Introdução
Trata-se, neste artigo1, de construções de predicação compostas por verbo suporte e acionadas, no português e no espanhol, a fim de evidenciar um estado de coisas, uma cena/evento, com o perfilamento desse estado de coisas segundo uma perspectiva de passividade. Considerando a língua como “both a window on cognition and a key to understanding it”2 (LANGACKER, 1987), parte-se de uma ótica construcionista diassistemática de modo a detectar como padrões compostos pelos verbo suporte llevar, no espanhol, se configuram, em comparação com expressões compostas por levar no português e, assim, delinear a associação entre ambas às línguas românicas no que tange à presença de construções com verbo suporte em suas respectivas redes de predicação passiva. Encontram-se, a seguir, exemplos de uso das construções sob análise:
(1) Um jovem de 23 anos levou um tiro no pé na madrugada de sábado, dia 5, após um desentendimento quando saía de uma casa noturna em Taboão da Serra. Segundo a vítima, o autor do disparo teria se identificado como policial tático e segurança do estabelecimento.
[Português; vasconoticias.com.br]
(2) También le ha sido amputado el dedo meñique de su mano izquierda, se lo llevó un disparo. Omar se recupera en el hospital en compañía de su padre, que dice que el chico presenta buen ánimo pese a las circunstancias.3
[Espanhol; elpais.com]
(3) Carroceria de caminhão atingiu rede de energia e derrubou o poste. Motorista da caminhonete disse que levou um susto; ele não ficou ferido.
[Português; g1.globo.com]
(4) Costa rica se llevó un susto, pero remontó ante Surinam […] Fue un tanto complicado sobre todo porque Surinam, por conducto de Gleofilo Hasselbaink, anotó el primer gol a los 54', después de unos intensos 45 minutos.4
[Espanhol; oxdeportes.com]
Como é possível observar, ambas as línguas, o português (PORT) e o espanhol (ESP), contam com padrões análogos para representar uma predicação passiva. Dessa forma, objetivamos, por meio dessa análise, contribuir para a elucidação de lacunas observáveis entre as descrições linguísticas, no que tange: (i) ao tratamento das construções com verbo suporte, tanto no PORT quanto no ESP, (ii) à rede de predicadores de passividade, já que, até o momento, são escassos estudos voltados para o papel dessas construções dentro dessa rede e (iii) à relação interlinguística entre as mencionadas línguas românicas. Dessa forma, tenciona-se colaborar para o desenvolvimento teórico-metodológico do exame da variação e das relações entre línguas, variedades e/ou dialetos dentro da ótica construcionista, segundo uma perspectiva (sócio)construcionista e diassistêmica da gramática.
Assim, o estudo tem por cerne o mapeamento da pareamento forma-função/significação condizente às configurações dos predicadores complexos aqui previstos e como tais padrões se ligam, considerando-se a potencialidade de similaridade e/ou dissimilaridade entre estes. Temos, então, o seguinte questionamento norteador: tais construções de predicação são licenciadas por um pareamento simbólico mais abstrato que possibilita instanciações tanto no português quanto no espanhol (e possivelmente em outras línguas)?
Desse modo, conta-se como aporte com a perspectiva defendida por Höder (2012; 2014), que, ao tratar da concepção do conhecimento linguístico, apresenta a possibilidade de dois ou mais sistemas conforme suas semelhanças estruturais e/ou funcionais. Mediante processos de abstração e categorização de itens linguísticos advindos de sistemas distintos, é possível a consolidação e o entrincheiramento cognitivo de uma gramática comum a mais de um idioma. Dentro dessa ótica, delimitamos como diaconstruções pareamentos simbólicos de atributos formais e funcionais que, presentes na interconexão de tais distintos sistemas, abrangem o que há de similar entre os mesmos. Höder et al. (2018) apontam que línguas geneticamente associadas tendem a apresentar maior nível de diassistematicidade. Logo, ao se considerar a relação historicamente estreita entre ambos os idiomas em pauta, prevemos haver um alto grau de inter-relação.
