As Literaturas Brasileira e Portuguesa no Atlas Historique et Chronologique des Littératures Anciennes et Modernes, de Jarry de Mancy

Résumés

Em voga até a primeira metade do século XIX, o atlas histórico perdeu progressivamente seu interesse face ao desenvolvimento de outros gêneros historiográficos sem, entretanto, perder sua atualidade. Nessa medida, este artigo propõe-se a abordar as partes relativas às literaturas portuguesa e brasileira do Atlas Historique et Chronologique des Littératures Anciennes et Modernes, des Sciences et des Beaux-arts, de Jarry de Mancy, que contou com a colaboração de Ferdinand Denis. Apresenta-se inicialmente o gênero atlas histórico a partir do atlas de Emmanuel de las Cases, cujo modelo foi adotado por Mancy para tratar das artes e das letras. A seguir, discutem-se a organização do quadro das literaturas brasileira e portuguesa; e os critérios de composição que transformam o atlas histórico em um gênero da história da literatura. Ao cabo, realiza-se uma síntese a respeito deste gênero que, não tendo sido consagrado, contrasta com outras formas da história da literatura.

The Atlas - in vogue until the middle of the 19th century – has remained a currently reliable source though it lost out to other historiographical genres that have developed. This article aims to deal with the Brazilian and Portuguese literatures parts of Atlas Historique et Chronologique des Littératures Aciennes et Modernes, des Sciences et des Beaux-arts, by Jarry de Mancy, with the collaboration of Ferdinand Denis. We initially introduce the genre historical atlases as of Emmanuel de las Cases’ atlas, whose model was adopted by Mancy to deal with art and literature. We, than, discuss the Brazilian and Portuguese literature’s scene and compositional criteria that transforms the historical atlas in a historical literature’s genre. Lastly, we carried out a synthesis about this genre, which without being established, contrasts with others forms of literature’s history.

Texte

O Atlas Historique et Chronologique des Littératures Anciennes et Modernes, de Adrien Jarry de Mancy (1796-1862), publicado de forma seriada em Paris (1826-1831), é composto de 25 quadros e divide-se em duas partes. A primeira aborda a história das línguas e das literaturas antigas e modernas (18 quadros); e a segunda, a das ciências e das artes (7 quadros). Nota-se, assim, uma divisão desigual que privilegia a história da literatura. Esta obra pretendia realizar um amplo repertório das letras, artes e ciências levando em consideração tanto a Europa quanto a América, a Ásia e a África. Foi distribuída em treze remessas, mediante assinatura (8 francos cada remessa, à exceção da primeira, que custava 4 francos), e, ao cabo da décima terceira, pôde ser adquirida parcialmente ou em um único volume. O preço variava de acordo com o papel e o tipo de encadernação:

Atlas completo (25 quadros in-folio coloridos e encadernados em um volume): 120 francos

Atlas completo (25 quadros in-plano em papel velino com meia encadernação): 140 francos

Preço de cada um dos 25 atlas (podem ser vendidos separadamente): 5 francos1

Fonte: Bibliographie de la France, 1881

Seu autor, egresso da École Normale Supérieure e professor de História da Académie de Paris, baseou-se no Atlas Historique, Génealogique, Chronologique et Géographique de A. Lesage, escrito por Emmanuel de Las Cases (1766-1842), para elaborá-lo. O gênero atlas histórico, que se desenvolveu a partir da cartografia, evoluiu de maneira pouco coesa e, no início do século XIX, apresentava formas distintas. De maneira análoga, não se pode atribuir um sentido rígido à palavra atlas. Desde sua emergência enquanto gênero narrativo, os atlas possuem características variáveis do que se configurou posteriormente como Geografia e História. Entretanto, a composição de mapas provém essencialmente de dois paradigmas cartográficos, de modo que os atlas históricos também apresentem duas formas básicas.

O primeiro paradigma enquadra mapas desenhados para ilustrar momentos do tempo, circunscritos e limitados, isto é, elaborados tendo em vista narrativas históricas. Estes atlas costumam ter um número bastante restrito de formas: a maioria constitui-se enquanto retratos de constelações momentâneas; alguns são comparativos, « a form once considered almost synonymous with history itself2 »; e outros, sincrônicos ou dinâmicos e circunscrevem diversos eventos relativos a um número variável de séculos. Trata-se, assim, de atlas potencialmente úteis para leitores da História, cuja exatidão provém mais de seus discursos implícitos do que de seu refinamento cartográfico. O segundo paradigma enquadra mapas de temática variada que apresentam uma grande profusão de detalhes e que revelam exatidão quanto à composição cartográfica. Trata-se de atlas especializados que revelam uma intensa preparação acadêmica. Nessa medida, cada paradigma não só comporta regimes de produção distintos, mas endereça-se a públicos diferentes.

