Introdução
Para se tornar um falante da língua alvo, o aprendiz deve produzir enunciados dotados de elementos linguísticos e extralinguísticos capazes de gerar sentido em diferentes esferas da atividade humana. Na esfera escolar ou pedagógica, o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira reproduz situações de comunicação de outras esferas da vida, mas nem sempre é eficaz em situar o aprendiz como um sujeito que partilha do horizonte sócio-histórico e cultural da língua estudada. Dentre as habilidades previstas no ensino de línguas estrangeiras, em que figuram a compreensão auditiva, a compreensão escrita, a produção oral e a produção escrita, esta última pode projetar o aprendiz/falante estrangeiro em esferas mais formais e consolidadas. Contudo, a escrita nem sempre é a habilidade de maior destaque, sobretudo em metodologias advindas de abordagens comunicativas e a escrita torna-se objeto de cursos específicos ou instrumentais de língua estrangeira.
Tais constatações nos levaram a refletir sobre uma abordagem diferente para a prática escrita em nossas aulas, levando em consideração os pressupostos teóricos acerca do dialogismo desenvolvidos por Bakhtin e seu Círculo de pensadores russos, cujas obras datam da década de 1920. Neste contexto, o dialogismo é o fio condutor capaz de fazer circular o sentido de um enunciado a outro ao longo do tempo. Os enunciados possuem características mais ou menos estáveis que se agrupam em diferentes gêneros do discurso e esferas da atividade humana.
No estudo atual, pretendemos traçar uma relação teórica entre o dialogismo bakhtiniano e o desenvolvimento da escrita no âmbito do português língua estrangeira (PLE). Além de apresentar questões teóricas chaves para o entendimento de nossa abordagem, levantaremos alguns pontos metodológicos que concernem a área do PLE. É importante ressaltar que não pretendemos traçar um panorama exaustivo da área, uma vez que nossa prática pedagógica se dá em contexto específico: aulas de português como língua estrangeira e segunda língua para aprendizes francófonos de diferentes idades e instituições (escola de reforço escolar, associação cultural brasileira e universidades públicas e privadas).
Nosso objetivo é traçar uma breve análise de um projeto de leitura e escrita colaborativa em plataforma digital que desenvolvemos entre os anos 2014 e 2017, o qual denominamos projeto Expressão. Na França, podemos citar ainda um segundo projeto – que não será contemplado no estudo atual –, voltado para a escrita colaborativa. Trata-se do projeto Agora encabeçado pela Universidade de Paris-Saclay que conta com a participação de mais de 13 universidades francesas. Ambos os projetos pretendem estimular aprendizes de línguas estrangeiras a escrever tendo em conta um público-alvo maior e mais heterogêneo, tornando o exercício da escrita mais significativo para o processo de aprendizagem.
A primeira parte do artigo discute a constituição do sujeito em sua língua materna e na língua estrangeira (ou alvo), a partir dos fundamentos teóricos elaborados pelos pensadores russos do Círculo de Bakhtin. Em seguida, procuraremos identificar alguns desafios metodológicos para o processo de ensino-aprendizagem da escrita no âmbito do PLE, considerando sempre o panorama francês. Finalmente, apresentaremos os principais resultados do projeto de leitura e escrita colaborativa Expressão, ressaltando seus pontos mais produtivos, bem como as dificuldades encontradas em seu desenvolvimento.
1. O sujeito-falante na língua materna e na língua estrangeira
De acordo com os preceitos da teoria do Círculo de Bakhtin, desenvolvida por um grupo de pensadores russos a partir da década de 1920, a comunicação humana depende essencialmente da relação dialógica e responsiva entre enunciados e falantes de uma determinada língua. Para que a comunicação se estabeleça, os falantes pertencentes a esta ‘comunidade linguística’ (Voloshinov, 2004 [1929], p.70)1 devem partilhar tanto um sistema linguístico – dotados de unidades mínimas como fonemas, morfemas, sintagmas, etc. – quanto um horizonte sócio-histórico comum.
