Martim Velho Barreto foi um entre os muitos mercadores que fizeram da vila de Viana da Foz do Lima um eixo comercial importante nas ligações do reino com o Brasil e o norte da Europa1. Vários aspetos, no entanto, o tornam especial: as suas competências em matéria financeira e a sua atividade creditícia fazem dele um banqueiro, tanto mais que o seu livro de contas sobreviveu até aos nossos dias, o que constitui caso raro entre os fundos arquivísticos portugueses. Neste artigo, revisita-se esta fonte enquanto conjunto de saberes transmissíveis, mas também a convivência multigeracional da família de Martim Velho Barreto com a América Portuguesa. Ao acumular experiências ao longo de várias gerações, juntou um conjunto de saberes que se mantiveram constantes na história da vila de Viana e constitui um exemplo do que podia ser uma trajetória familiar de mercadores dessa centúria, bem como dos seus membros considerados individualmente.
Entre Viana da Foz do Lima e o Brasil: percursos familiares
O antepassado mais remoto de Martim Velho Barreto que conseguimos rastrear com segurança foi João Velho (c. 1475), casado com Leonor Gomes Barreto, devendo a união dos dois apelidos remontar a este casamento. Era escudeiro do duque de Bragança, e a sua pertença às elites locais de Viana é inquestionável: figura como tendo sido anfitrião do rei D. Manuel em 1502 quando este passou pela vila em direção a Santiago de Compostela2.
João Velho foi sexto avô de Martim Velho Barreto e a família tinha-se naturalmente expandido ao longo dessas seis gerações. Encontramos trinetos do primeiro entre os fazendeiros e senhores de engenho de Pernambuco na década de noventa do século XVI, graças aos processos do Santo Ofício: o fazendeiro Álvaro Velho Barreto e Luís do Rego Barros, senhor de engenho3. O primeiro era dado no processo como casado, cristão-velho, natural de Viana, de 47 anos à data do processo inquisitorial e morando na Várzea de Capibaribe (Recife)4. Já Luís do Rego Barros figura igualmente como cristão-velho, casado, tendo 41 anos em 1595, igualmente nascido em Viana. O seu engenho situava-se em Maciapé, também na capitania de Pernambuco5. Estes dois homens tinham entre os seus antepassados, tal como Martim Velho Barreto, o casal formado por João Velho e Leonor Gomes Barreto anteriormente mencionado.
Há ainda outra ligação familiar plausível entre Viana e o Brasil, na pessoa de João Pais Velho Barreto, vianense referido por Evaldo Cabral de Mello como tendo emigrado para Pernambuco em 1557, onde fundou numerosos engenhos, constituindo uma das principais fortunas locais. No entanto não a conseguimos comprovar, uma vez que as genealogias de um e de outro lado do Atlântico não coincidem6. Em todo o caso, os apelidos « Rego », « Barros », ou « Pais » encontram-se muitas vezes nesta família, a par do nome de batismo « João7 ».
Na geração de Martim Velho Barreto a ligação ao Brasil corria pelo menos desde os seus trisavós, e não espanta que a América Portuguesa seja ubíqua no seu livro de contas. Contactos continuados que permitiam transmitir saberes de geração em geração, transformando a vila de Viana num dos principais entrepostos comerciais do açúcar e do tabaco no Reino. Era por essa altura uma vila próspera, cosmopolita, com uma comunidade de mercadores estrangeiros residentes e casados com vianenses8. Mantinha ligações regulares com os arquipélagos atlânticos (Canárias inclusive), com vários portos da costa brasileira, e cidades do Norte da Europa.
Os Velho Barreto tinham também extravasado a vila de Viana no que respeita às suas alianças matrimoniais. A avó paterna de Martim Velho Barreto, Margarida de Oliveira (casada com Rui Velho Barreto), provinha de uma família « das principais da terra » de Aveiro, outro importante porto de mar, o que é sintomático do âmbito geográfico alargado em que a família Velho Barreto se movia. Encontraremos esta ligação a Aveiro num irmão do próprio Martim, João Velho Barreto, também casado com uma aveirense, a prefigurar alianças recorrentes, justificadas pela comunhão de interesses entre as duas vilas no que respeita ao comércio marítimo.