As produções de atlas costumam ser caras, já que têm demandas técnicas precisas, e resultam normalmente de parcerias com editores. Sua publicação corresponde a um espectro de variação cujos limites são atlas de grande formato, ornados e com encadernação especial, e atlas de bolso, em brochura. Quanto mais próximos do primeiro limite, tendem a ser especializados, com público restrito; quanto mais próximos do segundo, tendem a ser gerais, com público mais amplo. Nessa medida, os atlas gerais tentam alcançar leitores comuns, « perhaps as coffee-table books or as narratives-in-pictures3 », e preocupam-se predominantemente com o ensino da História. Walter Goffart, para quem, nesse contexto, a geografia apresenta-se enquanto uma ciência auxiliar da História, acrescenta que « map-books have the same vital role for the comprehension of space as handbooks of chronology have for mastering time4 ».

Autor de Le Memórial de Sainte-Helène5 (1823), Emmanuel de Las Cases organizou a primeira versão de seu atlas em Londres e publicou o Genealogical, Chronological, Historical and Geographical Atlas (1801) com o pseudônimo de A. Lesage. Nesta época, exercia a profissão de tutor, e « frequent allusions in its pages to pedagogy suggest that he decided to transpose his tutoring method to graphic and written form6 ». Esta edição, composta de 25 mapas, foi vendida pelo alto preço de £4 14s. No ano seguinte, publicou-se a versão condensada 18 Selected Maps out of Lesage’s Complete Historical Atlases para ser vendida pelo preço de £3 10s. O sucesso destas duas edições foi tamanho, que Emmanuel de las Cases lucrou £2,625 em apenas alguns meses de venda da obra.

Após retornar à França em 1802, providenciou, em parceria com Jules Didot, uma edição francesa, que sairia em oito remessas entre 1803 e 1804, com assinaturas para edições de 80 ou 120 francos. O Atlas Historique, Génealogique, Chronologique et Géographique de A. Lesage foi novamente um grande sucesso editorial e ganhou uma reedição em 1806, com edição pirata publicada em Florença no mesmo ano. Sua história editorial na França envolve contínuas reedições; adição de folhetos suplementares; aparecimento de edições reduzidas e expandidas. Foi traduzido para o russo (1809); para o italiano (1813-1824); para o espanhol (c. 1826); para o alemão (1825-1826); para o polonês (1844); e novamente para o inglês (1813/1844).

O Atlas de Lesage afasta-se significativamente dos atlas históricos de seu tempo, uma vez que se esvaziou de um conteúdo geográfico mais consistente e introduziu mapas de forma intermitente. Walter Goffart comenta que « Las Cases in London cannot have intended to equal or even approximate the cartographic standards of his day, nor was he concerned, later on, to improve this aspect of the atlas7». Isso faz com que seus mapas sejam predominantemente sincrônicos e bastante ecléticos. O mapa da Itália apresenta concomitantemente rotas da conquista francesa em seu interior; e, em suas margens, um quadro com os mais famosos pintores italianos, seus estilos e obras-primas, e detalhes estéticos adicionais. Dessa maneira, a maioria dos mapas era complementada ou mesmo substituída por colunas tipográficas, que faziam prevalecer o aspecto histórico em detrimento do geográfico. De fato, o deslocamento do adjetivo « histórico » da terceira posição no título da edição inglesa para a primeira posição na francesa já sugere uma compreensão a favor da História.

As colunas tipográficas, comumente em cores diferentes para facilitar a memorização, comportam informações variadas e constituem fragmentos não necessariamente coesos. Walter Goffart argumenta que « its columns of letterpress are like the odds and ends that fill out the columns of newspapers8 ». À exceção do quadro da Alemanha, nenhum outro fornece do território em questão uma narrativa histórica consecutiva. Nessa medida, a continuidade do tempo histórico foi substituída por informações históricas não coesas e organizadas dentro de blocos de textos. O Atlas de Lesage fornece, assim, imagens que ninguém pensara em incluir em um atlas; e mapas que destacam a história de séculos recentes, raramente encontradas em atlas anteriores. Este valor de novidade afasta-o não só dos demais atlas, mas também de público leitor de atlas, uma vez que formou seu próprio público leitor.

