Apresentação
A história do antigo Congo e de como incorporou elementos da sociedade lusitana e do catolicismo é um rico campo de estudos no qual se destacam as questões relativas aos encontros culturais e seus resultados. A estas dedico-me, em especial à análise dos significados que símbolos e ritos católicos tiveram para a sociedade conguesa1. Os trabalhos que abordam a esfera do poder no antigo Congo frequentemente mencionam a Ordem de Cristo como sendo um importante título atribuído aos chefes mais próximos do mani Congo (chamado na documentação de rei do Congo), o que foi percebido por alguns pesquisadores2. A procura pelas menções ao título de cavaleiro da Ordem de Cristo atribuído a chefes congueses pelo menos desde o início do século XVII, e talvez antes, foi o fio condutor deste estudo, que busca interpretar os sentidos dados ao título em diferentes momentos da história do Congo, onde, no século XX, ainda existia. Dessa forma dou sequência a trabalhos anteriores nos quais busquei perceber como a elite conguesa incorporou elementos da organização política e religiosa lusitana3.
As primeiras referências à atribuição do título de cavaleiro da Ordem de Cristo na documentação relativa ao Congo aparecem no início do século XVII e ainda no XIX ele pertencia à organização da política conguesa, herdeira das estruturas implantadas no século XVI por dom Afonso. O catolicismo conguês atravessou o século XVII, quando os holandeses foram importantes parceiros políticos e comerciais e os capuchinhos eram muito ativos na região ; o século XVIII, quando os catequistas nativos, formados nos colégios de capuchinhos e jesuítas, mantiveram viva a transmissão dos ensinamentos religiosos, a despeito de ser rara ou inexistente a presença de sacerdotes católicos ; o século XIX, quando Portugal finalmente impôs seu domínio colonial na região ao norte de Angola, e chegou até o século XX.
Desde o início do século XVII ser cavaleiro da Ordem de Cristo indicava o pertencimento às mais altas esferas da sociedade conguesa. No século XVIII, quando a presença de missionários europeus rareou, o título já era plenamente congo, assim como a forma do catolicismo então praticado. No século XIX, algumas práticas, títulos, entre os quais o de cavaleiro da Ordem de Cristo, e insígnias lusitanas introduzidas a partir do início do século XVI, eram centrais na legitimação da autoridade do mani Congo sobre um conjunto de chefaturas autônomas, mas que se reconheciam simbolicamente subordinadas ao poder estabelecido em banza Congo, ou São Salvador, local de morada nesta e na outra vida de todos mani Congos desde dom Afonso I, que incorporou o cristianismo às estruturas conguesas4. Considerando o amplo período da presença de ritos católicos na região, busco acompanhar o percurso da Ordem de Cristo na organização política conguesa do início do século XVII até meados do século XIX, assumindo, portanto, uma perspectiva de longa duração.
A Ordem de Cristo nas fontes e nos seus intérpretes
A maneira como se deram as relações entre o Congo e Portugal favoreceu a produção de conjuntos documentais de riqueza excepcional, considerando-se a história da África anterior ao século XIX, a partir de quando houve uma proliferação de registros escritos sobre o continente, resultantes das expedições de exploração e da ocupação colonial. Há relatos portugueses sobre o Congo desde o final do século XV e o início do século XVI, e também registros escritos feitos pelos próprios congueses, pois pessoas dos grupos dirigentes, geralmente familiares dos chefes, receberam educação lusitana, foram instruídos nas letras e na religião dos brancos pelos missionários católicos, e tornaram-se secretários dos mani Congos, a quem ajudaram em sua correspondência oficial. Dessa forma algo das relações entre a administração portuguesa e o Congo foi registrado em documentos oficiais emitidos pelas duas partes. As fontes escritas tornaram-se mais detalhadas e abundantes com a intensificação da presença de estrangeiros na região a partir do final do século XVI, principalmente dos portugueses em Luanda e no que então chamavam de reino do Angola, ou conquista de Angola. A partir do século XVII também holandeses, franceses e ingleses passaram a frequentar a costa africana ocidental e a deixar registros sobre suas experiências. Missionários, comerciantes, exploradores e emissários das coroas europeias escreveram histórias e descrições do Congo, a partir dos interesses de seus lugares de origem : Portugal, Vaticano, Países Baixos, e posteriormente França, Inglaterra e Bélgica. Estes trabalhos, por sua vez, foram posteriormente utilizados por antropólogos e historiadores, em um primeiro momento identificados aos interesses coloniais, mas que com as independências e a constituição de estados nacionais africanos buscaram analisar os processos a partir das dinâmicas internas ao continente. Para fazer a história do Congo temos uma quantidade significativa de fontes de todas essas naturezas.
Em muitos estudos sobre o que é chamado na historiografia contemporânea de « reino do Kongo », é mencionada a existência da Ordem de Cristo como um título que o mani Congo atribuía aos chefes mais importantes. Trabalhos mais recentes como o de Cécile Fromont detiveram-se um pouco mais nesse tema do que as rápidas menções que são a norma. Ao analisar com vagar o símbolo da cruz, muito presente no Congo, ela lembra que a cruz de malta é o símbolo da Ordem de Cristo, assim como afirma ter o título de cavalaria europeu se tornado parte integrante da nobreza conguesa5. A cruz no hábito da Ordem de Cristo deve ter sido decisiva para que a insígnia fosse incorporada ao conjunto de símbolos legitimadores do poder. Presente nas velas das naus portuguesas e nos crucifixos que os padres usavam e ofertavam, eram familiares aos congueses, que também tinham-na como importante elemento simbólico6. Cécile Fromont diz que apesar de em princípio apenas o rei de Portugal poder atribuir a distinção, os governantes do Congo investiram seus chefes com a ordem militar lusitana, que gozava de respeito e popularidade na região, havendo sanções quando seus símbolos eram tratados de forma imprópria. Enumera uma série de artefatos, como medalhas, mantos, lacres e brasões, nos quais a cruz da Ordem de Cristo estava presente. A reflexão da autora sobre a Ordem de Cristo, vista principalmente por suas expressões materiais, põe em prática sua noção de « espaço de convergência », no qual são criadas novas formas, novos significados e novas relações a partir do contato entre diferentes sistemas simbólicos.