Enquadramento teórico
A gramática segundo uma ótica (sócio)construcionista diassistemática
Adotando o modelo construcionista da língua, o presente estudo tem, por medular, a noção de construção gramatical, produto conceptual pautado no pareamento de atributos formais − prosódicos, fonético-fonológicos, morfossintáticos, sintáticos, lexicais – e funcionais − semânticos, discursivos, pragmáticos, cognitivos e socioculturais – cognitivamente entrincheirados segundo a apreensão de padrões mais ou menos rotineiros detectados na experiência dos usuários da língua nos movimentos de produção, recepção e processamento da linguagem (GOLDBERG, 1995, 2006; LANGACKER, 2008).
Assim, são unidades que, devido a seu grau de idiossincrasia e/ou frequência de uso, se consolidam na mente dos falantes como agrupamentos de traços de forma, função e noções contextuais específicas por meio de processos cognitivos de domínio geral. Suas características podem ser apreendidas segundo os parâmetros de esquematicidade, produtividade, composicionalidade e contextualidade (TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013; GOLDBERG, 2006), considerados para o desenvolvimento da análise em pauta.
A esquematicidade associa-se ao grau de abstração e/ou especificidade das representações cognitivas que sancionam usos linguísticos. A produtividade corresponde à potencialidade de expressão de uso de uma construção ou de preenchimento de um slot, assim como à capacidade de padrões mais abstratos licenciarem outros menos abstratos. A composicionalidade trata do nível de transparência semântica entre as construções e seus subcomponentes (elementos a preencherem os slots construcionais), assim como do grau de entrincheiramento entre esses subcomponentes. A contextualidade, por sua vez, aborda o impacto de fatores de ordem contextual na configuração do significado das construções.
Em um escopo representacional, categorizam-se as construções em relação a seu nível de esquematicidade. São determinados como macroconstruções ou esquemas os padrões linguísticos de natureza mais abstrata, com maior número de slots (posições gramaticais) a serem preenchidos; as construções em nível intermediário, com alta potencialidade de preenchimento de slots, mas menor grau de abstração em comparação ao nível da macroconstrução, são chamadas de mesoconstruções ou subsquemas; já os padrões mais substantivos, com baixo grau de abstração, são apreendidos como microconstruções, nas quais há menor (ou nenhuma) possibilidade de preenchimento de slots construcionais. São as microconstruções que sancionam os usos concretos das construções pelos falantes/ouvintes no discurso, denominados, teoricamente, como construtos.
Assim, visualiza-se a gramática como uma ampla rede, hierarquicamente constituída, de padrões linguísticos desenvolvidos e moldados pela experiência. Logo, a língua, como sistema interativo, constitui-se como um espaço conceptual que envolve tanto estabilidade (relativa) quanto instabilidade (heterogeneidade e dinamicidade).
Dentro dessa perspectiva, destaca-se, além disso, a potencialidade de se delinear um constructicon multilíngue, a fim de abarcar construções previstas em dois ou mais sistemas linguísticos, como salientado na seção anterior. Höder, Freitas Jr e Soares (2021) ressaltam duas categorias de construções centrais à ótica diassistemática: a idioconstrução e a diaconstrução.
Enquanto as idioconstruções são específicas a cada língua e/ou dialeto, contando com definições de cunho pragmático particulares a cada sistema, as diaconstruções possuem um caráter mais abstrato. Situam-se como padrões construcionais que abrangem os atributos similares entre os pareamentos pertencentes aos distintos sistemas.
Assim, somam-se preceitos da Gramática de Construções Baseada no Uso, assim como referenciais associados a uma perspectiva diassistemática da língua, objetiva-se desenvolver um mapeamento dos predicadores de passividade com verbo suporte no PORT e no ESP. A partir de uma análise comparativa de seus aspectos estruturais e funcionais, detectáveis em construtos, busca-se definir o que se mostra específico a cada língua, próprio ao âmbito de suas idioconstruções, e o que é similar entre as mesmas.