As particularidades do Atlas de Lesage, que provêm de seu caráter não geográfico e de sua profusão de genealogias, linhas do tempo e outras formas de material impresso, tornaram-no menos uma colaboração dada pela geografia à História do que um trabalho histórico de referência com alguns mapas. Emmanuel de las Cases aproveitou a simplificação cartográfica para expandir os textos associados e apostar em seu valor explicativo. Dessa maneira, seu atlas oferece a história de maneira prática, não crítica e informativa, acompanhada por mapas narrativos, simples e esquemáticos. Isso implicou uma readequação do público leitor de atlas históricos, que « were not expected to reflect thoughtfully on a total image, only to extract separate pieces of information quickly, painlessly, productively9 ». Nessa medida, o Atlas de Lesage é a tal ponto não geográfico, que Jarry de Mancy chega a eliminar os mapas quase por completo.

O Atlas Historique et Chronologique des Littératures Anciennes et Modernes, de Jarry de Mancy, ambicioso em seu escopo, contou com colaboradores em diversos de seus quadros. A autoria do Tableau Historique, Chronologique de la Littérature Portugaise et Brésilienne Depuis son Origine Jusqu’à nos Jours (1827) foi compartilhada com Jean-Ferdinand Denis (1798-1890), que publicara o Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal, Suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil (1826), obra pioneira na diferenciação entre estas duas literaturas, no ano anterior. Graças a uma profícua produção bibliográfica a partir de 1821, este autor, que morara no Brasil alguns anos antes, destacava-se nos círculos letrados parisienses enquanto americanista e conhecedor das letras lusas. Dessa maneira, Jarry de Mancy, que provavelmente desconhecia as literaturas portuguesa e brasileira, não só dispunha do saber especializado de Denis, mas também associava a seu trabalho o nome de um proeminente letrado nesta área.

À semelhança do Atlas de Lesage, o Atlas de Mancy obedeceu a um princípio de organização espacial, publicando inicialmente um mapa-múndi das línguas (quadro 1, segunda remessa), e a um princípio de organização cronológica, sucedendo-o com quadros da literatura românica (2, terceira remessa) e da literatura grega até a tomada de Constantinopla (3, terceira remessa). A parte relativa às literaturas brasileira e portuguesa (quadro 13, 2 páginas) foi entregue na quarta remessa da obra, em conjunto com o quadro a respeito da literatura francesa no século de Louis XIV (quadro 18). Não apresenta mapas; e detém-se em uma análise intrinsecamente histórica, valendo-se da geografia apenas para delimitar o espaço.

Figura 1 :

Figura 1 :

Tableau Historique, Chronologique de la Littérature Portugaise et Brésilienne Depuis son Origine Jusqu’à nos Jours
Fonte : Biblioteca Nacional de Lisboa

Figura 2

Figura 2

Início das seções Poetas e Prosadores do terceiro período da literatura portuguesa.

Figura 3

Figura 3

História dos gêneros (prosa e poesia) do segundo período da literatura portuguesa
Fonte : Biblioteca Nacional de Lisboa

O quadro organiza-se de maneira semelhante ao conjunto do atlas. A coluna da extrema esquerda (branca) inicia com uma advertência a respeito da literatura portuguesa e da organização do quadro; apresenta um panorama da história da língua portuguesa e da literatura portuguesa; e encerra com paralelos entre as literaturas portuguesa e espanhola. A coluna da extrema direita (branca) apresenta uma cronologia comparada entre história literária e história política. As caixas de texto (brancas) na parte central e superior de cada página listam obras de consulta a respeito das literaturas abordadas pelo atlas. As caixas de texto no interior das páginas (coloridas) contêm a periodização das histórias literárias brasileira e portuguesa. A caixa de texto branca na parte inferior onde se encontram as duas páginas introduz a literatura brasileira; e as caixas de texto brancas ao lado das colunas em cada página apresentam uma cronologia de autores árabes e judeus que atuaram na Península Ibérica.

O panorama da história da língua portuguesa comenta sua origem filológica e pontua seus primeiros registros escritos. O atlas situa o latim enquanto origem remota da língua e atribui ao encontro entre latim e árabe a emergência do português moderno. A obra acrescenta que a língua dos trovadores portugueses, que datam deste período, e a dos provençais são bastante semelhantes e sugere sua origem comum. É interessante notar que este argumento deve-se a um estudo contemporâneo ao atlas, realizado por Raynouard10, de modo a indicar a atualidade da obra. Encontram-se comparações entre os sons do português e do espanhol: « os sons aspirados e guturais que pertencem essencialmente ao espanhol e que lhe conferem grandeza; contudo, a língua de Camões é plena de nobreza e de vitalidade11 ». Ressalta-se também o orgulho da origem latina de escritores que escrevem tanto em português quanto em latim. Enfim, a fixação do português moderno é estabelecida no século XVI, século de ouro da literatura portuguesa, e discute-se sua difusão pelo globo.