Dedicado unicamente ao tema da Ordem de Cristo no Congo conhecemos apenas um artigo, de 19327. Nele o autor discorre sobre documentos relativos ao envio de hábito da Ordem de Cristo pelo rei dom Manuel I de Portugal ao mani Congo para que este o atribuísse a quem achasse deles merecedor e tece algumas considerações sobre o assunto. Ao escrever em momento no qual ainda eram escassos os trabalhos sobre o Congo, utiliza as fontes primárias: recorreu a Damião de Góes, ao regimento que dom Manuel I enviou a dom Afonso do Congo em 1512, depositado na Biblioteca de Évora, e analisou uma troca de cartas oficiais depositadas na Torre do Tombo e que depois foram publicadas por António Brásio na Monumenta Missionária Africana, que são as por mim utilizadas. Apesar de ter uma abordagem datada, inserida em um contexto colonial e de empenho catequético, ao analisar a documentação percebe que o título tornou-se africano e independente das instituições portuguesas. Aponta a longevidade da comenda indicando sua menção em vários momentos e encontra indícios, não diz onde, de que no momento que escrevia ainda existia uma Ordem de Cristo, independente do rei de São Salvador.
Como L’Hoist já havia percebido, a autorização dada pela Coroa portuguesa, àquela época unida à da Espanha, para que hábitos fossem enviados para o mani Congo dom Álvaro II (que governou de 1587 a 1614) os atribuir a quem achasse deles merecedores, veio atenuar uma falta denunciad : títulos da Ordem de Cristo haviam sido atribuídos diretamente pelo mani Congo, sem envolvimento das instituições lusas. Se esse comentário existente na documentação indica que no início do século XVII cavaleiros da Ordem de Cristo eram instituídos pelo mani Congo sem envolvimento do rei português, o grão-mestre da ordem, não sabemos desde quando isso era feito. Mas para ilustrar a anterior familiaridade dos congueses com os títulos de cavalaria lusitanos vale mencionar o quadro anônimo datado do final do século XVI que retrata o Chafariz d’El Rey em Lisboa, no qual em primeiro plano, à direita da cena, há um negro montado a cavalo e vestido com o hábito da Ordem de Santiago, tendo à sua frente dois pajens, também negros, todos armados com espadas. Portanto, gente da elite conguesa que circulou por Lisboa na segunda metade do século XVI recebeu o título, exibido em praça pública com garbo e chamando a atenção do autor do quadro8.
Em fevereiro de 1609 a Mesa de Consciência e Ordens explicava que o embaixador do Congo solicitou a concessão de um hábito de cada uma das três ordens militares portuguesas : São Bento de Avis, Santiago e Nosso Senhor Jesus Cristo, no que foi atendido. A cessão dos hábitos e a armação dos cavaleiros estaria condicionada à anuência do monarca português (àquela época Felipe II de Portugal e III de Espanha, que reinou de 1598 a 1621), que deveria ser comunicado se houvesse a necessidade de dispensa da exigência de pureza de sangue, caso fossem os agraciados de casta de mouros e judeus9. Seis meses depois, em agosto, a Chancelaria da Ordem de Cristo confirmava, com mais detalhes, a concessão dos três hábitos que dom Álvaro II atribuiria a quem escolhesse, entre os membros de sua casa ou próximos a ele. Deveriam ser seguidos os procedimentos condizentes com a ocasião, mas estes seriam feitos no próprio Congo, pelo « Capitão Geral da gente portuguesa », que enviaria a Lisboa o resultado das averiguações e a solicitação de autorização real caso fosse necessária a dispensa do defeito de sangue. As matrículas deveriam ser encaminhadas para o convento das ordens militares para ali serem assentadas em livro10. É curiosa a menção à possibilidade de ser preciso dispensa real caso os agraciados tivessem defeito de sangue, pois parece evidente que conforme as normas vigentes eles teriam – a dúvida parece ser quanto a qual procedimento seguir nesse caso específico, no qual se tratava com poderes reais africanos. Talvez o Capitão Geral da gente portuguesa tivesse autonomia para decidir sobre o tema em nome da Coroa.
A concessão respondia a uma demanda do embaixador do Congo, que parecia cobrar o compromisso assumido pela Coroa portuguesa em ocasião anterior, quando esta tomou conhecimento que dom Álvaro II concedeu hábitos de ordens militares lusitanas sem seguir os procedimentos regulares. Em documento datado de 31-3-1607 e que diz respeito a embaixada anterior, de dom Garcia Batista, que acompanhou dom Antonio Manuel ne Vunda, enviado a Roma pelo mani Congo dom Álvaro II e que ficou por dois anos retido em Lisboa, é dito que foi pedida a confirmação pelo monarca português de alguns hábitos que o mani Congo « deitou a fidalgos por seus muitos serviços que lhes fizeram nas guerras que teve contra seus tios e irmãos11 ». Em resposta, é dado o esclarecimento que tais hábitos só podiam ser atribuídos mediante determinados procedimentos, controlados pelo rei português e pelo papa. O mani Congo deveria ser repreendido e os hábitos não poderiam ser usados pelas pessoas a quem haviam sido atribuídos. Mas logo a seguir, de acordo com uma política de boa vizinhança, fica registrado que para satisfazer dom Álvaro II e devido à « boa vontade que lhe tem », o monarca português lhe concederá um hábito de cada uma das três ordens militares de Portugal, « para as pessoas que ele nomear ». Manda também que se deem os despachos necessários « para lhe sere lançados, com que parece se dá remédio ao que está feito, e ao dito Rey se deue contentar12 ». A solução encontrada foi abrir uma exceção, « por esta matteria ser da consideração e qualidade que hé, e que naõ sofre proçederse nella por termos geraes », e permitir que dom Álvaro II atribuísse, por uma vez e conforme a norma portuguesa, ordens de cavalaria a chefes sob sua autoridade, merecedores de reconhecimento por atos em defesa do mani Congo e do cristianismo. Pois os « fidalgos » que poderiam receber o título de cavaleiro da Ordem de Cristo e das outras duas ordens militares serviram ao mani Congo contra « tios e sobrinhos » seus, ou seja, contra chefes ligados ao poder central conforme diferentes hierarquias, e que se rebelaram contra ele, talvez contra as alianças e relações com os brancos portugueses. De acordo com a natureza primeira das ordens de cavalaria, em especial a de Cristo, dela eram dignos os homens pertencentes aos extratos sociais mais elevados e que se batiam militarmente na defesa do cristianismo. Esse deve ter sido o argumento usado pelos embaixadores congueses, que se dirigiam para Roma, e também destacado pelas autoridades portuguesas, que recomendavam que o caso fosse tratado de maneira excepcional. O Congo era um parceiro importante o suficiente para receber tratamento especial e o caso em questão ilustrava sua « conversão » ao catolicismo, que teria ocorrido graças à ação lusitana, o que fortalecia a posição de Portugal na busca por legitimar sua soberania sobre terras de além-mar.