O pai de Martim, António Velho Barreto, foi vereador e capitão-mor de Viana, tendo morrido em Madrid em 1632, então corte régia, morte de que o livro de contas do filho dá conta9. Exerceu o cargo de Provedor dos Dinheiros do Consulado das Alfândegas de Viana, Caminha, Buarcos e Esposende. A avaliar pela muito substancial soma de mais de 23 contos pertencentes à Coroa de que os seus herdeiros deram conta em 1641, era homem da confiança desta10. O desaparecimento do pai faria também com que Martim assumisse os deveres de chefe de família para com os irmãos, como veremos em seguida.
Tomando conta dos irmãos
O livro de contas de Martim Velho Barreto apresenta uma mistura de negócios e despesas de índole familiar, que seria comum na época a registos deste tipo. Permite, por exemplo, conhecer alguns gastos efetuados com os seus irmãos, para além das já referidas despesas fúnebres com a morte do pai.
João Velho Barreto frequentaria cânones no colégio de S. Paulo na Universidade de Coimbra ao longo de 13 anos (!), e mais tarde chegaria a chanceler-mor do Reino11. Enquanto estudante, foi objeto de gastos regulares com estadia, e envio de artigos vários (mesadas, arcas com coisas, tecidos, malas, coxins). Como se disse, viria a casar com uma senhora de Aveiro e vivia em Lisboa quando fez testamento em 167912.
Outro irmão, Inácio do Rego Barreto, apesar de ter estado em Coimbra com o irmão João no início da década de trinta, seguiria a carreira militar. Já Filipe IV (III de Portugal) tinha recompensado o irmão Inácio pouco antes da revolta de dezembro de 1640 por ter sido dos primeiros a acudir a um ataque de « turcos » a Viana. Mas seria logo nomeado governador do Pará em janeiro do ano seguinte, cargo que conservou por um segundo mandato13. Sabemos que em 1642 enviou ao irmão Martim duas caixas de açúcar a partir desta capitania14. Já Pêro do Rego Barreto, mais novo, seguiria para a Índia em 1639, onde foi governador de Timor e Cranganor, e parece ter casado por lá; as despesas na preparação da viagem – teria viajado numa leva de soldados -também foram custeadas por Martim15.
Estamos perante uma diáspora familiar masculina, comum a pequenas nobrezas de província, acompanhada muitas vezes pelo enclausuramento das mulheres em conventos. Neste caso, havia apenas uma irmã, Margarida de São Martinho, que foi freira no mosteiro de S. Bento de Viana. Não se encontra referência à sua profissão religiosa no livro de contas do irmão, pelo que esta terá talvez ocorrido antes ou depois do período a que a sua escrita se reporta. Mas nem por isso Martim Velho Barreto deixou de registar despesas com Margarida, como 7.5 côvados de baeta acabelada para um vestido16.
Nobreza da terra
Apesar de esporádicas categorizações de membros de vários ramos desta família como « fidalgos », nada nos permite pensar que o seu estatuto, pelo menos na geração de Martim Velho, ultrapassasse a condição nobre. De facto, as provanças dadas no processo de bacharel de seu irmão João Velho Barreto em 1646, dão a sua família paterna como inserida entre os « principais da terra », fazendo parte da « gente da vereação », ou vivendo à « lei da nobreza ». Melhor ainda: João Velho Barreto era dado por « cristão velho sem raça de cristão novo mulato e sabe que não tem fama disso nem de ofício mecânico antes sabe que são de uma parte e de outra são limpos e dos principais homens nobres desta vila [Aveiro] e de Viana17 ». Excetuando algumas referências a seu irmão Inácio do Rego Barreto como fidalgo e cavaleiro da ordem de Avis, em nenhum documento a família aparece como fidalga na geração de Martim Velho Barreto. Mas são sempre dados como muito ricos e abastados, o que a posse de várias quintas nas zonas rurais da região e prédios na vila de Viana confirma (incluindo a casa de cidade da família, ainda hoje existente)18.
A prosperidade da família nuclear de Martim Velho Barreto continuou sem percalços depois da Restauração. Se já durante a União Dinástica a família mostrava alguma ligação à Coroa, esta reforçou-se com o apoio à causa de D. João IV. Martim participou com entusiasmo na defesa da província de Entre Douro e Minho. Ficou responsável pela vedoria geral da gente de guerra, sendo uma das suas funções a de tornar « defensíveis » as fortalezas da região (praças de Vila Nova de Cerveira, Valença, Salvaterra, Monção, Melgaço e castelo de Castro Laboreiro). Eram suas obrigações visitar as praças e ver como se arrecadava a fazenda do rei, o que confirma a utilidade das competências mercantis para as finanças régias, sobretudo em tempos de guerra19.