O português é uma das línguas mais difundidas na Europa, levada pelos judeus portugueses para Amsterdã, para Hamburgo, para o Tirol. É falada no Brasil, no arquipélago dos Açores, nas costas africanas, na Índia, na China. Assim como as outras línguas do sul da Europa, o português adotou muitas expressões extraídas do francês e perdeu um pouco de sua originalidade12.

O panorama histórico da literatura portuguesa pretende apresentar a periodização proposta no interior do atlas e introduzir alguns de seus autores e obras. A seção inicia com o comentário de que esta literatura é pouco conhecida na Europa e costuma ser confundida com a espanhola. Entretanto, defende que ambas diferenciam-se não só pela língua, mas também pelas formas literárias predominantes: « são seus abundantes poemas épicos e histórias nacionais13 » que distinguem a literatura portuguesa da espanhola. A periodização proposta divide a literatura portuguesa em cinco períodos:

1º Da invasão árabe até a morte de Vasco da Gama, 711-1524.

2º Da morte de Vasco da Gama até o final do século XVI, data da ocupação de Portugal pelos espanhóis, 1524-1580.

3º Da ocupação de Portugal pelos espanhóis até a morte do rei Afonso VI, 1580-1683.

4º Século XVII, 1683-1741.

5º Parte do século XVIII e parte do XIX, 1741-1827.

(DENIS, 1831, tradução nossa)

Esta periodização, que segue a tradição historiográfica do Iluminismo14, organiza-se a partir de eventos políticos relativos à ocupação do território; ao falecimento de personagens históricos; e à sucessão de dinastias. Ressalta-se que esta divisão preferencialmente secular deve-se majoritariamente ao poder de tutela das letras exercido pela monarquia francesa, que não necessariamente aplica-se à qualquer experiência monárquica. Nessa medida, a preferência de marcos políticos adapta a divisão secular e fornece as bases para o desenvolvimento das histórias literárias estritamente nacionais, contemporâneas à publicação do atlas. É interessante notar que a literatura produzida no Brasil insere-se nos dois últimos períodos da história da literatura portuguesa, ainda que ambas sejam diferenciadas no título e no interior do atlas.

O primeiro período, situado entre a expulsão dos mouros e a morte de Vasco da Gama, é caracterizado pelo rápido florescimento das letras, graças a seus reis que cultivavam a literatura. O atlas conta que Henrique de Borgonha, primeiro rei português, foi também seu primeiro poeta; e que a tradição trovadoresca surgiu com Macias, o Enamorado, e, a partir de Portugal, espalhara-se por toda Península Ibérica. É interessante notar que, além de eventos eminentemente políticos, a obra também menciona eventos literários que excedem nascimento e morte de poetas. Ressaltam-se a fundação da Universidade de Coimbra e dos arquivos da Torre do Tombo, bem como o trânsito de eruditos da França a Portugal. Dessa maneira, a ênfase historiográfica do atlas não só dá conta de abordar autores e obras, mas também de pontuar a vida cultural no país.

O segundo período, situado entre o falecimento de Vasco da Gama e o início da União Ibérica, é caracterizado como o período mais esplendoroso da literatura portuguesa, já que « a língua chegou ao seu mais algo grau de perfeição15 ». Do ponto de vista político, enfatizam-se as conquistas nas Índias e a fundação da ordem dos jesuítas. Do ponto de vista literário, mencionam-se diversos autores e passa-se a insistir na distinção entre poetas e prosadores, fundamental para a organização do atlas. Comentam-se os trânsitos culturais entre Itália e Portugal, de onde Sá de Miranda teria trazido « o gosto pela literatura ilustrada de Dante e Petrarca16 ». Além disso, tornam-se mais evidentes critérios de valor do atlas, como o pioneirismo em alguns gêneros e a poesia inspirada, a que voltaremos posteriormente. Em suma, encontra-se o argumento de que « o século XVI é para os portugueses o que o século de Luís XIV é para nós17 ».