Assim, o rei português cumpriu com sua palavra e dois anos depois de recriminar a autonomia do mani Congo concedeu três hábitos a serem atribuídos conforme a vontade deste e confirmados pelo Capitão Geral dos portugueses no Congo, seguindo-se a anuência real e a posterior inserção das atribuições no livro de matrículas das respectivas ordens. Ou seja, conforme os procedimentos estabelecidos pelas normas administrativas portuguesas. Com relação a esse episódio, Thornton e Heywood levantaram a possibilidade de que dom Álvaro I tivesse atribuído títulos de cavaleiro com a anuência do rei lusitano, mas que em 1607 Felipe II de Portugal (III de Espanha) tenha negado tal permissão a dom Álvaro II, para o quê, entretanto, dizem não haver provas documentais. Na sequência os autores mencionam um pedido feito por dom Álvaro III ao papa para que pudesse ter sua própria ordem, e dizem que apesar de nunca terem encontrado evidência documental de que isto tenha ocorrido, os « reis atribuíram os títulos durante toda existência do reino13 ». Com relação ao que entendem ser um pedido de dom Álvaro III ao papa talvez os autores estivessem se referindo ao pedido feito por dom Ambrósio, mencionado mais adiante.
Dom Álvaro III (que governou de 1614 a 1622), sucedeu a seu pai e quando por sua vez morreu, dom Pedro Afonso, descendente direto de dom Afonso I como seus antecessores, foi eleito mani Congo, depois de percorrer uma trajetória de destaque na vida política local, sempre defendendo interesses cristãos, o que fez com que o mani Congo, tudo indica que dom Álvaro II, lhe atribuísse o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, « dandolhe hú dos hábitos que Sua Magéstade lhe mandou14 ». Nas cerimônias fúnebres de dom Álvaro III o hábito da Ordem de Cristo constava entre as insígnias de poder enumeradas pelo autor do documento que discorre sobre elas e sobre a transmissão do poder para dom Pedro Afonso15.
André L’Hoist menciona a carta enviada em 1624 pelo cônego de São Salvador ao padre jesuíta Manoel Rodrigues, para dizer que Nkanga Mbika ne N’tumba Mbemba, que sucedeu a Álvaro III com o nome de Pedro Afonso II, recebeu do mani Congo o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo16. Ele entende que a criação de uma Ordem de Cristo puramente conguesa teria ocorrido no período em que os holandeses controlavam os portos da costa e o Congo rompeu com Portugal. Mas além de não ter havido uma ruptura com Portugal da parte do Congo, não conhecemos até agora nenhum documento que indique que outros hábitos tenham sido enviados, com sansão do grão mestre da ordem, além daqueles de 1609, quando houve a clara recomendação de que os três hábitos, das três ordens militares, fossem distribuídos pelo mani Congo por uma única vez. Por outro lado, os documentos também indicam que o mani Congo já os distribuía por conta própria antes dessa data.
Com ou sem a anuência ou o conhecimento do rei de Portugal, o hábito da Ordem de Cristo (as outras ordens não são mais mencionadas) entrou para o rol das insígnias de poder altamente valorizadas no Congo. Em 1628 o mani Congo dom Ambrósio, em evidente movimento para se distanciar de Portugal, o que não significa que as relações entre os dois estados estivesse rompida, escreveu ao Papa Urbano VIII solicitando entre outras coisas que lhe fosse concedida autoridade para honrar o serviço de seus « vassalos com uma divisa ou hábito que se chamasse de São Salvador », nome da Sé de sua capital, que teria a imagem do salvador « cozida na capa sobre o peito », ou o que parecesse mais conveniente ao papa, sem cuja aprovação o mani Congo dizia não querer fazer nada17. Como a tentativa de oficializar a criação de um título próprio não vingou, o mani Congo parece ter se apegado ao já obtido e desconsiderou a recomendação de que os três diferentes hábitos vindos de Portugal fossem atribuídos apenas uma vez a altos colaboradores escolhidos localmente, pois pelo menos o da Ordem de Cristo passou a integrar a estrutura política do Congo. A partir dos relatos de Dapper, Zuchelli e Cavazzi, L’Hoist entende que após o século XVII, não era mais feito o ordenamento formal e a dignidade atribuída pelo título era indicada por meio de uma cruz costurada à roupa18. Como veremos adiante assim era feito com a roupa, mas no final do século XVIII havia um ordenamento formal.