Inácio, como vimos, foi governador da capitania do Pará por seis anos. No entanto, talvez o melhor sucedido dos irmãos pela sua proximidade à Coroa tenha sido o já referido João Velho Barreto, que chegaria a chanceler-mor do Reino, tendo instituído uma capela no convento de Santo António dos Capuchos em Lisboa20.
A dispersão geográfica e ocupacional levaria alguns membros da família a esvanecer a ligação a Viana. João, como dissemos, tinha casado com uma senhora de Aveiro, e quando morreu sem filhos em Lisboa praticamente não referiu parentes de Viana21. Compreende-se: o legado substancial que deixou à Misericórdia de Aveiro fazia parte dos bens imóveis provenientes do património familiar da mulher. Em contrapartida, continuava unido ao Brasil através da família da sobrinha, Inês Francisca Coelho, casada com um elemento dos Albuquerque Coelho, por esses anos uma importante dinastia da administração colonial. João Velho Barreto designou esta sobrinha como sua herdeira, em razão do qual seu marido, António Albuquerque Coelho de Carvalho, « o Velho », viria a reclamar a herança da mulher22.
Martim Velho Barreto e os irmãos acusam a diversificação de ramos de atividade própria de uma família de elite de província em fase de expansão e sedimentação no centro: participação no exército em tempo de guerra, frequência da universidade e subsequente ocupação de cargos na magistratura, a par da continuação de atividades comerciais e financeiras. Houve também familiares do Santo Ofício entre os membros desta família23. Uma prosperidade em grande medida devida à sua conformidade com os critérios de discriminação vigentes no século XVII, que favoreciam as famílias cristãs-velhas e sem mecânica, ou pelo menos aquelas em grado de obter (e certificar) a sua pureza de sangue e a nobreza das ocupações desempenhadas24. Essas características ajudam a explicar o sucesso individual de muitos membros da família, que podiam participar nas vereações municipais das vilas onde residiam (no caso vertente Viana e Aveiro), e/ou frequentar a Universidade de Coimbra. Já na América Portuguesa, as conformidades de alguns membros da família com os padrões vigentes não iam tão longe: vários casamentos com mulheres cristãs-novas e as acusações de heresia antes referidas, a que se acrescenta outra de sodomia25.
A prosperidade da família, contudo, era também o resultado de saberes diversificados, que lhe conferiam experiência em diversos ramos de atividade. Havia várias gerações de contactos sucessivos com a América portuguesa, provavelmente mantida pelo facto de os parentes fazendeiros e senhores de engenho preferirem encaminhar os seus açúcares e tabaco para o porto de Viana. Martim Velho Barreto foi um entre vários membros da família que exerceram a atividade mercantil –sucedeu a seu pai-, a que parece ter juntado as suas competências financeiras enquanto banqueiro. Na sua geração, ele e os seus irmãos juntavam atividades que pressupunham outros saberes, tais como o direito e a guerra. Para além da experiência em matéria de comércio internacional que corria na família, juntar-lhes-ia o cosmopolitismo de um homem habituado a lidar com pessoas de diferentes línguas e culturas. E também religiões : o seu livro de contas demonstra que muitos dos seus parceiros de negócio eram judeus e cristãos-novos; quanto aos ingleses, franceses e alemães, entre eles haveria talvez crentes das diversas igrejas protestantes, desde as luteranas às reformadas26.