O terceiro período, situado durante a vigência da União Ibérica, é caracterizado pelo seu declínio político e literário, já que o governo do cardeal Henrique « serviu de presságio às desgraças que esperavam Portugal18 ». Houve muitos poetas que, seguindo o impulso dado por Camões, esforçaram para imitá-lo. Analogamente, prosadores procuraram construir obras mais fascinantes, ainda que apresentem « menos correção do que seus predecessores19 ». Após o período áureo da literatura portuguesa, as menções tendem a ser reduzidas e os comentários tendem a ser mais breves.

O quarto período, situado no século XVII e parte do XVIII, é caracterizado pelos reveses literários resultantes da União Ibérica, que provocaram o sufocamento « do antigo entusiasmo nacional20 ». É interessante notar que Antonio Vieira é o único autor mencionado elogiosamente. Comenta-se que os poetas não só escreviam muito em espanhol, mas também adotavam os excessos de Góngora, de modo que « pouco merecem ser mencionados21 ».

O quinto período, situado no século XVIII e início do XIX, é caracterizado por movimentos literários associados a eventos culturais que tentaram reerguer a literatura portuguesa « face ao golpe funesto que recebera22 ». Mencionam-se a reforma literária, empreendida pelo conde de Ericeira, e a fundação de duas academias protegidas pelo governo. Ressalta-se o papel da Arcádia Lusitana (1751), que instituiu « doutrinas literárias sensatas23 », e da Academia Real de Ciências, de modo que « se esperam os melhores resultados dos seus trabalhos proveitosos24 ». Além dos árcades, cita-se Bocage, cuja vida é comparada à de Camões.

O paralelo entre as literaturas portuguesa e espanhola diz respeito aos gêneros cultivados por estas nações, a fim de diferenciá-las; e sua recepção em outros países. A primeira é caracterizada por seu pioneirismo na elaboração de um poema épico moderno, que angariou a admiração de Tasso; e por mediar a difusão dos escritos sobre as Índias, até então desconhecidas do resto da Europa. A segunda é caracterizada pela fecundidade de sua dramaturgia, tendo inspirado poetas franceses que, por sua vez, foram imitados em todo o continente; e por mediar a difusão de conhecimentos a respeito da América, com obras de alto rigor historiográfico. Ambas, entretanto, compartilham o gosto pela poesia pastoril; e pelos romances de cavalaria. É importante ressaltar que esta prática dos paralelos comparativos, em busca de diferenças e de semelhanças, confundia-se com a própria prática historiográfica até o início do século XIX.

A introdução à literatura brasileira, muito mais breve do que o panorama da literatura portuguesa, apresenta sumariamente a história da literatura do Brasil e algumas de suas instituições. Situa as primeiras manifestações literárias no século XVII e o florescimento de suas produções no século XVIII, ainda que o brasileiro seja « naturalmente poeta e músico25 ». O argumento de que a literatura brasileira apenas pressagia o que pode se tornar um dia, presente na obra historiográfica de Denis (1826), é compartilhado pelo atlas de Mancy. São mencionados apenas alguns poetas e prosadores, seguidos de comentários breves. A parte mais longa desta seção fica a cargo da listagem de instituições culturais, em especial bibliotecas e centros de formação. Mencionam-se os acervos da Biblioteca Imperial e do antigo Colégio dos Jesuítas da Bahia; a fundação da Academia de Letras e dos colégios de Piratininga e da Bahia; a presença de salas de espetáculo em diversas cidades; a existência do Jardim Botânico, da Academia Médica-Cirúrgica e de uma sociedade histórica no Rio de Janeiro. Em suma, o atlas fornece um inventário que atesta a existência de uma sociedade culta e civilizada sob os trópicos.

O ensaio de cronologia comparada entre as histórias literária e política também está pautado no procedimento historiográfico de traçar paralelos. Ressalta-se que as duas cronologias dizem respeito tanto a Portugal quanto ao Brasil. A série política, que inicia com a fundação mítica de Lisboa por Ulisses, compreende essencialmente eventos relativos à Monarquia; aos descobrimentos; às conquistas no Oriente; e às invasões de Portugal e do Brasil. A série literária compreende nascimento e morte de escritores; publicações de obras; e a fundação de instituições culturais. É interessante notar que a cronologia não é, de fato, comparada. Há duas colunas lado a lado, cujos intervalos temporais coincidem minimamente, que fornecem datas e eventos de maneira acessível e dinâmica. Nessa medida, comparação propriamente dita é um procedimento realizado pelo leitor que, dispondo dos dados, pode raciocinar livremente. Isso faz com que o emprego do gênero atlas histórico às letras afaste-se de dicionários históricos, enciclopédias e tomos explicativos, cujo valor analítico não necessariamente interessa a um público mais amplo.

