Introdução
A língua nos tem todos “presos pelo rabo”:
estamos todos no mesmo barco.
Ou assim pensamos.
(In: Etnia, Identidade e Língua, Mey, J.)
A epígrafe apresentada no início desta introdução abre a reflexão para a questão da língua e sua relação imanente com o sujeito. Qual o papel da língua? Para que ela serve? Ou melhor, como, enquanto sujeito, servimos a ela? Podemos dizer, por meio do conhecimento do senso comum, que a língua serve para nos comunicarmos uns com os outros, para falar de nós mesmos, para reivindicarmos as nossas demandas diante da nossa sociedade. Porém, é por meio dela que nos constituímos enquanto sujeito de linguagem, conforme nos ensina Benveniste (1991)1.
Quando tratamos da língua em uma perspectiva de ensino, seja ela língua materna ou língua estrangeira, muitas vezes a questão da subjetividade e da relação com o outro é apagada para dar ênfase a uma visão instrumentalista. No caso do ensino do português como língua adicional, tal questão é latente, já que no âmbito das aulas, procura-se ensinar ao aluno a se comunicar na língua estrangeira, porém há sempre um desejo desse aluno de falar a língua estrangeira como se fosse um falante nativo. Quando focamos no ensino de português para refugiados, esse desejo é potencializado devido à necessidade imanente de se integrar à cultura do país que os acolhe. Tal desejo foi sendo apresentado para mim durante as aulas que leciono de Português para refugiados, principalmente refugiados vindos da República Democrática do Congo.2
Este artigo, portanto, tem o objetivo de apresentar as minhas reflexões enquanto professora voluntária de um curso de português para refugiados, do processo de ensino/aprendizagem desses alunos que têm uma urgência excepcional em aprender o português, algo fundamental no processo de adaptação no país de acolhida. Durante as aulas, muitos alunos dizem que precisam aprender português para arrumar um trabalho no Brasil, para ir ao médico, para matricular o filho na escola, ou seja, para viver no país que os está recebendo. Estas demandas, de início, nos levam a pensar na língua enquanto instrumento de comunicação, no entanto, falar uma língua outra que não seja a sua materna envolve processos de identificação, de subjetivação, que vão além do simples intuito de comunicar-se com o outro.
O que significa falar uma língua outra que não seja a sua língua materna? Como se constituir sujeito de linguagem em uma língua cuja sonoridade, muitas vezes, lhe é desconhecida? Como adentrar na língua e na cultura do outro, de forma urgente como é o caso dos refugiados, e enunciar e se constituir enquanto sujeito nessa língua outra que não lhe é a materna? Essas são questões que me movem enquanto professora de português voltada para pessoas em situação de refúgio e serão discutidas neste artigo, cujo objetivo principal é apresentar uma reflexão da relação do refugiado com a língua estrangeira, chamada por alguns especialistas da área de como língua de acolhimento, como observado, por exemplo, nos trabalhos de Grosso (2010)3 e Amado (2013)45.
Tais reflexões serão pautadas por uma visão discursiva da língua, tendo como foco, sempre, a questão da alteridade, da construção da subjetividade no processo de aprendizagem do português como língua estrangeira. Antes de iniciarmos a discussão acerca de reflexões do processo de aprendizagem do português pelos refugiados baseados nas minhas observações e impressões em sala de aula, apresento aqui alguns dados relevantes sobre a situação do refúgio no Brasil.
Sobre a situação do refúgio no Brasil: dados, números e questões
A situação de refúgio, apesar de ser um tema atual, não é um fenômeno recente, já que pessoas buscam refúgio em outros países para fugir de guerras e da miséria há muito tempo (BAUMAN, 2016)6. Segundo Barreto (2010)7, estudos históricos apontam que já existiam regras bem definidas para o refúgio na Grécia Antiga, Roma, Egito e Mesopotâmia, ocasionado por questões religiosas. Com o passar do tempo, as guerras e a miséria fizeram com que esse número ampliasse. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), há, no mundo, cerca de 20 milhões de refugiados8. Porém, nos últimos anos, houve um grande salto desse número advindos de “palcos de intermináveis guerras tribais e sectárias, assassinatos em massa e de um banditismo permanente do tipo salve-se quem puder” (BAUMAN, op. cit.). Com as guerras na Síria e na República Democrática do Congo, por exemplo, o número de refugiados tende a continuar crescendo e os países que os acolhem precisam pensar em políticas públicas efetivas para essa população, mas, para isso, é preciso compreender quem são esses refugiados e a relação que estes estabelecem com o país que os acolhe, mais especificamente, com a língua e com a cultura desse país em relação a sua própria língua e cultura. Esses pontos são relevantes de serem compreendidos, inclusive, para a preparação das aulas e o modo como lhes ensinaremos nossa língua.