Construções de predicação passiva: expressões com verbo suporte
A predicação constitui-se como uma acepção primordial ao se tratar da compreensão da língua. Na ótica funcionalista, entende-se a predicação como um fenômeno sintático-semântico no qual o item predicador (seja de natureza verbal ou nominal) delimita o número de argumentos segundo o estado de coisas em jogo (DIK, 1997). Assim, o elemento predicador apresenta-se como nuclear, sendo o responsável pela projeção argumental da estrutura sentencial.
Na perspectiva construcionista, por sua vez, tanto o predicador quanto a própria estrutura argumental são apreendidos como construções gramaticais – que se compatibilizam no processo de predicação. Logo, conta-se com papéis argumentais, associados à construção argumental, e participantes, demarcados pelo sentido verbal (GOLDBERG, 2006). Os predicadores de passividade, assim, se constituem como uma construção de predicação, na qual se vê a associação de uma determinada estrutura formal a aspectos funcionais específicos, que se vinculam a construções argumentais em sua atualização no discurso em prol da confecção de sentidos.
No cerne do plano funcional da predicação passiva destaca-se a noção de afetação5. Ciríaco (2021, p. 3) ressalta que, ao se tratar das estruturas passivas prototípicas, a luz de Pinker et al (1987) em sua observação do inglês, “o participante que será mapeado na posição de sujeito pode ser construído cognitivamente como um paciente, seja ele um paciente literal ou uma extensão abstrata do sentido prototípico dessa função semântica”, entendo “que o argumento mapeado na posição de objeto da preposição ‘por’ (ou subentendido) agiu sobre ele”.
Machado Vieira, Santos e Kropf (2019) e Machado Vieira (2020a), ao se voltarem para a análise de estruturas de predicação passiva no português, delineiam seu papel dentro do rol de construções de desfocalização do elemento força indutora (agente), seja por meio de sua demoção a uma posição sintática menos proeminente (como sintagma preposicionado), seja por meio de sua omissão ou suspensão na sentença.
Observa-se que, ao se tratar do português brasileiro, muitos estudos têm por interesse os atributos estruturais e semânticos dos predicadores de passividade. Entretanto, são focalizados, em geral, os padrões salientados pela perspectiva tradicional: as perífrases verbais compostas por particípio, comumente denominadas passivas analíticas, e as formadas por partícula –SE, as passivas sintéticas (cf. SARAIVA, 2018; CIRÍACO, 2021; GUIMARÃES e SOUZA, 2016; MACHADO VIEIRA e SARAIVA, 2011; FURTADO DA CUNHA, 2000; dentre outros). É possível, contudo, visualizar, também, na rede de predicadores de passividade, as construções com verbo suporte.
Atuando em similaridade com as estruturas compostas por particípio, estes predicadores preveem a afetação do elemento nominal em posição de sujeito e propiciam a desfocalização do elemento força indutora da predicação (cf. TEIXEIRA, SANTOS, 2022; SARAIVA et al, 2021), conforme observável nos exemplos6 a seguir.
Em (5), vê-se o uso da perífrase “foi socado”, na qual o verbo SER, em papel auxiliar, se une ao elemento “socar”, em sua forma de particípio, a fim de codificar um evento segundo uma perspectiva passiva. Há a afetação do sujeito “Astro da Marvel”, participante paciente, por um participante de natureza agentiva que se encontra sentencialmente não expresso. No exemplo em (6), o verbo levar, em comparação ao verbo SER no exemplo anterior, atua como em uma função de auxiliaridade, funcionando como verbo suporte. Operando junto a uma estrutura nominal/não verbal, “um soco”, auxilia na marcação de tempo, modo, aspecto, número e pessoa, atribuindo a este papel predicante e, assim, configurando uma unidade de predicação verbal capaz de projetar uma estrutura semântica de participantes num estado de coisas de teor passivo.