Para Martim Velho Barreto, no entanto, as coisas não correriam bem no seguimento da restauração da independência portuguesa. Paradoxalmente, a sua ascensão política revelar-se-ia fatal, ao ser nomeado pelo rei em 1649 para vedor geral da Fazenda do Estado da Índia por seis anos, no que teria constituído, como alguma probabilidade, uma recompensa pelos serviços prestados27. A sua estadia em Goa trazer-lhe-ia muitos dissabores. O cargo revelou-se melindroso porque pressupunha colocar ordem nas finanças do Estado, muito vulneráveis à corrupção de negociantes e oficiais régios. Martim Velho Barreto viria a ser acusado de corrupção, talvez injustamente, numa querela que assumiu contornos muito pessoais entre ele e D. Francisco de Lima. Em causa estavam ordens para retirar dinheiro dos cofres do Estado da Índia para adquirir canela em Ceilão, que Martim Velho tinha ordenado a contragosto, sendo em seguida acusado de ter abusado do seu poder. Apesar de contar com o apoio da Coroa, a quem chegavam queixas de D. Francisco de Lima, uma cabala de interesses locais manteve-o preso durante três anos, para o que contribuiu certamente a distância-tempo entre Lisboa e Goa. Tal como Martim, D. Francisco provinha das famílias de elite do Alto Minho, mas o seu estatuto de fidalgo era superior. Além do tratamento de « Dom », que não encontramos em nenhum dos Velho Barreto, o título de viscondes de Vila Nova de Cerveira corria em parentes seus. Não obstante, D. Francisco fazia parte do numeroso grupo de filhos segundos forçados a buscar fortuna nos territórios da expansão28.
Era impossível famílias de elite provenientes de zonas tão próximas ignorarem-se, e é provável que Martim e D. Francisco se conhecessem pessoalmente antes de se encontrarem em Goa. Será que os dois transferiram para o Oriente tensões sociais já existentes nas suas terras de origem ? Martim Velho Barreto foi o elo fraco nesta contenda : já depois de ilibado empreenderia a viagem de regresso a Portugal, mas morreu em Moçambique em 1667. D. Francisco de Lima seria preso à chegada a Lisboa, mas redimir-se-ia ao deixar uma vasta herança para converter em dotes de casamento a conceder pelas misericórdias de Lisboa e de Ponte de Lima29.
Não obstante a ligação de Martim e de outros membros da família ao Oriente, mais circunstancial do que regular, a América portuguesa manter-se-ia uma referência permanente para os Velho Barreto, que para lá encaminhavam alguns membros da sua família, sobretudo quando se encontravam em dificuldades. Cerca de onze anos depois da morte de Martim Velho, outro negociante vianense, Afonso Lopes Ortiz, intercederia a favor de Manuel do Rego Barreto, filho natural do primeiro. Numa carta de 1679 dirigida a Simão Ferreira da Silva, administrador de engenhos e mercador na Paraíba, pedia que este fosse colocado numa capelania de engenho então vaga. Alegava que a morte do pai deixara « suas coisas desordenadas e seus filhos sem pão30 ».
A geração de Martim Velho Barreto parece não obstante consubstanciar um progressivo distanciamento deste ramo da família face à vila de Viana de Lima. É o momento em que os seus membros parecem abandonar a vila e dispersar-se por outros lugares, continuando uma tradição que remontava à segunda metade do século XVI. A própria sobrevivência do seu livro de contas parece indicar um ponto final numa carreira de mercador, mais do que um momento num percurso continuado. De facto, supõe-se que Martim Velho Barreto tenha interrompido os seus negócios, ou deixado de se ocupar deles pessoalmente. Primeiro pela guerra da Restauração onde teve a seu cargo a logística financeira da defesa da província a partir do final de 1641, depois como vedor da fazenda do Estado da Índia. Será que alguém continuou a usar o seu livro de contas? Sabemos que não está escrito a outras mãos, pelo que pode nem ter sido usado posteriormente...
O facto de os seus papéis se encontrarem reunidos num arquivo próprio, de natureza familiar, que entretanto foi incorporado no arquivo da Misericórdia de Viana – não se sabendo por que razão – leva a pensar que houve interesse em conservá-los. O facto de entre eles se encontrarem cópias dos documentos oficiais sobre a contenda entre ele e D. Francisco de Lima deixa a ideia de que alguém da família pugnou por lutar pela honra que ele teria perdido em terras do Oriente31. Nesse caso, o livro de contas serviria também o propósito de demonstrar a probidade de Martim enquanto negociante cumpridor dos seus compromissos e cauteloso na sua escrita. Ou seja, de restaurar a sua reputação que uma complicada contenda teria abalado. Num contexto local, uma vez que os dois litigantes eram de terras vizinhas, seria da máxima importância limpar o nome de Martim Velho Barreto e poder comprová-lo através de documentos. Uns, os relativos à contenda, porque o ilibavam face a D. Francisco; outros, como o livro de contas, porque comprovavam a sua honra enquanto chefe de família e negociante. Impunha-se a necessidade de contar a história através de documentos oficiais, transpondo para Viana acontecimentos ocorridos em terras distantes, a anos de viagem da vila.