No Brasil, há, atualmente, cerca de 8.800 refugiados de 79 nacionalidades9, sendo a maioria de países como Síria, Angola, Colômbia, Congo e Palestina, conforme informações disponibilizadas pelo CONARE (Comité Nacional para os Refugiados) e ACNUR. Vale ressaltar que, desde 1997, o Brasil conta com o Estatuto dos Refugiados (Lei nº 9474), que, por meio do CONARE, busca criar e implementar políticas públicas em torno desta problemática, bem como decidir sobre as solicitações de refúgio apresentadas no país.
Esses números nos levam a refletir sobre algumas questões sociais que não podem ser desconsideradas/silenciadas pelos países que os acolhem e, para isso, é preciso saber quem são esses sujeitos em situação de refúgio, como eles se relacionam com a cultura, com a língua do país que os acolhe, quais são os seus medos, as suas demandas e expectativas. Ou seja, é preciso considerá-los na sua heterogeneidade, muitas vezes apagada por um discurso que homogeneização sobre os refugiados. Precisamos, assim, conhecê-los a partir de suas histórias e memórias imbricadas em suas narrativas de vida, pois, apenas assim poderemos vencer o medo e o ódio que muitas vezes é instaurado entre a população do país de acolhida e os refugiados. Conforme aponta Bauman (2016),
Sobre os estranhos, porém, sabemos muito pouco para sermos capazes de interpretar seus artifícios e compor nossas respostas adequadas – adivinhar quais possam ser as suas intenções e o que farão em seguida. E a ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma situação que não produzimos nem controlamos, é uma importante causa de ansiedade e medo (BAUMAN, 2016: 14)10.
Tendo como base as palavras de Bauman (op.cit), para lutar contra o medo do outro, é preciso ouvi-lo e produzir espaços de dizer que tornam possíveis a interação entre os sujeitos (o refugiado e o brasileiro) e é por meio da língua que se dá essa relação e essa possibilidade de tomada de dizer: para os refugiados, há uma necessidade gritante de se apoderar dessa língua outra. Justamente por isso, perguntamo-nos ao longo deste trabalho, qual a relação destes com o português do Brasil e com o seu processo de ensino e aprendizagem dessa língua outra.
Como já apresentado ao longo desta introdução, o foco deste trabalho é pensar no ensino de português para refugiados – ou seja, ensino de português em contexto específico -, considerando neste processo questões identitárias e de processo de subjetivação do sujeito em uma língua outra.
A análise do discurso de perspectiva materialista e o ensino de português para refugiados: deslocamentos teóricos
Para a reflexão que proponho neste trabalho nos é muito cara a reflexão feita por Celada (2008)11 em seu artigo O que quer, o que pode uma língua? Língua estrangeira, memória discursiva, subjetividade. Nesse artigo, a autora questiona, primeiramente, o processo de instrumentalização da língua12 no ensino de língua estrangeira, o qual é relevante também para o nosso trabalho como docente da área de ensino de português como língua estrangeira em contexto específico, no caso, ensino de português para refugiados. Minhas experiências em sala de aula me mostram uma demanda, uma angústia dos alunos por saberem falar e entender o português da maneira mais rápida possível, o que os leva a pensar - e o que leva a muitos professores a pensar também - a língua enquanto um instrumento de comunicação, silenciando a relação entre sujeito e linguagem nas práticas de ensino e aprendizagem de língua estrangeira. Neste trabalho, questionamos a visão instrumentalista da língua, colocada em pauta por muitos cursos de ensino de português para voltados para estrangeiro, que trazem como ênfase apenas o caráter comunicativo da língua. Questiono, assim, o que é se comunicar em uma língua estrangeira e que língua é essa é tomada enquanto instrumento. Uma pergunta proposta por Celada (op. cit) em seu texto e que servirá de mote para esta reflexão é pensar no que está em jogo nesse processo de identificação com a língua outra, a língua que não lhe é a materna nesse processo de aprendizado. Pergunta esta fundamental quando ensinamos português para alunos refugiados, os quais, podem apresentar uma relação, muitas, vezes frágil com a língua do país de acolhida. Tal relação será discutida mais adiante.