Em sua língua materna, a relação dialógica estabelecida entre o locutor e o interlocutor ignora a sinalidade da língua, ou seja, o seu caráter puramente linguístico e dicionarizado, e a comunicação ocorre por meio dos sentidos que circulam nos signos ideológicos, posteriormente concretizados em enunciados de uma dada esfera da atividade humana. Para Voloshinov (2004 [1929], p.94),
Na língua materna, isto é, precisamente para os membros de uma comunidade linguística dada, o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados. No processo de assimilação de uma língua estrangeira, sente-se a “sinalidade” e o reconhecimento, que não foram ainda dominados: a língua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão. (Voloshinov, 2004 [1929], p.94)
Cada língua nacional apresenta seus próprios enunciados que, por sua vez, são organizados em gêneros discursivos e transitam por esferas da atividade humana específicas. Dominar uma língua, portanto, significa ser capaz de transitar em meio as suas esferas – do cotidiano, política, jornalística, científica, entre outras – e conhecer o funcionamento de seus respectivos gêneros. Em sua própria língua materna, o falante domina em maior ou menor grau os gêneros de “diferentes campos da comunicação cultural” (Bakhtin, 2016 [1951-53], p.41)2. O autor acrescenta que:
Com frequência, uma pessoa que tem pleno domínio do discurso em diferentes campos da comunicação cultural – sabe ler um relatório, desenvolver uma discussão científica, fala muito bem sobre questões sociais – em uma conversa mundana cala ou intervém de forma muito desajeitada. Aqui não se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata; tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertório dos gêneros da conversa mundana, à falta de um suficiente acervo de noções sobre um enunciado inteiro que ajudem a moldar de forma rápida e descontraída o seu discurso nas formas estilístico-composicionais definidas, a uma inabilidade para tomar a palavra a tempo, começar corretamente e terminar corretamente (...). (Bakhtin, 2016 [1951-53], p.41)
Tais formulações de Voloshinov e Bakhtin sobre a relação do falante com sua língua materna podem servir de pistas teórico-metodológicas aplicáveis ao processo de ensino de uma língua estrangeira. Se entre os falantes da língua materna, os sinais são dissipados e os significados dão lugar aos sentidos, o mesmo não é evidente no processo de aquisição e aprendizagem de uma língua estrangeira. Para se tornar falante de uma nova língua, é necessário ultrapassar o plano da significação, situado no sistema linguístico, para que se atinja o plano da compreensão e dos sentidos que, por sua vez, estão situados no enunciado.
Metodologicamente, a aquisição-aprendizagem da língua estrangeira acontece, na maioria das vezes, de forma inversa. Parte-se do ensino das unidades da língua para que o falante-aprendiz adquira autonomia e consciência linguística suficientes para se constituir como falante da língua alvo. Entretanto, se não levarmos em consideração o contexto sócio-histórico e a realidade ideológica da língua, se não investirmos em trocas verdadeiramente dialógicas entre formador e aprendiz, entre aprendizes, e entre aprendizes e outros falantes nativos, bem como na relação dialógica dos aprendizes com diferentes enunciados concretos da língua alvo, corremos o risco de permanecer no âmbito do sistema linguístico. Bakhtin (2016 [1951-53], p.38) destaca que a língua materna
não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciados concretos que nós mesmos ouvimos e nós reproduzimos na comunicação discursiva viva. Bakhtin (2016 [1951-53], p.38)
Com base nas propostas teóricas de Voloshinov e Bakhtin a respeito da relação do falante com a língua materna e a língua estrangeira, propomos uma reflexão metodológica em torno do processo de ensino-aprendizagem do PLE, mais especificamente no que tange à prática escrita. Na esteira do pensamento bakhtiniano, como trabalhar para que o falante atinja o nível do sentido e da compreensão na língua estrangeira? Em outras palavras, como levar o aprendiz a produzir enunciados constituídos de elementos linguísticos coesos e que, ao mesmo tempo, participem axiologicamente das esferas da atividade humana da língua alvo?
Sendo o dialogismo o fator fundamental da comunicação humana, acreditamos que tanto o aprendiz quanto seus enunciados devem ser colocados em relação com outros enunciados e falantes da língua alvo. O professor constitui-se dialogicamente como o outro que primeiramente irá ler e responder à produção escrita do aprendiz. O posicionamento ideológico do professor-formador e a sua própria compreensão da noção de língua são elementos determinantes para o processo de ensino-aprendizagem. Muitas vezes, o formador é um dos primeiros representantes da comunidade linguística alvo que entrará em contato mais intenso com o aprendiz, tornando-se agente revelador das esferas ideológico-culturais da língua estrangeira. O modo com que ele instrumentaliza os elementos culturais em sua esfera de origem, a pedagógica, é um passo imprescindível para que a aquisição-aprendizagem se efetive. No entanto, quanto maior o alcance do seu enunciado e quanto mais esferas e leitores ele atingir, maior será o potencial dialógico do enunciado do aprendiz. Portanto, apresentaremos, na seção seguinte, uma proposta de escrita colaborativa que visa expandir o leitor presumido dos enunciados produzidos pelo aprendiz na esfera pedagógica.