De forma similar, na expressão “se lleva um golpe”, no exemplo (7) a seguir, o verbo llevar se vincula a “un golpe” na composição de uma unidade de predicação passiva.
(7) Brice Samba se lleva un golpe tremendo, se hace un chichón impresionante... y aparece en la segunda mitad con un simple vendaje.7
Adotando uma perspectiva socioconstrucionista, TEIXEIRA (2020) busca salientar a posição dos padrões constituídos por verbo suporte dentre o plano dos predicadores de passividade. Apresenta uma análise centrada no mapeamento nos atributos de unidades compostas pelos verbos levar, tomar, sofrer, receber e ganhar (levar um tiro, tomar um tiro, sofrer um tiro, receber um tiro, ganhar um tiro). No espanhol, em contrapartida, ainda há uma escassez de descrições voltadas tais tipos de padrões de predicação.
Dessa forma, este estudo se apresenta como uma resposta há uma necessidade vigente nas descrições da rede de predicadores da língua espanhola, assim como uma janela para as relações diassistemáticas entre ambas as línguas (PORT e ESP), em especial no que tange a esfera das predicações passivas.
Materiais e procedimentos metodológicos
Coleta e tratamento dos dados
Tendo por axioma que o uso se apresenta como locus de apreensão, manutenção e mudança da gramática (BYBEE, 2015), os contextos concretos de interação verbal configuram-se como cerne de nossa análise. Logo, somente a partir da observação de dados reais podemos, de fato, traçar como os predicadores em foco são conceptualmente aprendidos na Gramática do Português e na Gramática do Espanhol.
Assim, para a composição de nossas amostras, dispomos de auxílio do gerenciador de corpora Sketch Engine8, por meio do acesso a dois corpora:
(i) Corpus Portuguese WEB 2011(ptTenTen11), para a coletada de dados referentes ao português; e
(ii) Corpus Spanish WEB 2018 (esTenTen18) para a coleta de dados referentes ao espanhol.
Inicialmente, acessou-se, a partir do dashboard primário da plataforma, o corpus para análise e a ferramenta de busca Concordance, a fim de se visualizar, por meio de comandos de pesquisa específicos, exemplos de uso das perífrases em contexto.
Imagem 1: processo de seleção do corpus e ferramenta de busca no Sketch Engine.
Fonte: autoral
Elegeu-se, então, a aba de busca avançada (Advanced) e a opção CQL (Corpus Query Language), de modo a se realizar uma busca por padrões gramaticais complexos conforme critérios pré-estabelecidos.
Imagem 2: Processo empregado na página de busca Concordance.
Fonte: autoral
A fim de se contemplar distintas possibilidades de realização dos predicadores, sem enviesar as amostras segundo concepções prévias, deu-se, primeiramente, para ambos os corpora, a efetivação de uma busca de caráter exploratório por meio dos comandos:
[lemma = “levar”] [tag = “D.*”] [tag = “N.*”] Para o português
[lemma = “llevar”] [tag = “D.*”] [tag = “N.*”] Para o espanhol
Cada elemento entre colchetes representa um item pertencente ao padrão de busca desejado9: “lemma =” possibilita uma busca por ocorrências de todas as flexões do vocábulo entre aspas; “tag =” propicia uma busca por todos os elementos categorizados segundo a etiqueta entre parênteses; “D.*” e “N.*” representam, respectivamente, a categoria dos determinantes e dos substantivos. Dessa forma, em linhas gerais, efetuou-se uma busca por todas as ocorrências dos padrões: [Verbo LEVAR + determinante + substantivo] e [Verbo LLEVAR + determinante + substantivo]10.