Tendo em mente a questão dos processos de subjetividade e de identificação do sujeito-refugiado na língua portuguesa, nos será de extrema importância compreender o aparato teórico da Análise de Discurso de Perspectiva Materialista, fundada por Michel Pêcheux (1969), que propôs pensar sobre a linguagem rejeitando as evidências dos sentidos e os lugares já estabilizados. Para nossas reflexões, também será fundamental o conceito de sujeito, na busca para compreender como se dá o processo de subjetivação dos refugiados no aprendizado da língua portuguesa. Para AD, o sujeito é constituído no simbólico, pela contradição de estar sujeito à língua para ser sujeito da língua. Segundo Orlandi (2002)13, a subjetividade é constituída no acontecimento do discurso. Isso se dá porque o sujeito se subjetiva conforme ele se projeta do seu lugar no mundo para sua posição no discurso. O sujeito, desse modo, é posição entre outras posições discursivas. A partir dessas observações, a autora compreende que o processo de subjetivação se dá por um duplo movimento: interpelação do indivíduo em sujeito pela Ideologia e pelas formas de individualização do sujeito pelo Estado.
No primeiro movimento, o indivíduo, ao inscrever-se na língua, é interpelado pela ideologia em sujeito, resultando dessa interpelação uma forma-sujeito-histórica capitalista. Sobre isso, Pêcheux (1975) afirma que:
...o funcionamento da Ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em sujeito (e, especificamente, em sujeitos de seu discurso) se realiza através do complexo das formações ideológicas e, especificamente, através do interdiscurso intrincado nesse complexo) e fornece “a cada sujeito” sua “realidade”, enquanto sistemas de evidências e significações percebidas – aceitas – experimentadas. (PÊCHEUX, 1975: 162)14.
É por meio do funcionamento da Ideologia, cujo efeito é a produção de evidências, que o sujeito tem a falsa ilusão de ser a origem do seu dizer e dos sentidos desse dizer, quando, na verdade, retoma sentidos já existentes, em que estes significam pelo modo como esse sujeito se inscreve na língua e na história. Isso é denominado, por Pêcheux, como esquecimento número “um” (esquecimento ideológicos) e é da instância do inconsciente.
Além do esquecimento número “um”, há o número “dois” (esquecimento enunciativo), por meio do qual o sujeito fala de uma determinada maneira e não de outra, sendo sempre possível dizer de outra forma. O esquecimento número “dois” produz a impressão da existência de uma relação direta entre pensamento/linguagem/mundo, impressão que faz o sujeito acreditar no pensamento sendo representado por apenas determinados dizeres e não outros. Esse esquecimento estabelece também uma relação entre palavra e coisa, que naturaliza essa ligação. O sujeito significa o seu dizer ao inscrever-se em formações discursivas pelas quais há determinação, por meio da ideologia, das posições de sujeito e o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1975). Os esquecimentos são, portanto, resultantes do funcionamento da Ideologia no discurso.
No segundo movimento de subjetivação do sujeito, é o Estado, com suas instituições e poder de articular relações que individualiza a forma-sujeito-histórica, sendo o indivíduo o resultado de um processo, um constructo, referido pelo Estado (ORLANDI, 2005)15. O sujeito é individuado pela sua identificação com as Instituições do Estado como a Igreja, a Família e a Escola. É nesse movimento que ocorre a identificação do sujeito com determinada formação discursiva, que representa o lugar de constituição da identificação do sujeito e também de constituição dos sentidos.
Nesses movimentos de subjetivação, segundo Orlandi (2005: 213) “há sempre ‘furos’, falhas, incompletudes, apagamentos e isto nos serve de indícios/vestígios para compreender os pontos de resistência”. É no processo de subjetivação que podemos observar a relação entre o simbólico e o político. Quando pensamos no ensino de Português como língua estrangeira voltada para refugiados, há sempre falhas, furos que vão traçando pontos de resistência do sujeito em relação a língua outra. Um exemplo desse movimento de resistência são os silêncios que entrecortam a aula de português, principalmente dos alunos iniciantes; silêncio este que, quando quebrado, é pela língua materna do sujeito.