Segundo John Thornton, a despeito da ausência de documentos que esclareçam como foram atribuídos os títulos de cavaleiro da Ordem de Cristo, em 1645 tanto o rei quanto nobres de « grau médio » usavam seu símbolo nas insígnias, e « reis » atribuíram o título pelo resto da existência do « reino19 ». A incorporação do título de cavaleiro da Ordem de Cristo à estrutura política do Congo e de seu hábito como insígnia de poder integra o conjunto de elementos do catolicismo que foram adotados pelos congueses, em especial pelos grupos dirigentes, por meio de processos que lhes atribuíram sentidos construídos a partir do sistema simbólico conguês. Dentre esses elementos a cruz é o mais presente, pois aparece de várias formas, especialmente ligada à autoridade dos chefes do Congo, para cuja legitimação o vínculo com o catolicismo continuou central. A cruz de malta da Ordem de Cristo remetia a importante símbolo da cultura local, o que, como mencionado, alguns estudos já analisaram. Esse fator parece ter sido fundamental para a adoção da mercê, representada pela cruz pregada na vestimenta, que indicava a aliança entre o mani Congo e os cavaleiros da Ordem de Cristo, chefes que, como ele, sustentavam sua legitimidade no pertencimento a dadas linhagens, em um sistema de titulação e na ligação com o catolicismo congo.
Outra autora que também considera o catolicismo como elemento integrante da estrutura de poder no Congo é Susan Herlin Broadhead. Para falar da Ordem de Cristo ela recorre ao artigo de L’Hoist e, com seu olhar agudo que lhe permite interpretações que influenciaram fortemente a historiografia sobre o Congo, a considera um exemplo da apropriação de títulos portugueses pelo sistema hierárquico local, tendo se tornado uma instituição independente de Portugal20.
Um título da hierarquia conguesa
No início do século XVII, época na qual a estrutura política do Congo integrou a mercê, foi criada em Roma a Congregação para a Propagação da Fé, ou Propaganda Fide, com a tarefa de expandir o catolicismo para terras longínquas. A partir de 1645 missionários capuchinhos foram enviados de Roma e sacerdotes católicos estiveram bastante presentes no Congo. Eles serviam aos interesses da Igreja e da Coroa lusitana, de cuja proteção dependiam, mas também aos dos chefes locais, para os quais o catolicismo havia se tornado importante instrumento na manutenção do poder. Pregavam o evangelho, distribuíam sacramentos, ensinavam as letras e os preceitos cristãos para os filhos da elite. Contavam sobre seus feitos em cartas, relatórios e histórias que escreviam e eram divulgadas no amplo espaço da catequese cristã, afirmando vitórias do Vaticano e de Portugal. Mas também tinham importante papel nos jogos de poder locais e eram requisitados pelos chefes, que os queriam ao seu lado.
O projeto catequético iniciado por dom Afonso I, que governou de 1507 a 1542, floresceu e se espalhou por territórios integrantes do Congo. Ao chegar ali os capuchinhos enviados de Roma encontraram os resultados de mais de um século de contato com o catolicismo, e assumiram sua missão com a abnegação própria da ordem e um sincero empenho no trabalho de salvar as almas daqueles que batizavam. Nas missões que eles abriram foram educados muitos jovens das linhagens dominantes. Nisto foram apoiados pelos jesuítas, que diferentemente dos capuchinos que se dirigiam para a capital do Congo e seus sertões, se mantinham em Luanda e suas cercanias, onde recebiam em seus colégios filhos da elite conguesa, a quem ensinavam as letras e a religião dos brancos.
No século XVIII era central a atuação dos mestres, catequistas e intérpretes, que estudaram com os missionários e garantiram a manutenção das práticas e ensinamentos católicos, integrados de forma dinâmica às práticas e crenças tradicionais. O Congo cristão, por meio do qual Portugal propagandeava seu sucesso como reino evangelizador e os missionários o seu sucesso catequético, era resultado da forma particular pela qual narrativas, objetos, ritos, títulos introduzidos a partir do contato com os portugueses foram adotados localmente. A elaboração do catolicismo local foi obra dos que aceitaram os ensinamentos dos missionários, adaptaram-nos às necessidades locais, atribuíram-lhes significados próprios e mantiveram a sua prática e ensino de uma geração para outra. A diminuição da presença de missionários ocorrida no século XVIII, fossem enviados de Roma, Lisboa ou Luanda, consolidou a influência dos mestres nativos, entre os quais alguns foram sagrados padres21.
Após um longo interregno de cerca de 40 anos, em 1779 chegou a Angola um grupo de vinte sacerdotes enviados pela Coroa portuguesa, dos quais quatro foram destinados ao Congo, sendo que um morreu no caminho, depois da partida de Luanda em 1780. Um dos três que chegaram à capital depois de muitas privações ao longo da viagem foi o franciscano português Frei Rafael Castelo de Vide, que deixou um longo relato acerca da sua estadia no Congo, de 1780 a 1787. Sua narrativa confirma a antiga prática de cavaleiros da Ordem de Cristo serem armados pelo mani Congo.
Nos sete anos que passou no Congo, Castelo de Vide conheceu três mani Congos, ou reis, como sempre são designados por ele : dom José I, dom Afonso V e dom Alvaro Mfutila. Como explica o missionário, o Congo era um « reino muito antigo e dilatado » e no momento estava « dividido entre muitos grandes levantados que se separam do rei mas sempre se reconhecem seus vassalos e sujeitos22 ». Acrescenta que a maioria desses chefes abraçava a fé católica, introduzida pelos portugueses no tempo de dom João II. Ao longo do trajeto para banza Congo foi recebido com pompa e consideração pelos chefes das banzas pelas quais passou e com entusiasmo pela população, que solicitava ser batizada. Sobre um desses chefes, intitulado « Marques de Bemba », diz ser « homem velho de bom propósito, Cavalleiro do hábito, e Capitão da Igreja, título que costumam dar os Vigários Gerais deste Reino, a alguns grandes que fazem alguns serviços à Igreja, e de que eles muito se prezam23 ». Pelo caminho Castelo de Vide se viu envolvido na disputa sucessória em curso, pois quando chegou na terra do mani Bamba, em cuja banza foi recebido com a pompa habitual, este se disse regente do Congo, atribuição que teria recebido de dom Pedro V, o rei, que estando ausente lhe havia entregado o governo. O mencionado mani Congo já havia morrido e o sucessor reconhecido pela maioria era dom José I. A caminho da « cidade de Bamba de São Salvador », como se refere a banza Congo, Castelo de Vide encontrou-o, quando seguia para assumir o lugar de mani Congo. Integrou-se então à sua expedição, composta de séquito e exército, e com ela chegou à capital, onde se instalou, juntando-se aos seus dois companheiros, que haviam chegado antes dele.