O livro de contas de Martim Velho Barreto
Antes de chegar a seu último destino, nos arquivos de uma instituição que reunia e preservava um verdadeiro manancial estratégico de informações sobre relações mercantis e financeiras no Império Português, o livro teve provavelmente uma trajetória de vida útil e circulação junto ao negociante e seus colaboradores e parentes, quanto mais não seja nos anos a que se reporta. Como um mapa entre cartógrafos, ele era capaz de registar e comunicar acerca de um determinado espaço, com suas rotas, caminhos e interligações. O paralelo entre cartografia e livros de contas na primeira modernidade pode ser de fato bastante rico. Podemos dizer que ambos pertencem a um universo que articulava o « mercador sedentário », sugerido inicialmente por Norman Gras, às « nações transatlânticas » identificadas por Daviken Studnicki-Gizbert e aos demais operados residentes em pontos diversos do império português32. Ambos pertencem ao universo comum desse « mundo em movimento » de dispersão e mobilidade de pessoas, mercadorias e capitais da primeira modernidade, como denominou A. J. R. Russell-Wood33. Assim como um mapa, o livro de contas possuía sua estrutura, seus símbolos e signos cuja função era orientar o mercador e financeiro e seu grupo para que estes pudessem se movimentar e reconstituir a partir de seus indícios um universo material e concreto, cimentado por redes de interdependências e obrigações, para retomar as considerações de Studnicki-Gizbert34.
O livro de contas de Martim Velho Barreto possui algumas das características comuns que encontramos em livros de contas do período, os chamados « deve e há de haver », especialmente o registo duplo de débito e crédito35. Podemos caracterizar as atividades de Velho Barreto, seguindo a sugestão de Manuel Fernandes Moreira, como sendo as de um mercador-banqueiro36. Como alerta este autor, os banqueiros do período atuavam à distância por meio de letras simples ou letras de câmbio, que muitas vezes representavam empréstimos, com juros do « risco de mar », em torno de 150%, ou juros e interesses simples, que geralmente não ultrapassavam os 6 e ¼ % permitidos pela legislação37. Sua atividade tinha muita proximidade com as dos demais mercadores, que atuavam em rede por meio de cartas de crédito e ordens de carregação38. O livro de contas fazia parte dos instrumentos necessários para atuar nesse ambiente mercantil e financeiro, que contava ainda com copiadores dos documentos enviados, pasta de cartas recebidas, faturas, letras, pastas com documentos públicos e documentos notariais39.
A escrita de semelhantes livros tinha como objetivo não só o registo das contas do negociante, com seus devedores e credores, como também o acesso à informação e a sua consulta de maneira a facilitar o mapeamento geográfico e temporal dos investimentos do mesmo negociante. Outra questão que nos parece importante na escrita desses livros de contas é o seu caráter de instrumento coletivo, ou ao menos familiar, que deveria orientar não somente aquele que escreve as suas contas ou as manda registar, bem como familiares e eventuais colaboradores (individuais ou institucionais) que deveriam conseguir compreender aqueles dados e possivelmente atuar nos negócios a partir desses registos, tanto durante a vida quanto após o falecimento do negociante40. Quais são os elementos que estruturavam esse discurso e que possibilitavam o mapeamento das informações de maneira que mantivessem a ligação com as operações concretas dos negociantes ?
Para organizar a consulta, os registos eram identificados pelo nome do correspondente, aquele indivíduo com o qual o negociante tinha contas41. Esse indivíduo representava a cabeça de uma rede de crédito e circulação de mercadorias que se desdobrava em círculos concêntricos. Em alguns casos foram acrescentados qualificativos aos nomes, como Francisco Homem identificado como « cavaleiro do hábito de cristo » ou Francisco Coelho de Carvalho « governador » (da capitania do Maranhão)42. Segundo o levantamento de Manuel Fernandes Moreira, Velho Barreto contava com 32 correspondentes em seu livro de contas, distribuídos pela Península Ibérica, norte da Europa, Ilha da Madeira e regiões do Estado do Brasil e da capitania do Maranhão43. Normalmente, na folha do lado esquerdo do livro vinha registado o que o correspondente devia e na folha da direita aquilo que o mesmo deveria receber. Trata-se de uma conta corrente que eventualmente era encerrada, podendo o seu interstício variar, sendo então reaberta, caso os correspondentes mantivessem negociações no futuro.