A partir da análise qualitativa dos 10 mil primeiros dados disponibilizados para cada língua, amostra inicial na qual selecionamos possíveis tokens nos quais os elementos verbais levar e llevar atuam como verbo suporte em expressões de predicação passiva, realizou-se uma segunda pesquisa. Nesta, na posição do substantivo, delimitaram-se os lexemas nominais que compõem os dados selecionados na busca exploratória, conforme os comandos a seguir:
[lemma = “levar”] [tag = “D.*”] [word = “lexema 1 | lexema[n]11”] português
[lemma = “llevar”] [tag = “D.*”] [word = “lexema 1 | lexema[n]”] espanhol
Para cada um dos corpora, consideramos, novamente, os primeiros 10 mil dados, contabilizando, ao geral – em conjunto com os dados angariados na busca exploratória – 40 mil dados amostrais, 20 mil do português e 20 mil do espanhol, que, em seguida, foram submetidos a uma rigorosa análise qualitativa, de modo a descartar: dados duplicados e ocorrências do padrão pesquisado os quais não se configuram como predicadores complexos de passividade.
Distribuição (quali)quantitativa dos dados e análise colostrucional
Em relação à metodologia de análise empregada, a primeira etapa foi a observação dos dados conforme os atributos dos elementos que compõem as estruturas complexas de predicação. Buscou-se averiguar o grau de associação sintático-semântica entre os seus subcomponentes e delinear (dis)similaridades entre estes e/ou entre os usos a nível interlinguístico.
Ademais, em prol da sistematização dos atributos referentes aos itens nominais que se ligam/são atraídos aos verbos suportes, lançou-se mão de uma análise de cunho colostrucional. Consoante Hilpert (2014), contou-se com o software Excel de modo a empregar metodologia de análise colexêmica simples, individualmente, nos constructos oriundos do português e nos advindos do espanhol. Em seguida, por meio de uma análise qualitativa dos resultados, traçamos possíveis alinhamentos entre os usos. Por fim, com base nos resultados obtidos, buscamos representar como (i) os padrões construcionais se engendram na gramática de suas respectivas línguas e (ii) desenhar como tal propicia a apreensão de um link associativo entre estas.
Resultados
Conforme a observação dos dados angariados dos corpora Portuguese WEB e Spanish WEB, contamos com 17.707 dados do uso, 9.718 ocorrências de construções de predicação de passividade com o verbo suporte levar e 7.989 com llevar (cf. Gráfico 1). Dentre os dados do português, visualizamos 8.303 de sua variedade brasileira (PB) e 1.515 da portuguesa (PP).
Gráfico 1: Distribuição das ocorrências oriundas do Português e do Espanhol presentes na amostra.
Fonte: autoral
Gráfico 2: Distribuição dos dados do Português por variedade.
Fonte: autoral
É importante ressaltar que tal categorização parte de definições prévias fornecidas pela plataforma Sketch Engine e que há uma disparidade ao se tratar da natureza dos textos que compõem o acervo do corpus disponibilizado online. Apenas 24% da amostra é composta por produções textuais associadas à variedade portuguesa. Logo, ao se apresentar a distribuição dos dados, não serão efetuadas distinções relativas à produtividade das ocorrências em relação às duas variedades, e, sim, em termos de idioma “português”, uma categorização ampla, dada a natureza exploratória e inicial da análise.
Ao se tratar do espanhol, a mesma postura será aplicada. Considerando as particularidades referentes à representação do espanhol (do castellano) no espaço de comunicação internacional, não será ignorada a natureza político-geográfica variável da língua (e as implicações políticas vinculadas à sua abordagem) (cf. LAGARES, 2013), tanto em relação ao contraste de suas distintas variedades na América Latina, como também a estas e a variedade peninsular (europeia). Assim como apontado em relação ao português, a ótica, aqui, adotada tem por foco o exame panorâmico da presença e representação dos predicadores em análise dentro da rede gramatical de ambos os idiomas.
Dessa forma, apresenta-se um panorama dos atributos associados aos elementos que compõem as expressões de predicação passiva com levar e llevar, a fim de, por meio de sua observação, mapear a configuração (estrutural e funcional) dos predicadores. Em relação a sua disposição geral, vê-se, na delimitação dos construtos, a realização do padrão mais abstrato [LEVAR/LLEVAR[verbo suporte] + Sintagma Nominal[determinante + nome]] predicador complexo de passividade.