2. Questões metodológicas sobre o ensino da prática escrita do PLE na França
Além dos preceitos teóricos sobre dialogismo e enunciado elaborados por Bakhtin e seu Círculo, algumas questões metodológicas nortearam a nossa abordagem em torno da escrita colaborativa, dentre as quais podemos citar: o papel do material didático no processo de ensino-aprendizagem de língua estrangeira; a disponibilidade de métodos de PLE e, finalmente, o espaço dado para a escrita em abordagens de ensino de orientação comunicativa.
Primeiramente, consideramos importante pensar na função do material didático para o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras no seio da esfera escolar. No livro Sete erros aos quatro ventos: a variação linguística no ensino do português, Bagno (2013)3 faz uma análise de materiais didáticos de português língua materna que pode ser aplicada aos métodos desenvolvidos na área do português como língua estrangeira:
(...) só podemos lamentar profundamente que os mesmo livros didáticos que propõem trabalhos tão interessantes no tratamento da leitura, da oralidade e da escrita continuem tratando o estudo da língua como algo desvinculado do uso real, desvinculado da leitura e da escrita, como se a gramática existisse em alguma dimensão etérea fora das relações sociocomunicativas estabelecidas pela atividade de linguagem, como se a língua não se manifestasse como discurso, na forma de textos falados e escritos. Na maioria das coleções [que o autor analisou], predomina aquilo que chamo de miséria da sintaxe: a consideração da frase como objeto exclusivo dos estudos gramaticais, como se a dissecação de cadáveres oracionais fosse necessária e suficiente para se aprender realmente o que é e como funciona uma língua viva. (Bagno, 2013, p.42)
Geralmente, as atividades escritas propostas pelos livros didáticos contemplam as unidades gramaticais da língua, sob forma de propostas de redação ou exercícios de gramática fragmentados. São poucas ou quase inexistentes as questões voltadas ao texto e à formação de sentidos. É certo que no processo de ensino-aprendizagem de língua estrangeira, temos que fornecer as bases linguísticas e gramaticais da língua alvo, mas também se deve atentar para os elementos relacionados à criação dos sentidos.
É bom lembrar que os livros didáticos organizam e reproduzem contextos de fala e uso da língua para facilitar o processo de ensino-aprendizagem, mas estão longe de representar a 'realidade' dos falantes de uma determinada língua. Portanto, oferecer a alunas e alunos a possibilidade de falar ou escrever sobre um assunto que dominam ou têm interesse favorece a criação de textos situados sócio-historicamente em que aprendizes se transformam em sujeitos autores do seu enunciado, para além da esfera escolar.
Nossa proposta é trabalhar com o texto enquanto enunciado, ou seja, uma unidade de sentido formada por uma instância linguística e por uma instância extralinguística. Nesta perspectiva, o processo de escrita não pode ser reduzido a um mero exercício para reforçar estruturas gramaticais. Em diversas esferas da atividade humana, o sujeito falante não nativo vai se deparar com situações muito diferentes das que vivenciou em sala de aula. Então, porque não começar a trabalhar na fronteira da esfera escolar com as demais esferas da vida? Mais do que treinar um aluno para utilizar fórmulas linguísticas prontas, por que não lhe atribuir autonomia enquanto falante, sujeito e autor, para que ele possa produzir e concretizar sua fala e seus textos de forma mais intuitiva e consistente? O fato é que como professoras e professores, não podemos prever todos os tipos de situação comunicacional com os quais os aprendizes serão confrontados.
No que tange aos métodos no âmbito do PLE, apesar de contar com um número crescente de publicações, ainda não temos um grande repertório de materiais publicados, em comparação com línguas como o inglês, o francês e o espanhol, por exemplo. O efeito positivo disso é que, mais frequentemente, professoras e professores produzem seus próprios métodos, o que favorece maior atualização do material utilizado, mais trocas pedagógicas entre docentes, e consequentemente, mais qualidade para as aulas de PLE. Há, de fato, ainda muito trabalho em torno do desenvolvimento de material didático na área do PLE, sobretudo no Brasil, mas também há condições favoráveis à criação de contextos mais significativos para aprendizes desenvolverem suas habilidades em português. No caso do blog que apresentaremos a seguir, trata-se de um espaço de produção de sentidos, cujo material produzido também poderá ser usado como fonte para a implementação de novas propostas de leitura e atividades.