No livro de Velho Barreto o nome era seguido do local de residência do correspondente. O referencial do local de residência era de suma importância tanto como identificador do correspondente quanto como localizador de sua posição no interior da rede do negociante. A articulação do nome com o local fixava nominal e geograficamente, portanto, o correspondente no mapa das relações do negociante e permitia que outros reconstruíssem esse mesmo mapa em caso de necessidade. Sendo assim, dois dos mais frequentes correspondentes de Velho Barreto aparecem respetivamente como: « o Sr. Jorge Gomes Alemo de Lisboa » e « o Sr. Pedro Vansusteren do Porto ».
O registo da localidade de residência de seus correspondentes apresenta informações interessantes. Lisboa, Porto, Ruão, Aveiro, Hamburgo, Calés e Antuérpia, por exemplo, aparecem referidas como cidades. Funchal aparece como « Funchal na Ilha da Madeira44 ». A região do Maranhão, como « capitania do Maranhão45 », no caso das contas do governador Francisco Coelho de Carvalho, ou como « na cidade de São Luís do Maranhão », no de Antônio Ferros, que aparece ainda situado no livro como « vizinho desta vila [Viana]46 ». Esta última referência demonstra inclusive como as vilas ou regiões de procedência não eram totalmente esquecidas na geografia dos homens de negócio, seguindo como mais um identificador. Isto é, era importante registar os vianenses, mesmo quando estavam em locais distantes no ultramar. O mesmo tipo de identificação, « vizinho desta vila » [Viana], surge na menção de Manuel Fernandes Barbosa, « residente na Bahia de Todos os Santos47 ». Por fim, uma simples menção de « morador do Rio de Janeiro » surge nos qualificativos de Antônio Borges. Essa é uma cartografia elaborada por meio de diferentes escalas simultâneas, cuja prioridade é a localização geográfica e relacional dos indivíduos.
Tanto na página do « deve » quanto na do « há de haver » as linhas se iniciam com a data da movimentação da conta seguida dos valores. A data e o valor constituíam importantes marcadores da negociação em questão. Em seguida são indicados os instrumentos que haviam sido utilizados (letras, conhecimentos, créditos, etc.) e um tipo de operação (um carregamento, uma remessa) e os nomes dos demais envolvidos, que eram classificados quanto a sua atuação naquela transação (fiadores, credores, compradores ou receptadores). O tempo era um elemento importante e delicado da operação financeira e mercantil. A data ajudava a registar a transação e marcava geralmente um prazo para retorno e pagamentos de interesse48.
No caso específico dos registos que envolviam a circulação de mercadorias no atlântico e na Europa, algumas outras informações eram fundamentais para a identificação e monitoramento dos negócios. Quando se tratava de registar a movimentação de carregações, Velho Barreto identificava sempre o tipo de embarcação (nau, navio, caravela ou patacho), o nome ou invocação da embarcação (São João Batista, Nossa Senhora da Ajuda, o Anjo da Guarda, entre outros) e por fim o nome do mestre do navio. Sendo assim, ficamos sabendo, por exemplo, que Jorge Gomes Alemo de Lisboa devia a Velho Barreto, em 10 de junho de 1633, 106.069,00 réis « que tantos importou a carregação que fiz por conta dos ditos para a Bahia no navio Nossa Senhora da Ajuda, mestre Sebastião Henriques Tourinho, consignada ao dito mestre49 ». O nome dos mestres das embarcações era o principal indicativo que permitia fazer o rastreamento das carregações. Ainda assim, podemos notar que tanto os mestres quanto os navios serviam de norte para traçar as rotas e possuíam uma certa constância no livro de contas de Velho Barreto. Os nomes dos mestres em cruzamento com o local de partida ou destino final das carregações garantiam uma relativa estabilidade no universo arriscado e dinâmico da circulação no oceano Atlântico.