Nos exemplos (8) e (9), podemos observar concretizações do padrão em prol da representação / projeção conceptual de uma estrutura de participantes de organização passiva.
(8) La última aportación de César a la película es justo al final, cuando sale corriendo y se lleva un disparo que acaba definitivamente con él. 12
[Sketch Engine; ESP]
(9) Aun así, mientras las bolsas se llevaban el golpe, otros activos financieros se volvían más atractivos para los inversores.13
[Sketch Engine; ESP]
No primeiro exemplo, a expressão “se lleva um disparo” materializa-se no discurso em prol da representação de uma conceptualização centrada na experiência/estado de coisas vivido por “César”, que atua, semanticamente, como referente paciente associado à construção verbal. Em (9), “se llevaban um golpe” é utilizado de forma metafórica a fim de indicar o impacto negativo sofrido pelas bolsas de valores.
No que diz respeito à configuração do item verbal a ocupar o slot de verbo suporte no português, o verbo levar, notamos sua concretização no: presente, pretérito imperfeito, pretérito perfeito, pretérito mais-que-perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito do modo indicativo; presente e pretérito perfeito do subjuntivo e nas formas nominais do infinitivo, gerúndio e particípio.
Tabela 1 - Distribuição dos tempos e modos verbais empregados com levar.
Indicativo |
||||||||
Presente |
Pretérito imperfeito |
Pretérito |
Pretérito mais-que-perfeito |
Futuro do presente |
Futuro do pretérito |
|||
1198 |
114 |
3538 |
28 |
16 |
98 |
|||
Subjuntivo |
||||||||
Presente |
Pretérito perfeito |
|||||||
152 |
46 |
|||||||
Formas nominais |
||||||||
Infinitivo |
Gerúndio |
Particípio |
||||||
2570 |
457 |
504 |
Fonte: autoral
Conforme a tabela 1, observa-se que a maioria das instanciações do predicador complexo com levar apresentaram o verbo suporte no pretérito perfeito e presente do indicativo, assim como na forma nominal do infinitivo. Tendo em vista que o corpus de coleta apresenta em sua formação, segundo suas especificações, textos escritos do âmbito digital, prevê-se que, em sua maior parte, eles possuam um caráter informativo (como notícias de jornais e blogs online), o que justificaria a predominância do pretérito perfeito e do infinitivo dentre os usos.
Ao se comparar os resultados anteriores com o perfil de uso do verbo llevar nos dados do espanhol expostos na Tabela 2, a seguir, é perceptível a concretização do mesmo padrão configuracional. Há uma predominância da instanciação do verbo suporte no pretérito perfeito e presente do indicativo, e no infinitivo.
Tabela 2 - Distribuição dos tempos e modos verbais empregados com levar.
Indicativo |
||||||||||
Presente |
Pretérito perfecto |
Pretérito imperfecto |
Condicional |
Futuro |
||||||
1587 |
1722 |
181 |
87 |
214 |
||||||
Subjuntivo |
||||||||||
Presente |
Pretérito imperfecto |
|||||||||
507 |
83 |
|||||||||
Formas nominais |
||||||||||
Infinitivo |
Gerúndio |
Particípio |
||||||||
2869 |
457 |
282 |
Fonte: autoral
Realizou-se, também, um mapeamento dos elementos a preencherem o slot de elemento determinante dos predicadores. Na tabela 3, tem-se a distribuição dos artigos a se associarem aos padrões compostos por levar no português. Já na tabela 4, observam-se aqueles associados aos padrões advindos do espanhol.
Tabela 3 - Distribuição de determinantes empregados nas construções com levar (no português) e llevar (no espanhol).
