literária e cinematográfica, em dinâmica de desmistificação de convenções discursivas e/ou estéticas, se coadunam com o compromisso de pôr em xeque suas potencialidades e reconhecer sua própria falibilidade, propondo, por extensão, o desnudamento das realidades aceitas.

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Citer cet article

Référence électronique

Cícera Antoniele Cajazeiras da Silva, « Saramago e o cinema: metaficção e autorreflexividade como expressão política », Reflexos [En ligne], 7 | 2023, mis en ligne le 21 avril 2023, consulté le 28 mars 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/1559

Auteur

Cícera Antoniele Cajazeiras da Silva

Universidade Federal Rural do Semi-Árido

cicera.cajazeiras@ufersa.edu.br

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