Nesse sentido, para compreendermos o processo de subjetivação, é preciso que a análise discursiva seja capaz de explicar o funcionamento do discurso e, para isso, é necessário considerar as condições de produção, definidas por Pêcheux (1975),
ao mesmo tempo o efeito das relações de lugar no interior das quais se encontra inscrito o sujeito, e a ‘situação’ no sentido concreto e empírico do termo, quer dizer, o ambiente material e institucional, os papéis mais ou menos conscientes colocados em jogo (...) (PÊCHEUX, 1975: 56).16
O conceito de condições de produção nos remete a pensar sobre as formações imaginárias, que se representam para o sujeito como a realidade. Estão presentes nas formações imaginárias os seguintes mecanismos de funcionamento do discurso: (i) relação de sentidos, na qual dizeres possuem relações com outros dizeres já realizados ou imaginados; (ii) mecanismo de antecipação, pelo qual há a possibilidade do sujeito se colocar no lugar do(s) seu(s) interlocutor(es) e, em relação a este(s), antecipar-se quanto ao sentido que seus dizeres produzem e, finalmente, (iii) a relação de forças, pela qual podemos observar que o lugar ocupado pelo sujeito ao realizar o seu dizer significará o que é dito. São as projeções resultantes das imagens encontradas nos discursos que permitem a passagem de situações empíricas para as posições do sujeito no discurso (ORLANDI, 2002).
As condições de produção, assim como a concepção de sujeito, devem ser consideradas no processo de ensino e aprendizagem de português para refugiados. Voltando ao artigo de Celada (2008), para a autora, no processo de ensino aprendizado de língua estrangeira, que no nosso caso se trata do português, deve-se trabalhar a relação sujeito/linguagem a qual implica “trabalhar a relação sujeito/ sentido, sujeito/memória discursiva” (p.147). Essa relação entre o aprendizado de língua estrangeira e memória discursiva, segundo Orlandi (2000:31)17 “torna possível cada dizer e dão sustento a cada tomada de palavra”. Nesse processo de uma memória da e sobre a língua estrangeira, podemos supor, conforme nos explica Celada em suas reflexões, que há sempre “coisas a saber” sobre a língua e elas serão sempre tomadas em redes de memórias dando lugar a redes de filiações identificadoras” (PÊCHEUX, 1990: 54).
Sobre ser estrangeiro e sua relação com outro e com a língua estrangeira
(...)como viver com os outros, sem rejeitá-los e sem absorvê-los, se nós não nos reconhecemos ‘estrangeiros a nós mesmos’?
Estrangeiro de nós mesmo, Kristeva
Levando em consideração as questões teóricas apresentadas acima e observações advindas das aulas de português para refugiados, trarei aqui minhas inquietações acerca da difícil relação do estrangeiro com a língua outra, sendo esta dificuldade acentuada quando se é refugiado. Pensar nessa relação tensa é fundamental para pensarmos na didática do ensino de português em contexto de aula para refugiados.
No país estrangeiro, na sua busca por trabalho, por condições de vida melhores, é preciso falar; é preciso encontrar um espaço para ser ouvido pelo outro, no caso, o brasileiro. Nessa disputa por um espaço de dizer e pelos sentidos, o estrangeiro se coloca em uma relação constante de embate com o outro - o não estrangeiro - na constituição da sua nova identidade e na relação com a língua outra. No caso dos refugiados, esse embate é profundo e, ao mesmo tempo, doloroso, já que essa língua outra, bem como a cultura, não foi algo de sua escolha, mas, sim, imposto por sua condição. Muitas vezes, esse refugiado não poderá voltar a usar a sua língua materna, o que faz com que o aprendizado do português se torne mais difícil e doloroso: aprender essa língua outra pode, muitas vezes, significar como o apagamento da memória da sua língua e da sua própria identidade cultural. Para pensar sobre isso, farei aqui uma breve reflexão sobre a relação de alteridade do estrangeiro no processo de ensino/aprendizagem da língua materna, porém, tendo em mente que esse estrangeiro, para esse trabalho, se trata, também, do refugiado.
Kristeva (1994)18, em seu livro Estrangeiro para nós mesmos, trata da questão de maneira primorosa ao discutir como o contato entre o estrangeiro e o outro, o nativo, bem como o contato com a nova língua, funciona na constituição do sujeito na relação com uma língua que lhe é alheia. No processo de aprendizagem pelo estrangeiro, o sujeito fica no entremeio da sua língua materna com outras sonoridades, com outra lógica da língua e isso funciona na sua constituição de sujeito e no modo como toma a palavra nesse outro idioma.