Em banza Congo, ou São Salvador, encontrou as ruínas das doze igrejas que lá existiram e tratou de recuperar uma parte da antiga Sé, providenciando para ela telhado e dando condições para que pelo menos parte dela servisse de templo novamente24. A presença de missionários junto ao mani Congo era de importância central, pois ritos católicos tinham lugar de destaque na construção de identidades e na legitimação de poderes. A benção de um sacerdote católico era requerida em momentos como a entronização de um mani Congo, e nos ritos funerários por ocasião de sua morte. Mas nem todos receberam-na devido à ausência de sacerdotes. Alguns chefes foram embalsamados e aguardaram por anos para serem sepultados com a presença de um padre. Conforme o relato do capuchinho italiano Frei Raimundo de Dicomano, que chegou a São Salvador cinco anos após a partida de Castelo de Vide, era feito todo o esforço para enterrar os « Fidalgos » nas igrejas de São Salvador, ou no lugar onde elas haviam existido, e « apezar de se acharem muitos dias de viagem » quando havia padre para lá levavam os defuntos, « pelo que acontece que se enterraõ defuntos que morreraõ havia outo, dez, e mais annos25 ».
Uma cerimônia que também exigia a presença de um padre era a atribuição de hábitos da Ordem de Cristo. Com relação a ela Rafael Castelo de Vide relata que :
No meu ministério de Vigário Geral, armei de Cavalleiro e professo na Ordem de Cristo, segundo seu costume a dois Fidalgos, e ao nosso condutor, que tinha vindo de Angola, a quem o Rei fez a mercê de os fazer Cavalleiros, cuja ação se fez na presença do Rei com grande aparato, segundo pede a terra, e é costume dos Vigários Gerais lhe lançar o Hábito, e tomar o juramento, e ao nosso condutor, além de outras dádivas fez o Rei a tal mercê por ser a maior honra, que aqui se faz só aos grandes Fidalgos, pelos grandes serviços, que havia feito de nos conduzir ao Congo; e estas três mercês primeiras as fez o Rei de graça quando é aclamado, e as mais para diante destas custam muito bem aos que a querem26.
Portanto, por ocasião da sua chegada à capital, o novo mani Congo, acompanhado de um padre enviado pela Coroa portuguesa para ali se instalar, o que certamente lhe aumentava a autoridade, consagrou três cavaleiros da Ordem de Cristo no contexto das celebrações de sua posse, sem por isso exigir os tributos que os agraciados normalmente pagavam para ter a honra de receber o hábito, conferido aos que prestavam serviços importantes ao mani Congo.
A narrativa de Raimundo de Dicomano, que passou três anos em São Salvador na década seguinte, entre 1792 e 1795, destaca os limites do alcance do catolicismo, mesmo em sua versão local. É bom lembrar que este estava sempre ameaçado pelo vigor das crenças tradicionais e pela energia dos seus sacerdotes, que não aceitavam a eliminação dos ritos sob sua responsabilidade, sendo opositores constantes dos missionários. No relato feito a pedido do governador de Angola Raimundo de Dicomano descreve aspectos da sociedade conguesa e relata seus infortúnios, que incluíram roubos, mau tratos, tentativas de envenenamento e mesmo dificuldades para retornar a Luanda, o que só conseguiu depois da interferência do mani Vunda, principal sacerdote do Congo, que saiu em sua defesa e argumentou que seria uma vergonha para os congueses pretender « que um sacerdote fosse tido como escravo27 ». A proteção do mani Congo e seus aliados era fundamental para a sobrevivência e o livre trânsito dos missionários, como sempre havia sido.
Como mencionado, no final século XVIII a manutenção dos ritos e ensinamentos católicos estava a cargo dos mestres locais e a sua versão da religião era a aceita, em detrimento do que o missionário pregava. Diz Raimundo de Dicomano: « Quando se lhe explica e inculca a ideia verdadeira dos santos mandamentos, fazem favor se nos ouvem, mas enfim respondem que não são estes os costumes, e as Leis do Congo, e que o Padre não está bem ensinado28 ». No entender dos mestres nativos « pertence aos mestres, e aos escravos velhos ensinar o Missionário » – referindo-se aqui àqueles que eram conhecidos como escravos da igreja e que cuidavam dos objetos de culto, da realização dos ritos e da transmissão dos ensinamentos.
Dentre os sacramentos católicos apenas o batismo era popular, e resumia-se a receber o sal do sacerdote. O missionário conta como teve que batizar mais de 25 000 pessoas, principalmente crianças, o que fez para poder sobreviver com o que lhe era pago por esse serviço, a despeito de ninguém ouvir sua pregação. Casou quatro ou cinco « infantes », como eram chamados os membros da elite governante considerados descendentes de dom Afonso I, deu uma ou duas extrema unções, sacramento que era associado à morte e nada desejado, ouviu por meio de intérpretes algumas confissões, e deu sua opinião ao dizer que ao pedirem missionários os congueses não desejavam propriamente ser católicos mas eram movidos por vis interesses : « Havendo Missionário se fazem enterros, officios, se armam Cavalleiros e por cauza destas funçoens ecclesiasticas ganha El Rey, os Conselheiros, o Principe ou seja Rey de fora, os Mestres, porque todos estes querem ser pagos29 ».