Determinantes |
Ocorrências (Nº) |
Determinantes |
Ocorrências (Nº) |
o |
937 |
un |
3044 |
a |
775 |
la |
1463 |
um |
5470 |
el |
1327 |
uma |
2113 |
una |
1265 |
algum |
18 |
algún |
304 |
alguma |
20 |
ningún |
176 |
aquela |
12 |
otro |
57 |
aquele |
12 |
su |
51 |
cada |
9 |
esta |
47 |
essa |
26 |
tal |
37 |
esse |
19 |
este |
32 |
este |
9 |
ese |
29 |
meu |
7 |
otra |
22 |
minha |
2 |
alguna |
22 |
muita |
52 |
cada |
20 |
muito |
2 |
esa |
18 |
nenhuma |
7 |
ninguna |
15 |
nenhum |
57 |
mucho |
12 |
outra |
44 |
nuestra |
10 |
outro |
52 |
tu |
8 |
pouco |
1 |
nuestro |
8 |
qualquer |
5 |
aquel |
4 |
seu |
12 |
cualquier |
3 |
sua |
10 |
mi |
3 |
tal |
4 |
semejante |
3 |
tanto |
9 |
poco |
2 |
tanta |
19 |
bastante |
1 |
todos |
1 |
aquella |
1 |
vuestra |
1 |
||
cierto |
1 |
||
tanta |
1 |
||
tanto |
1 |
||
muchos |
1 |
||
Total |
9718 |
Total |
7989 |
Fonte: autoral
Em relação ao português, 28 types de determinantes são empregados na configuração dos predicadores complexos. No espanhol, conta-se com 33. Segundo a comparação dos resultados, visualizam-se usos similares entre os distintos padrões.
Ademais, no que tange a análise dos dados, averiguam-se os itens nominais que atuam em conjunto com os verbos suporte. Os resultados encontram-se sintetizados na tabela a seguir:
Tabela 4 - Distribuição de itens nominais empregados nas construções com levar e llevar.
LEVAR (português) |
LLEVAR (espanhol) |
|||||
(Co)lexemas |
Ocorrências (tokens) |
(Co)lexemas |
Ocorrências (tokens) |
|||
1 |
atraso |
23 |
1 |
abrazo |
67 |
|
2 |
baile |
117 |
2 |
alerta |
15 |
|
3 |
boicote |
1 |
3 |
aplauso |
208 |
|
4 |
bolada |
136 |
4 |
azotaina |
1 |
|
5 |
bronca |
219 |
5 |
bache |
1 |
|
6 |
cabeçada |
35 |
6 |
beso |
85 |
|
7 |
caneta |
34 |
7 |
bofetada |
79 |
|
8 |
capote |
14 |
8 |
caída |
123 |
|
9 |
cartão |
561 |
9 |
carrete |
54 |
|
10 |
cascudo |
4 |
10 |
chichón |
2 |
|
11 |
chapéu |
66 |
11 |
corte |
316 |
|
12 |
choque |
364 |
12 |
daño |
39 |
|
13 |
chute |
111 |
13 |
derrota |
209 |
|
14 |
coice |
43 |
14 |
disparo |
34 |
|
15 |
coronhada |
26 |
15 |
énfasis |
11 |
|
16 |
corretivo |
8 |
16 |
falta |
114 |
|
17 |
corte |
102 |
17 |
gancho |
88 |
|
18 |
cotovelada |
49 |
18 |
goleada |
92 |
|
19 |
crítica |
56 |
19 |
golpe |
807 |
|
20 |
cruzado |
4 |
20 |
grito |
46 |
|
21 |
derrota |
53 |
21 |
multa |
130 |
|
22 |
descarga |
17 |
22 |
patada |
92 |
|
23 |
disparo |
7 |
23 |
pelota |
719 |
|
24 |
drible |
31 |
24 |
pérdida |
103 |
|
25 |
empate |
92 |
25 |
pie |
409 |
|
26 |
facada |
119 |
26 |
puñalada |
22 |
|
27 |
falta |
59 |
27 |
puñetazo |
76 |
|
28 |
fora |
263 |
28 |
regate |
2 |
|
29 |
fratura |
5 |
29 |
susto |
2836 |
|
30 |
gancho |
18 |
30 |
tarjeta |
1202 |
|
31 |
garrafada |
11 |
31 |
zapatazo |
5 |
|
32 |
gelo |
8 |
32 |
zurriagazo |
2 |
|
33 |
gol |
506 |
||||
34 |
goleada |
147 |
||||
35 |
golpe |
138 |
||||
36 |
guilhotina |
2 |
||||
37 |
joelhada |
12 |
||||
38 |
knockdown |
2 |
||||
39 |
lesão |
26 |
||||
40 |
lição |
99 |
||||
41 |
marretada |