Não falar a sua língua materna. Habitar sonoridades e lógicas cortadas da memória noturna do corpo, do sono agridoce da infância. Trazer em si, como jazigo secreto ou como uma criança deficiente – benquista e inútil –, essa linguagem de outrora, que murcha sem jamais abandoná-lo. Você se aperfeiçoa, num outro instrumento, como nós nos expressamos com a álgebra ou o violino. (...) Você tem o sentimento de que a nova língua é a sua ressurreição: nova pele, novo sexo. Mas a ilusão se despedaça quando você se ouve, no momento de uma gravação, por exemplo, em que a melodia de sua voz lhe volta esquisita, de parte alguma mais próxima da gagueira de outrora do que do código atual. (KRISTEVA, 1994: 22/23)
Nesse processo de identificação e significação com o outro e com a língua estrangeira, é latente a relação entre sujeito e significante, entre essa sonoridade que lhe é estranha, mas ao mesmo tempo, necessária de ser apreendida para que ele possa preencher de sentidos seus dizeres e se significar no país em que agora habita. Nesse sentido, como nos ensina Revuz (1998, p.221)19, aprender uma língua estrangeira é “(re)fazer a experiência da impotência de se fazer entender”.
Como esse sujeito faz e refaz essa experiência de se fazer entender em uma língua estrangeira? Como esse sujeito toma a palavra para si e enuncia, buscando um espaço de dizer? Essas questões são potencializadas quando se trata de refugiados, pois há um processo de ruptura brusca entre esses sujeitos com a sua língua materna20 e uma necessidade imanente de se relacionar com a nova sociedade, com a nova cultura, pois, segundo Mey (1998: 74)21, “a língua se relaciona com a sociedade porque é a expressão de se congregar socialmente, de construir e desenvolver o mundo.” Assim, é preciso que o refugiado esteja na outra língua, na língua do seu país de acolhida, para que possa dizer, tomar a palavra e se significar. Para Celada (2008), tendo em mente a relação entre Análise de Discurso, psicanálise e aprendizado de língua estrangeira,
a) o processo de aprender uma língua estrangeira deve ser entendido como de assujeitamento, pois se trata da submissão de um sujeito às formas de dizer e à memória de sentidos que ela produz;
b) esse processo implica que essa outra língua e os saberes que ela pode supor entrarão em relações (de captura ou identificação, de resistência, de confronto) com a malha de uma subjetividade já inscrita em determinadas filiações de sentido” (CELADA, 2008: 149)
Nesse sentido, aprender uma língua estrangeira, é estar em uma outra relação de sentidos, é submeter-se a outras filiações, é se deslocar das redes de sentido sua língua materna para uma outra. Para Revuz (op. cit.: 227), “aprender uma língua estrangeira é sempre, um pouco, tornar-se um outro”. A autora ainda complementa:
[Aprender uma língua estrangeira] é afrontar um espaço silencioso no qual é preciso se inventar para dizer eu, então, aprender uma outra língua é fazer a experiência de seu próprio estranhamento no mesmo momento em que nos familiarizamos com o estranhamento da língua e da comunidade que a faz viver. Há muitas maneiras de eludir essa experiência, porém, não será sempre entregar-se a um duplo desconhecimento: desconhecimento do Outro, da alteridade e desconhecimento de si e do próprio estranhamento. (REVUZ, 1998: 229)
Recortamos do trecho acima a passagem “se inventar para dizer eu”, significativo para o nosso projeto, pois nos questionamos justamente sobre os processos de subjetivação dos refugiados. Será nessa língua que eles precisam se reinventar, tomar a linguagem e dizer ‘eu’ no momento em que enunciam22, mas não é um ‘eu’ da sua língua materna e sim um outro ‘eu’, que produz um deslocamento, já que ao falar outra língua, diferente da língua materna “abre um espaço a outras significações, a outros enunciados, que identificam o sujeito cujo porta-voz original não pode ser mais a fonte (...). O ‘eu’ da língua estrangeira não é, jamais, completamente o da língua materna”. (REVUZ, op.cit: 224/225).