Sobre a Ordem de Cristo Raimundo de Dicomano diz :
Tem no Congo a Ordem Militar dos Cavalleiros da Ordem de Cristo, concedida pelos senhores Reys de Portugal. El Rey não pode armar cavalleiros nem elles uzar do Habito se o Padre não lho lançar. Mas esta Ordem naõ consiste senaõ em serem estimados fidalgos, e ter o privilegio de poder metter muitas cruzes de panno de varias cores nos seus capotes, e nos seus pannos de palha, com que ordinariamente se vestem30.
O trecho indica que a atribuição do título, em cerimônia conduzida pelo mani Congo, envolvia o lançamento do hábito pelo sacerdote católico, e a autorização de pregar cruzes nas roupas e objetos ligados à representação do poder, como no « capote » e no « chapéu de sol ». Assim como o símbolo da cruz foi analisado por Cécile Fromont como um « espaço de convergência » a partir do qual foram criados novos significados e novas relações, o título de cavaleiro da Ordem de Cristo também pode ser visto como um « espaço de convergência » : resultante do encontro de culturas diferentes que se transformam na relação estabelecida, assim como transformam a própria relação existente entre elas. Àquela altura os agentes portugueses viam com naturalidade a apropriação da mercê pelo mani Congo.
A incorporação do título, que era concedido a um membro da elite dirigente que o mani Congo quisesse distinguir, materializava-se no rito no qual a benção do padre era acompanhada da entrega da roupa com a cruz, e que apesar de ter adquirido feições físicas e simbólicas próprias tomava como modelo o hábito enviado pela Coroa portuguesa. Desde a aceitação inicial do catolicismo pela elite conguesa, a benção do sacerdote católico era fundamental para várias cerimônias ligadas aos chefes, em consonância com a incorporação de elementos do catolicismo na organização política do Congo. No final do século XVIII este era um estado constituído mais por laços simbólicos, entre eles elementos do catolicismo, do que pela real dominação do mani Congo sobre um dado território e sua população.
Ao mencionar a Ordem de Cristo em sua análise dos lugares ocupados pela cruz na cultura visual congo, Cécile Fromont chamou atenção para o frontispício do manuscrito da obra de 1680 de António de Oliveira de Cadornega : uma aquarela na qual estão representados o « Rei do Congo e o Rei de Angola ». No seu entender, no peito do mani Congo está desenhado um medalhão da Ordem de Cristo, semelhante ao que foi desenterrado em Ngongo Mbata, que tinha entre seus dois lados articulados um papel que atestava a inclusão do seu proprietário na Ordem de Cristo31. Cruzes penduradas no pescoço eram emblemas importantes e utilizados até o século XX, mas nas referências às insígnias de cavaleiro da Ordem de Cristo não são mencionados medalhões e sim cruzes de pano, costuradas em capotes e casquetes, o que faz especialmente interessante a referência de Fromont, dada a sua excepcionalidade. Mas na aquarela em questão nem a aparência, nem a explicação de quem a fez, confirma que a imagem represente um medalhão. O próprio autor da História Geral das Guerras Angolanas explica que na estampa o rei do Congo é retratado « como o pintam, com seu hábito de Cristo nos peitos ». Diz ser a razão disso os reis portugueses terem mandado ao rei do Congo alguns hábitos da Ordem de Cristo quando introduziram ali a fé cristã, para serem atribuídos a seu « filho primogênito » e « a algum grande de seu reino, e por esta razaõ uzam delle e os pintaõ com taõ catholica diviza32 ». O que é retratado me parece ser uma roupa com uma cruz, talvez costurada, e não um medalhão pendurado ao pescoço. Na sequência do texto, Cadornega conta sobre um incidente no qual o mani Congo atribuiu um « hábito da cavallaria de Nosso Senhor Jesus Cristo » a um português, Jerônimo Lopes Mialhas, que era Ouvidor Geral em São Salvador, ou banza Congo. A contestação feita pela administração lusitana indica que ao lado da delimitação de sua abrangência, que se restringia aos « grandes da sua corte », havia o reconhecimento de que o rei do Congo podia distribuir hábitos entre os seus, o que se justificaria pela autorização dada no passado pelo grão mestre da ordem, o rei de Portugal33. Ou seja, no tempo de Cadornega havia o reconhecimento da legitimidade do título se inserido no contexto da política conguesa.
No que diz respeito à utilização política da atribuição do título, que transparece no episódio relativo a Mialhas, é ilustrativa uma história que Castelo de Vide narra ao término de suas três relações, em uma carta final que sintetiza informações nelas contidas. Trata-se de um entrevero em torno da sua recusa em benzer o corpo do falecido Príncipe de Quibango, seu afilhado, a quem batizou, casou e ensinou, enquanto não fossem expulsos daquela banza comerciantes (mobires) hereges (holandeses ou seus fornecedores), a quem estavam sendo vendidos escravos cristãos. O mani Congo tinha grande interesse na investidura de três chefes que não eram de sua facção, com o que os traria para perto de si, e o padre se aproveitou disso para satisfazer sua exigência, que favorecia os interesses dos comerciantes portugueses. Diz ele:
Neste tempo, vieram três Infantes da outra parcialidade para o Rei lhe dar o hábito de Cristo, como eles cá cuidam, o Rei tinha grande empenho nisto, por serem da outra parte, a quem pelo receio queria agradar, e por se darem por seus parentes, mas como o Rei para dar o hábito há-de ser junto com o Padre, vestindo-o ambos, e dando-lhe a espada, que não tem mais nada, nós, vendo que por essa ocasião podíamos lançar fora o negócio, negámos sempre assistir a tal função sem se lançarem fora primeiro os Mobires, e dar-se bando para não tornarem mais a esse Reino, com as penas costumadas. Custou muito; os Infantes tiveram bastantes dias; as rogativas corriam, e nós sempre firmes. Com efeito, houve de obedecer o Rei, e mandar logo lançar fora todos, e dar o bando, pelo que eu, ainda temendo o seu engano, não quiz ir por ter feito juramento de tal hábito não dar, enquanto houvesse Mobires, e segurando-nos todos por ser tudo verdade, o Padre Doutor foi; mas não faltaram suspeitas de que ficaram alguns escondidos, mas agora não há fama deles34.