No interior do Atlas, cada um dos cinco períodos é subdivido entre poetas e prosadores, à exceção dos dois últimos que se dividem primeiramente entre literatura portuguesa e brasileira. Ressalta-se que a cronologia dos autores árabes e judeus mantém-se à parte, conforme a tradição estabelecida pelas Memórias de Literatura Portuguesa (1792-1812). Cada período também dispõe de um esquema de história dos gêneros. É importante ressaltar que a literatura é compreendida enquanto prática letrada e não está associada exclusivamente à ficção. Nessa medida, romancistas encontram-se lado a lado com historiadores e gramáticos.

A estrutura básica das entradas dentro das subdivisões de cada período pode ser definida em: nome do autor; informações biográficas (ausentes em alguns casos); e menção de alguma obra ou gênero praticado. Há uma variação significativa entre as entradas, que sugere, a um só tempo, o número de informações disponíveis acerca daquele autor e o valor que é atribuído a ele.

1558. Sá de Miranda (Francisco) nasceu em Coimbra, 1495 ; dedica-se ao estudo das leis ; viagem e estada na Itália ; traz consigo o gosto pela poesia latina e italiana, imita os autores do século de Augusto ; protegido do rei João III ; morre sozinho. Escritor clássico. – Comédias eruditas (Villalpandos e Os Estrangeiros) ; Odes, Elegias, Epístolas, etc. ; escreve bastante em espanhol. MSS. deste autor na Biblioteca Real de Paris. Nº 8.294126.

A entrada de Sá de Miranda, mencionado anteriormente no panorama, permite que se formule hipóteses acerca de sua preparação. A primeira parte, eminentemente biográfica, sugere que se realizou uma consulta bibliográfica acerca do poeta. Há ecos de fórmulas críticas anteriores (« imita os autores do século »; « gosto pela poesia »; « escritor clássico »), bem como a presença de um léxico que evoca uma tradição poética (odes; elegias; comédias eruditas). Nota-se que, no caso da poesia, referem-se predominantemente gêneros ao invés de obras, à exceção do teatro. Isso se deve a uma dificuldade material provavelmente encontrada por Denis e Mancy: a presença de obras exclusivamente em cancioneiros e demais antologias. É importante notar as várias menções a obras que ainda se encontram exclusivamente em manuscritos. Por um lado, isso pode sugerir um conhecimento especializado, que consulta acervos; por outro, isso pode indicar um descaso na edição e publicação de obras em um século em que o mercado editorial funciona a todo vapor. Ressalta-se que estas considerações não são aplicáveis a qualquer entrada ou período, uma vez que cada autor apresenta particularidades e coloca dificuldades distintas.

A história dos gêneros permite que o leitor tenha visão de conjunto para as produções de um mesmo período e, concomitantemente, facilita a consulta de entradas.

O esquema da história dos gêneros é dividido em poesia e prosa sucessivamente subdivididas em mais categorias, que variam de acordo com o período. Estabelece-se, assim, uma hierarquia implícita dos gêneros dentro de um período. Pode-se avaliar, na sucessão de períodos, o florescimento ou o arrefecimento de uns em relação aos outros. No caso da poesia, encontram-se as seguintes categorias: poesia dramática, subdividida em comédia erudita e drama religioso ou cortês; épica; bucólica, que se destacam como principais manifestações do período; e uma categoria aglutinadora de manifestações secundárias (poesias diversas). No caso da prosa, encontram-se: história nacional e estrangeira; escritores eclesiásticos moralistas; viajantes, geógrafos, enquanto manifestações predominantes; e romancistas, epistológrafos e outros, enquanto manifestações menos expressivas. Para o período seguinte, nota-se que a poesia dramática perdeu expressividade, já que não mais apresenta subcategorias; que a poesia épica teve sua importância reforçada, pois passa a apresentar subcategorias (poetas corteses; poetas religiosos; gênero mitológico); e que a categoria aglutinadora tornou-se um pouco menos genérica, de « poesias diversas » a « poesias diversas, sonetos, epitáfios, etc.  ». De maneira análoga, nota-se que a história nacional e estrangeira continua expressiva; que o romance não faz mais parte da categoria geral, ainda que apresente poucos autores; e que os viajantes foram substituídos pelos estatísticos, e seus relatos tornaram-se secundários. É interessante notar que essas oscilações dos gêneros dentro de sua história podem ser facilmente apreendidas pelo leitor, graças a sua disposição tipográfica. Caso quisesse obter estas informações através de uma história literária, como a de Denis, levaria mais tempo e necessitaria ler uma parte maior da obra. Além disso, ressalta-se que a busca de autores por gênero também se torna mais dinâmica, de modo que o leitor tem um acesso mais rápido a elementos do cânone.