Reinventar esse ‘eu’, tomar a palavra, (se) (re)significar e compreender uma outra língua por estar na posição social de refugiado (no caso da maioria dos meus alunos, refugiados de guerra) é estar em uma relação constante e intensa de embate com a língua outra, no caso, a língua portuguesa e com o outro, o brasileiro. Segundo Kristeva, em relação à palavra do estrangeiro,
Ninguém o escuta, a palavra jamais é sua, ou então, quando você tem a coragem de tomá-la, rapidamente ela é apagada, quase sempre mais volúvel e cheios de desembaraço. A sua palavra não tem passado e não terá poder sobre o futuro do grupo (...) A palavra do estrangeiro pode contar somente com a sua pura força retórica e com a iminência dos desejos nela investidos (KRISTEVA, 1994: 27)
Os alunos refugiados com os quais trabalho, precisam, portanto, traçar e significar o seu dizer na língua do país que os acolheu. Esse processo não é simples. É marcado, muitas vezes, por um silenciamento da sua posição enquanto cidadão, por não ser brasileiro. Silenciamento este que pode ser por um determinado imaginário do que é ser um falante de português e do que é ser cidadão brasileiro.
É preciso, então, nas aulas de português, trabalhar com eles o processo de tomada de palavras, incentivá-los a apresentar as suas demandas, as suas inquietações, a falar de si mesmo durante as aulas. Sobre o processo de tomada de palavra pelo estrangeiro, Serrani-Infante (1998)23, em seu artigo Identidade e segundas línguas: as identificações no discurso, nos lembra que
(...) a tomada da palavra não é entendida, aqui, como o uso de um instrumento por um indivíduo falante. Quando se toma a palavra, sabemos, toma-se um lugar que dirá respeito a relações de poder, mas simultaneamente “toma-se”, ou seja, somos tomados, interpelados pela língua. (...) Concebo esse processo de tomada da palavra com a inscrição em traços significantes, interdiscursivos, inconscientes, que se realizam fundamentalmente por metáforas e metonímia e que vão constituindo o sujeito do discurso, pois, neste enfoque, é na linguagem que o homem é homem e se defronta com o problema de seu ser. (SERRANI-INFANTE, 1998: 247/248)24
Buscar compreender esse movimento de tomada de palavra na sua relação com o poder, imbricado nas relações sociais, é relevante para o cenário político-econômico-social atual. Logo, o ensino de português para refugiados, apesar de privilegiar a língua no seu aspecto comunicativa, tem que fornecer ao aluno a possiblidade de tomar a palavra, de disputar sentidos em uma língua que não lhe seja a sua materna. Dessa forma, o ensino/aprendizagem de português deve ser voltado para que esses sujeitos, em sua iminência de falar a língua do país de acolhida, se coloquem enquanto sujeito de linguagem na língua outra e possam apresentar suas demandas e inquietações advindas do processo de adaptação no país que os acolheu.
Para efeito de conclusão
Neste artigo, não propus apresentar métodos ou propostas didáticas de ensino de português para refugiados, mas sim traçar uma reflexão acerca das tensões que presentes no processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa voltadas para refugiados. Essas questões, ou melhor, inquietações, como já dito, surgiram a partir das minhas aulas de português para refugiados vindos, na sua grande maioria, do Congo. A questão da língua entrecortada pela questão cultural sempre foi marcante nas aulas e, por isso, como professora, era insustentável pensar nas aulas para esses alunos sem considerar o processo de ensino/aprendizagem como um processo de identificação do sujeito com a língua outra.
Nesse sentido, foi fundamental, nesse artigo, lançar um olhar para o sujeito-refugiado e para o modo esse se relaciona com a língua estrangeira, em que a tensão da língua outra está sempre marcada pela necessidade imanente de se falar o idioma do país que os acolhe. Pensar no processo aprendizado do português por esses refugiados é pensar também em trabalhar a possibilidade de falar de si nessa outra língua, de questionar, de tomar a palavra e de se fazer ouvir pelo outro, no caso, brasileiro. De se colocar enquanto sujeito de dizer sem se silenciar por ser estrangeiro/refugiado.
A reflexão apresentada acima não se esgota. Na verdade, ela inicia uma forma de olhar o ensino de português para refugiados que escapa de uma visão instrumentalista da língua, buscando considerar os processos de identificação do sujeito com a língua do país que lhe dá refúgio. Considerar os processos de subjetivação marcados no aprendizado do português, bem como os processos de identificação, é fundamental para pensar em propostas didáticas do ensino do português para refugiados, as quais devem ser pautadas, constantemente, pela tensão que há entre a relação do refugiado com a língua do outro, a qual não se constitui, muitas vezes para esse sujeito, como uma língua de sobrevivência.