A concessão do título no final do século XVIII foi, neste caso, importante moeda, tanto na política interna ao Congo como na sua relação com os portugueses. Destes os chefes dependiam para o envio de padres, necessários para a afirmação de posições de mando em um contexto de muitas disputas entre as « parcialidades », como Castelo de Vide se refere às diferentes facções políticas, representadas por diferentes linhagens. Pelo seu lado, os padres não estavam alheios aos interesses do comércio e usavam sua influência para garantir que os escravizados fossem direcionados para os portos controlados pelos portugueses35. Nesse trecho fica nítida a teia de relações que unia as esferas do poder, da religião e do comércio no contexto das relações em curso no território do Congo no final do século XVIII, como acontecia desde o século XVI. Era fundamental a legitimação de atos importantes do mani Congo pelos sacerdotes cristãos, principalmente em uma situação de instabilidade política e de contestação da sua autoridade36. O padre português, pelo seu lado, defendia não apenas os interesses espirituais da Igreja e a necessidade de salvar almas como os interesses materiais da economia portuguesa, para a qual devia ser mantido o monopólio das relações comerciais com as regiões subordinas a banza Congo. Mesmo sendo mais interessante para os congueses comerciar com os mercadores holandeses, que impunham menos restrições para efetivar as trocas e ofereciam produtos de melhor qualidade e com preços mais atraentes, as exigências feitas por Castelo de Vide são por fim acatadas, apesar do próprio sacerdote admitir que alguns comerciantes poderiam ter ficado escondidos.
Conclusão
Entre as possibilidades oferecidas pela organização política e social portuguesa, a adoção do título de cavaleiro da Ordem de Cristo foi, nos séculos XVII, XVIII e XIX, importante para a organização política e social conguesa, como alguns autores já haviam percebido. Conforme a interpretação aqui proposta, a incorporação do título deveu-se em parte por ser representado pela cruz, símbolo central na cultura congo por remeter à conexão entre a esfera do visível e a do invisível e ao exercício do poder. Os que faziam esta conexão eram, além dos sacerdotes, os chefes, que faziam uso de insígnias com esse signo37. Exclusivo da alta hierarquia política e atribuidor de especial prestígio aos seus detentores, o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, assim como a cruz, foi um « espaço de convergência » entre sistemas simbólicos distintos. Para isso também contou a importância da atribuição de títulos, e da ritualização dos atos que os concediam, para a organização social e política conguesa.
Junto com o Regimento de 1512, no qual D. Manuel I enumera uma série de procedimentos a serem dali por diante adotados pelo seu « irmão », rei do Congo – que incorporou apenas alguns –, há o envio de estandartes e brasões para serem utilizados e exibidos em determinadas ocasiões como guerras e demonstrações bélicas, quando deveriam abrir o caminho, carregados por pessoas tituladas e indicando o pertencimento dos exércitos a dadas linhagens38. A elite conguesa selecionou os aspectos da cultura estrangeira a serem incorporados, entre os quais desde os primeiros contatos se destacaram elementos do catolicismo, como o batismo, as missas e a cruz, e do sistema de identificação das elites, como a utilização de brasões, do designativo de dom e dona, e dos títulos nobiliárquicos, como rei, infante, duque e marquês.
O título de cavaleiro da Ordem de Cristo, provavelmente conhecido desde o início do século XVI, quando muitos filhos e parentes próximos do mani Congo foram estudar em Portugal, foi um dos elementos da organização política e social lusitana incorporado na estrutura de poder do Congo. Talvez atribuído diretamente pelo mani Congo no final do século XVI, sem passar pelos procedimentos regulamentares próprios da instituição lusa, teve no início do século XVII a sua legitimidade de alguma forma reconhecida quando o rei de Portugal enviou hábitos para serem atribuídos conforme as regras da instituição lusa e a vontade do mani Congo. A partir de então passou a integrar o sistema de titulação conguês, seguindo as normas locais de atribuição de títulos, acrescidas das que foram adquiridas com a incorporação de elementos do catolicismo como legitimadores do poder. Entre estes os sacerdotes católicos tinham um lugar de destaque, sendo monopolizados pelo mani Congo, para os quais eram centrais certos atos que só eles podiam executar. O acesso aos missionários e suas bênçãos era disputado com vigor, ainda mais em momento no qual eles rareavam e em que o poder central estava fragilizado pela nova organização do território, estabelecida a partir de meados do século XVII, quando disputas internas e guerras com os invasores portugueses levaram a uma fragmentação dos poderes, fortalecidos localmente, especialmente nas regiões onde o comércio de escravizados era maior.
No período de fragmentação da organização política do Congo, cujo marco temporal inicial é estabelecido em 1665, quando foi derrotado pelos portugueses na batalha de Ambuíla, a união entre as partes se dava principalmente por meio de relações de titulação, de parentesco e de alianças, para as quais a linguagem do catolicismo conguês (conguês?) tinha assumido um importante lugar, que remetia ao mito de fundação do Congo cristão por dom Afonso I. A consolidação da Ordem de Cristo na organização política conguesa está associada à fragilização do poder central, sendo o controle da sua atribuição fator de garantia do reconhecimento da autoridade do mani Congo. O nome do título e a cruz que o identificava não deixavam dúvidas quanto à ligação da comenda com a religião adotada pelos chefes, assim como sua origem, atribuída ao rei de Portugal, o irmão cristão do mani Congo que enviava os missionários que lhe eram tão úteis.