Cada uma destas categorias comporta um número maior de autores do que os abordados no quadro, cuja diferenciação provém do acréscimo de um asterisco ao nome. Isso sugere, a um só tempo, a seleção feita pelo autor face às particularidades do atlas histórico e os possíveis critérios de escolha. Toda história literária é fundamentada em critérios de seleção implícitos ou explícitos, de forma que, mesmo em abordagens amplas, reconheça-se a incapacidade de abarcar todo o patrimônio literário. Paralelamente, a crítica, seja estética ou ideológica, exerce uma função central do trabalho historiográfico sobre a literatura, fundamentando seu discurso. Dessa maneira, apreende-se, dentro da história dos gêneros, uma hierarquização dos autores, isto é, distinguem-se aqueles que ganham uma entrada dos que têm apenas seu nome mencionado. Nessa medida, resta estabelecer quais critérios permitem esta distinção, bem como o cânone mínimo que conformam.

Os critérios de valor podem ser depreendidos de diversos elementos textuais do atlas e enquadram-se nas categorias de valor explícito e implícito. O valor explícito revela-se na atribuição ou não de verbetes a autores mencionados; e a qualificações decorrentes associadas a eles tanto nos verbetes quanto no panorama. Nessa medida, tanto Violante do Céu quanto António Ferreira são mencionados no panorama e ganham verbetes. Contudo, a religiosa tem a fórmula crítica « mau gosto » associada às suas poesias, enquanto às peças do dramaturgo associa-se a fórmula « imita com sucesso ». Dessa maneira, a menção e o verbete apresentam autores imprescindíveis do patrimônio literário luso, ainda que não sejam avaliados exclusivamente de maneira positiva.

O valor implícito depreende-se do espaço dedicado aos autores ao longo do atlas; e do cuidado em se fornecer uma lista de obras mais precisa e uma biografia mais completa. Nesse caso, Camões é um caso paradigmático: o poeta não só ganha um longo parágrafo elogioso no panorama da literatura portuguesa, em detrimento das poucas linhas dedicadas a outros autores, mas também tem os poemas de seu cânone quantificados e serve como medida de comparação para outros autores. Isto não se deve exclusivamente à opinião do autor ou à bibliografia consultada. Denis/Mancy agenciam suas referências, predominantemente portuguesas, sob uma óptica não só pessoal, mas também francesa. Dito de outra forma, os autores agem na dimensão de uma tradição literária e a medeiam a partir de outra tradição. Isso torna interessante a análise desta perspectiva crítica em relação a outras obras historiográficas, em especial à história literária publicada por Denis em 1826.

O atlas de Jarry de Mancy, a partir das literaturas portuguesa e brasileira, interessa pelas particularidades próprias deste gênero. Acredita-se que a função principal do atlas é dinamizar a pesquisa e a consulta graças a sua materialidade profundamente gráfica. Contemporâneo à multiplicação da mídia impressa, afasta-se da um conhecimento enciclopédico e privilegia a informação em detrimento da análise, mimetizando a tipografia própria ao jornal. Longe de ser superficial, propõe ao leitor não especializado uma forma mais simples de apreensão do conjunto de uma literatura e uma possibilidade mais dinâmica de conhecer suas obras e autores. Com o crescente interesse pelas literaturas estrangeiras e a premente preocupação com a educação pós-revolucionária, esta obra preenche um nicho editorial de que as histórias literárias não costumavam dar conta. De fato, desde seu projeto gráfico até sua edição, trata-se de uma obra que visa a um grande público, em um contexto em que a noção de massa começa a se delinear.

Bibliographie

Bibliographie de la France, ou Journal Général de l'Imprimerie et de la Librairie, et des Cartes Géographiques, Gravures, Lithographies et Œuvres de Musique. XLe année. Paris: Pillet Aîné, 1831.

CHEVALLIER, Emile. Les Salaires au XIXe Siècle. Paris: Librairie Nouvelle de Droit et de Jurisprudence; Arthur Rousseau, 1887.

DENIS, Ferdinand. Résumé de l'Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l'Histoire Littéraire du Brésil. Paris: Lecointe et Durey, 1826.