No caso dos mestres de navio, é difícil verificar se todos eram vianenses ou ao menos vizinhos em Viana. Essa parece não ter sido uma informação de relevância nos registos do nosso negociante-banqueiro. No entanto, cruzando os dados do livro de contas com o levantamento dos mareantes vianenses feito por Fernandes Moreira, podemos encontrar, por exemplo, o caso de Manuel Alvares Mata Quatro, vianense, que serve como indicador de uma dívida que Pedro Vansusteren tinha com Velho Barreto pelo rendimento de uma caixa de açúcar que havia vindo da Bahia no navio do dito mestre carregado por Manuel de Barros50. Nesse caso, podemos notar que a invocação da embarcação não foi necessária, pois outros indicativos ajudavam a localizar a transação. A combinação das informações podia, portanto, variar.
No caso das remessas que envolviam correspondentes de regiões fora do reino, o princípio de registo permanecia o mesmo, mas os indicativos tinham que ser mais numerosos. Nas contas feitas com o correspondente Domingos Pereira, residente em Ruão, por exemplo, uma dívida deste foi apontada como o valor de um certo número de caixas de açúcar que Velho Barreto havia carregado para « Abredegraça » no navio Santa Maria do mestre Adrian Wateraer, vizinho de Dunquerque, consignadas a Gaspar Pereira51. A localização da transação nesse caso aciona redes de relações, nomes, invocações de embarcações e locais de residência. Algumas dessas referências, ainda temos dificuldade de identificar nessa particular geografia dos negociantes, como é o caso do destino de « Abredegraça », recorrente nas transações de Velho Barreto com Domingos Pereira52.
O livro de contas de homens de negócio como Martim Velho Barreto representava um espaço de entrecruzamento de informações de tipo variado oriundas de diferentes fontes. Era o local onde os negociantes articulavam e reuniam suas diferentes formas de transação (compra, venda, empréstimos, seguros e consignações) e criavam a ligação necessária entre diversos suportes de registo (documentos, pastas, livros). Eles serviam como uma espécie rosa dos ventos a partir da qual irradiavam-se conexões e ligações subsequentes, que permitiam a navegação de informações dispersas no dinâmico universo das trocas atlânticas e europeias. O dado de autoridade máxima era o nome do correspondente, a partir do qual outros nomes e informações eram associadas sendo que, quanto mais distantes se estava do correspondente, mais tênues podiam se tornar tanto as ligações quanto as informações53. Ainda assim, esse registro representava um enorme esforço de fixação e concretização em um universo de grande instabilidade e risco, cuja tessitura se baseava em redes de interdependência e obrigações.
Considerações finais
Este artigo representa uma reflexão inicial sobre o caso de um mercador-banqueiro, cujas vicissitudes e atividades o obrigaram a assumir inicialmente a cabeça de sua família e dos negócios familiares em Viana e, posteriormente, o levaram a uma transmutação, por meio de cargos a serviço da Coroa, em homem do império ultramarino. Essa viragem talvez tenha imprimido um desfecho algo inesperado aos seus negócios como mercador e financeiro baseado em Viana, uma vez que faleceu no retorno ao Reino e aparentemente a sua família não deu continuidade a essas atividades. Seja como for, o livro de contas que atualmente encontramos nos arquivos da Misericórdia de Viana do Castelo nos aponta para uma escrita dos negócios que devia dar conta de um espaço transatlântico de circulação de mercadorias e saberes onde o registo deveria ser capaz de guiar os indivíduos e seus colaboradores através dos espaços e das redes de obrigações e interdependência. Por sua trajetória, o caso de Velho Barreto impõe algumas questões instigantes. Até que ponto o livro que analisamos foi utilizado em suas operações ? Em que medida seu conteúdo foi apropriado posteriormente em meio aos desafios do processo contra ele impetrado e que ameaçava sua honra como mercador e financeiro e também a de sua família ? Seria necessário ainda um maior avanço na investigação da trajetória e do livro de contas de Martin Velho Barreto para que fosse possível responder essas questões com maior segurança. Seja como for, Velho Barreto, ou quem quer que tenha assumido a constituição da documentação compositora de seu legado, procurou seguir na escrita do seu livro de contas os parâmetros da boa escrita e registo mercantil do período e suas demandas por mapeamento de relações e conexões que se distribuíam por diversos pontos da Europa e do Atlântico.