A perenidade do título atesta a sua eficácia na organização social conguesa. Para o início do século XIX há pouca informação disponível devido à escassa presença de portugueses e de missionários no Congo nesse período. Luanda era o centro das atividades lusitanas na colônia que chamavam de Angola desde o século XVI e que consistia em alguns núcleos estabelecidos pelos portugueses em meio a sociedades africanas. A partir da segunda metade do século XIX, o crescente interesse europeu pelo continente africano estimulou a chegada de comerciantes, missionários e exploradores a serviço de grupos econômicos e políticos, e a quantidade de relatos sobre a região do Congo aumentou.
Uma nova fase da história se iniciou com o governo de dom Pedro V, que ascendeu ao poder em 1857 e morreu em 189139, sucedendo dom Henrique II (eleito em 1842 e morto em 1857), após disputar o poder com dom Álvaro XIII, que teria sido o escolhido pelo corpo de eleitores mas foi desbancado pelo rival, com o apoio militar português. O governo de dom Pedro V (de fato VI como mostra Bontik), marcou a transição do comércio de escravizados para o de mercadorias como a borracha e o marfim, lidou com a instalação na foz do rio Congo e em São Salvador de casas comerciais francesas, inglesas e holandesas além das portuguesas, e com a chegada de missionários protestantes batistas ingleses e católicos espiritianos franceses. A estes havia sido entregue, em 1865, a Prefeitura Apostólica do Congo, instituição do Vaticano, depois do encerramento da sua administração pelos capuchinhos, que vigorou de 1645 a 1835.
Como faziam os portugueses desde o século XVI, a partir da segunda metade do século XIX os missionários passaram a servir de frente avançada para a ocupação europeia do continente, coletando informações, estabelecendo pontos de apoio e alianças com chefias locais, abrindo o caminho para o trânsito de mercadorias. Depois de uma longa ausência que durou quase todo o século XIX, em 1881 chegou em São Salvador uma missão católica portuguesa, como reação às boas relações do mani Congo com os batistas ingleses. Era chefiada pelo Padre António de Sousa Barroso, que até sua partida em 1888 foi uma eminência parda, e para quem a fidelidade ao catolicismo implicava em fidelidade a Portugal. Ele deve ter sido o maior inspirador das cartas assinadas por dom Pedro V nas quais este apoiava as reivindicações portuguesas contra as inglesas sobre a região.
Pedro V conquistou o poder recorrendo às armas, como aliás era frequente na história do Congo, e contou para tal com o apoio militar português. Ele tinha bom trânsito com comerciantes de várias nacionalidades, para os quais era um importante fornecedor de mercadorias e carregadores. Como seus antecessores, utilizava as insígnias e ritos católicos para afirmar sua autoridade sobre os chefes de um território constituído por poderes fragmentados, mas que se entendiam como parte de um todo maior, subordinados ao ntotila, mani ou rei do Congo, estabelecido em São Salvador. Nos relatos existentes dom Pedro V é descrito como um homem corpulento, que além do seu bastão de mando e da espada de poder, trazia um crucifixo pendurado no peito. Bontik conta que quando o padre Barroso retornou a Lisboa em 1888, dois filhos do mani Congo foram com ele : dom Alvaro Senior, nomeado pelo pai cavaleiro da Ordem de Cristo, e dom Alvaro Junior, aluno da escola missionária de São Salvador40.
L’Hoist menciona o viajante alemão Bastian, que visitou São Salvador em 1857, no início do governo de dom Pedro V, e que relatou em seu livro, publicado em 1859, que viu um diploma de cavaleiro da Ordem de Cristo, feito em nome do rei, com o selo vermelho do « reino do Congo », concedido a Domingo de Água Rosada. Como já mencionado, diz ainda que no tempo em que escrevia, 1932, existiam indícios da existência de uma Ordem de Cristo que seria independente do rei de São Salvador41.
Inserida em uma estrutura na qual o poder é legitimado pelo sagrado, a Ordem de Cristo era atribuída pelo mani Congo e pelo padre católico, em sintonia com a cristianização e lusitanização instauradas desde o governo de dom Afonso I. A importância dos ritos, insígnias e símbolos católicos na organização política do Congo é atestada por muitos relatos feitos desde o século XVI. Estudos recentes têm chamado a atenção para como essas práticas e ensinamentos foram mantidos por « mestres da igreja », formados por missionários nas escolas que lá existiram, que por sua vez formaram outros mestres quando padres brancos desapareceram. É surpreendente a longevidade da organização político-religiosa montada por dom Afonso I, aprimorada por dom Álvaro II cerca de um século depois, importante sustentáculo da união entre as « parcialidades » no final do século XVIII, e também quando estas ganharam crescente autonomia e ficou mais diversificada a presença europeia na região, já no século XIX. A atuação de missionários por muitos lugares do Congo, especialmente capuchinhos de 1645 até o final do século XVIII, foi fundamental para a permanência e disseminação das práticas católicas, adotadas de maneiras diversas, às vezes impostas sem bons resultados, mas frequentemente incorporadas com relativa tranquilidade uma vez que a elas eram atribuídos significados pertinentes às pessoas do lugar.
Da curta estadia de Raimundo de Dicomano até a segunda metade do século XIX os padres católicos desapareceram quase por completo. A partir de então alguns poucos foram enviados a São Salvador, por pequenas temporadas, até a instalação do padre Barroso em 1881. Este voltou a unir os interesses da religião, da política e do comércio, que convergiam para o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, que adequou a ordem militar religiosa medieval às estruturas locais, e foi vista por Dicomano, de forma crítica, entendendo ser das poucas razões pela qual a presença de sacerdotes católicos era desejada.
A história da sagração de cavaleiros da Ordem de Cristo, existente pelo menos até o início do século XX, confirma o argumento aceite por quase todos que estudam o Congo cristão, de que « por séculos símbolos católicos foram centrais na cultura política congo42 ».