DENIS, Ferdinand. Tableau Historique, Chronologique de la Littérature Portugaise et Brésilienne, Depuis son Origine Jusqu'à nos Jours; sur le Plan de l'Atlas de Lesage (Comte de Las Cases). In : MANCY, Jarry de. Atlas Historique et Chronologique des Littératures Anciennes et Modernes, des Sciences et des Beaux-arts. Paris: J. Renouard, 1831.

GOFFART, Walter. Historical Atlases: the First Three Hundred Years, 1570-1870. Chicago: University of Chicago Press, 2003.

Journal de Savants. Paris: L’Imprimerie Royale, 1827.

Notes

1 Conforme Chevallier (1887), o preço do pão de 2 kg em Paris variou de 70 centavos de franco a 85 centavos de franco entre 1820 e 1830. O preço mensal do aluguel de uma família de assalariados em Paris ficava entre 200 e 400 francos para o mesmo período. Retour au texte

2 « uma forma outrora considerada quase um sinônimo da própria História ». Goffart, 2003, p. 7, tradução nossa. Retour au texte

3 « talvez como ornamentos ou história-em-imagens ». Goffart, 2003, p. 3, tradução nossa. Retour au texte

4 « livos-mapa tem o mesmo papel vital para a compreensão do espaço do que manuais de cronologia para a apreensão do tempo ». Goffart, 2003, p. 3 , tradução nossa. Retour au texte

5 Tendo sido publicada dois anos após a morte do Imperador, esta obra promoveu a lenda dourada napoleônica e logrou um enorme sucesso editorial. Retour au texte

6 « alusões frequentes à pedagogia nestas páginas sugere que ele decidiu transpor seu método de ensino para uma forma escrita e gráfica ». Goffart, 2003, p. 304, tradução nossa. Retour au texte

7 « Las Cases em Londes não quisera se equiparar ou se aproximar os padrões cartográficos de seu tempo, nem estivera, mais tarde, preocupado em melhorar este aspecto do atlas. ». Goffart, 2003, p. 308, tradução nossa. Retour au texte

8 « suas colunas tipográficas são como as miudezas que preenchem as colunas dos jornais ». Goffart, 2003, p. 312, tradução nossa. Retour au texte

9 « de que não se esperava uma reflexão perspicaz sobre uma imagem em sua totalidade, apenas uma retirada de fragmentos separados de informação de maneira rápida, indolore produtiva. » Goffart, 2003, p. 313, tradução nossa. Retour au texte

10 François-Juste-Marie Raynouard (1761-1836), político e erudito francês, foi membro da Académie Française (1808) e da Académie des Inscriptions et Belles Lettres (1816). Foi conhecido por suas pesquisas sobre o amor cortês (cours d’amour) e sobre a poesia provençal francesa (troubadours), que resultaram na hipótese da existência de uma língua românica única (Romance) da qual teriam surgido todas as línguas latinas. Retour au texte

11 Denis, 1831, tradução nossa. Retour au texte

12 Idem. Retour au texte

13 Idem. Retour au texte

14 Entre outros, cita-se Le Siècle de Louis XIV (1751), de Voltaire. Retour au texte

15 Idem. Retour au texte

16 Idem. Retour au texte

17 Idem. Retour au texte

18 Idem. Retour au texte

19 Idem. Retour au texte

20 Idem. Retour au texte

21 Idem. Retour au texte

22 Idem. Retour au texte

23 Idem. Retour au texte

24 Idem. Retour au texte

25 Idem. Retour au texte

26 Idem. Retour au texte

Illustrations

  • Figura 1 :

    Figura 1 :

    Tableau Historique, Chronologique de la Littérature Portugaise et Brésilienne Depuis son Origine Jusqu’à nos Jours
    Fonte : Biblioteca Nacional de Lisboa

  • Figura 2

    Figura 2

    Início das seções Poetas e Prosadores do terceiro período da literatura portuguesa.

  • Figura 3

    Figura 3

    História dos gêneros (prosa e poesia) do segundo período da literatura portuguesa
    Fonte : Biblioteca Nacional de Lisboa

Citer cet article

Référence électronique

Rafael Souza Barbosa, « As Literaturas Brasileira e Portuguesa no Atlas Historique et Chronologique des Littératures Anciennes et Modernes, de Jarry de Mancy », Reflexos [En ligne], 3 | 2016, mis en ligne le 19 mai 2022, consulté le 02 mai 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/853

Auteur

Rafael Souza Barbosa

Bolsista de Mestrado (CNpQ)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

rafaelsouzabarbosa@gmail.com

Droits d'auteur

CC BY