Finalmente, consideramos que se faz mister refletir sobre o espaço que a escrita tem ocupado em diversas esferas da vida. Com o advento da internet, a escrita tem deixado de ser privilégio dos mais eruditos e o fato é que nunca se escreveu tanto quanto na atualidade. Mensagem de texto, e-mail, blogs, comentários e rede social, são alguns exemplos de gêneros discursivos que têm permitido a inserção de um tipo de autora ou autor que antes não tinham espaço para se expressar. Longe de ser a realidade de uma desejada democracia digital, porque muitos ainda não têm acesso à internet no Brasil e no mundo, já podemos considerar que há um espaço maior para o desenvolvimento de modalidades da escrita. O aprendiz de língua estrangeira também está exposto a esta modalidade da língua em diversas situações. Então, porque não aproveitar o meio digital para instigá-los a produzir enunciados de natureza igualmente digital?
A não ser que seja no âmbito de uma disciplina específica voltada para a prática escrita, essa habilidade prevista no Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas, acaba ocupando um espaço limitado na prática pedagógica e no dia-a-dia das aulas. Os exercícios escritos muitas vezes são designados para serem feitos individualmente fora da aula e sua importante função acaba sendo esvaziada. Conforme já apontamos em estudo anterior4, o meio digital constitui um espaço de grande potencialidade dialógica para a veiculação de enunciados dos aprendizes. Dentre os aspectos mais favoráveis para o acompanhamento e apresentação das atividades escritas, destacamos: a capacidade de armazenamento de dados e enunciados, a publicação contínua e alta capacidade de atualização e, finalmente, a possibilidade de resposta e compartilhamento a partir de ferramentas específicas. Na seção seguinte, detalharemos como o projeto Expressão foi desenvolvido em meio digital e quais foram seus pontos favoráveis e problemáticos para o desenvolvimento da habilidade escrita dos aprendizes de PLE.
3. Projeto Expressão: escrita colaborativa e dialogismo
Partindo da fundamentação teórico-metodológica que apresentamos nas seções anteriores, elaboramos o projeto Expressão no ano de 2014. Trata-se de um blog criado para publicar e arquivar a produção de textos – escritos, visuais ou audiovisuais – feitos por aprendizes de português como segunda língua ou língua estrangeira na França, de todas as idades. O projeto visava, inicialmente, proporcionar uma condição de produção de língua que ultrapassasse a fronteira da esfera escolar na qual formadores e aprendizes se encontram, por meio da publicação de textos e atividades cujos temas são de preferência de suas autoras e autores. Sua ideia central era a de promover um leitor presumido mais amplo e heterogêneo do que a figura do professor-formador. Além de um instrumento de publicação e veiculação dos escritos, o intuito era o de convidar os participantes a ler os diversos outros textos que compunham a plataforma.
O projeto foi realizado durante 4 semestres (de 2014 a 2017) e contou com a participação de aprendizes de diferentes idades, formações e instituições francesas, a saber, a escola de reforço escolar à domicílio Acadomia, a associação brasileira Institut Culturel Alter Brasilis, a Grande Escola de Comércio HEC-Paris e a Universidade de Poitiers.
Tínhamos como objetivo específico:
Criar um espaço para que aprendizes pudessem produzir textos orais (em plataforma audiovisual) ou escritos para outros interlocutores que não somente o professor;
Apresentar uma fonte de leitura de textos feitos por estudantes e para estudantes de PLE;
Utilizar os documentos produzidos como fonte para novas atividades e até mesmo para a produção de novos textos e projetos;
Formular uma reflexão sobre a importância de projetos que envolvam escrita e/ou oralidade em plataforma digital para um desenvolvimento mais produtivo do PLE pelos aprendizes.
As autoras e autores dos documentos postados no blog são aprendizes de português como segunda língua ou língua estrangeira falantes nativos ou bilíngues do francês. Na maioria dos casos, os aprendizes tinham o português como terceira ou mesmo quarta língua e participaram de algum curso de português nos seguintes contextos: aulas particulares, aulas em instituto de língua portuguesa e cultura brasileira, aulas em curso de nível universitário e pós-graduação.
Os documentos eram produzidos a partir de algum tema de discussão apresentado pela professora ou professor durante as aulas. Em seguida, os aprendizes eram convidados a produzir textos orais ou escritos sobre o tema de sua preferência. Os textos passavam por uma revisão, eram devolvidos e discutidos com os alunos. Neste momento, promovíamos uma reflexão sobre questões de ordem linguística e textual com as alunas e alunos individualmente, atentando, sobretudo, para a recorrência dos 'erros' que participam do processo de aquisição e aprendizagem de segunda língua ou língua estrangeira. Por fim, os textos eram publicados no blog, já em sua versão acabada.
Pudemos identificar uma série de efeitos positivos que impactaram a produção escrita dos aprendizes. De maneira geral, os aprendizes tornaram-se mais motivados e participativos em sala de aula, tanto na realização de atividades escritas quanto orais. Isso se deve a uma diminuição do que Krashen e Terrell – em seu tratado sobre a aquisição e aprendizagem de língua estrangeira, The Natural Approach – denominam “filtro afetivo” ou “barreira emocional” (1983)5. Em geral, os aprendizes elevaram tanto o nível linguístico quanto textual de duas habilidades de produção (fala e escrita).
O acompanhamento individual gerou, ainda, maior autorreflexão sobre os "erros" – aqui entendido como elemento constitutivo do processo de aquisição de LE – dos aprendizes, levando-os a testar novas hipóteses e intuições linguísticas. A autoavaliação gerada pela leitura comparativa que os próprios aprendizes faziam dos textos dos colegas os levou a optar por estruturas mais complexas.
Finalmente, notamos que os aprendizes foram muito além na escolha dos temas e não se limitaram às esferas culturais brasileira ou lusófona. Por exemplo, uma autora francesa escolheu discutir em português acerca do sexismo na Coreia do Sul6. Os alunos também produziram textos do gênero literário, como uma história fantástica dividida em série de quatro textos7.
Paralelamente aos efeitos positivos do projeto, também nos deparamos com algumas dificuldades que certamente impactaram a capacidade dialógica dos enunciados. A primeira delas está relacionada ao fato de que os aprendizes não tinham acesso direto à plataforma, uma vez que os textos eram publicados por nós, depois de terem sido corrigidos e discutidos diretamente com os alunos. Ao nosso ver, isso gerou uma quebra no potencial dialógico desses enunciados. O ideal seria ter os alunos publicando e editando seus textos diretamente na plataforma, como ocorre no projeto de escrita e leitura compartilhada Agora, promovido pela Universidade de Paris-Saclay. É possível que o acesso direto gerasse mais reações aos seus textos, aumentando o potencial responsivo das postagens.
Outro aspecto que nos chamou a atenção está relacionado aos comentários. Apesar de o grande número de acessos, houve pouquíssimo uso da ferramenta de comentários, o que enriqueceria muito mais o projeto e criaria maior interação entre os participantes e seu público alvo. Citamos ainda a questão da continuidade de publicação das postagens. Trabalhar em plataforma digital exige periodicidade e muito tempo de trabalho. Portanto, não foi possível garantir publicações ininterruptas ao longo do tempo de realização do projeto, o que também afetou o fluxo de acessos dos leitores.
Considerações finais
Ao nos propormos a publicar os enunciados dos nossos alunos em plataforma digital, nosso intuito foi fortalecer ainda mais a sua posição de sujeitos falantes na língua estrangeira, em nosso caso, o português. Como autores, eles adquiriram mais autonomia para transitar por esferas da cultura lusófona, debatendo aspectos políticos, sociais, históricos, comportamentais, entre outros. Além disso, tiveram a sua própria posição identitária e cultural valorizada, como pudemos observar na escolha e forma de abordagem dos temas que escolheram debater.
No entanto, temos que lembrar que o projeto se situa originalmente na esfera pedagógica formal, em que é mais difícil reproduzir ou criar contextos significativos para os processos de aquisição e aprendizagem. Na linha do pensamento bakhtiniano, teoria discursiva que inspirou esse projeto, a reflexão e refração da realidade é diferente em cada esfera da atividade humana. Enquanto enunciados, os textos têm potencial dialógico-responsivo e independentemente de serem respondidos ou não por um novo enunciado, já são uma resposta a enunciados anteriores, enunciados esses debatidos e estudados em sala de aula, enunciados que transitam por diferentes esferas culturais.