3 |
||||
42 |
mordida |
64 |
||||
43 |
multa |
282 |
||||
44 |
nocaute |
14 |
||||
45 |
pancada |
295 |
||||
46 |
paulada |
53 |
||||
47 |
pé |
180 |
||||
48 |
pena |
30 |
||||
49 |
pênalti |
5 |
||||
50 |
pontapé |
125 |
||||
51 |
ponto |
112 |
||||
52 |
pressão |
24 |
||||
53 |
punição |
39 |
||||
54 |
puxão |
112 |
||||
55 |
queda |
138 |
||||
56 |
rasteira |
77 |
||||
57 |
soco |
241 |
||||
58 |
solada |
3 |
||||
59 |
sova |
112 |
||||
60 |
surra |
554 |
||||
61 |
suspensão |
52 |
||||
62 |
susto |
1446 |
||||
63 |
tiro |
1687 |
||||
64 |
tombo |
342 |
||||
65 |
trauma |
6 |
||||
66 |
vitória |
158 |
||||
Total |
9.718 |
7989 |
Conforme a distribuição expressa, é possível observar, na amostra, a compatibilização do verbo levar com 66 lexemas nominais distintos (que, em uma perspectiva esquemática, se correlaciona à frequência type do padrão de predicação, culminando em 66 microconstruções em corpus) – indicando uma alta produtividade em comparação aos dados oriundos do espanhol. Com o verbo llevar, por sua vez, são visualizados 32 types.
Nessa perspectiva, o padrão de predicação com levar, no português, mostra-se mais flexível, permitindo maior extensão de uso, um fator que oferece indícios acerca dos estatutos dos verbos levar e llevar como verbo suporte em suas respectivas línguas de referência. Ambos apresentam, devido ao seu uso rotineiro, significativo esvaziamento semântico, licenciando constructos com valores metafóricos, distanciando-se, em diferentes graus, de sua noção básica de transferência. Entretanto, ao se analisar a produtividade das construções com llevar em relação ao slot do item nominal, estas apresentam maiores limitações associadas ao número de elementos a serem acionados para o preenchimento da posição. Examinam-se, a título de exemplificação, os excertos que seguem:
(10) [...] se alguém ofendesse um gótico de Almada ou, por exemplo, lhe desse um encontrão e não pedisse desculpa automaticamente levava uma cabeçada.
[Sketch Engine; PORT]
(11) Treinador assume que o time levou um baile no primeiro tempo e lembra que talvez não merecesse a vitória: “Mas também já perdemos de forma injusta”.
[Sketch Engine; PORT]
(12) [...] furam os pneus e atrasa a viagem. Quando ele arruma os pneus, acaba a gasolina. Ele chega na casa de noite, aí leva uma bronca [...].
[Sketch Engine; PORT]
Em (10), “levava uma cabeçada” evoca um evento de ordem mais concreta, de natureza física. É possível visualizar, por meio da representação conceptual da ação descrita, uma transferência de “forças” entre os participantes: alguém (participante agentivo) causa, através de movimento físico, uma mudança de estado em outro (participante paciente / sujeito gramatical). Já nos exemplos em 11 e 12, por mais que ainda existam resquícios da noção de “transferência”, vemos uma extensão semântica ao observarmos os frames projetados pelos predicadores em destaque. “Levar um baile” faz referência ao estado de perda do time durante a partida, na qual é superado drasticamente pelo adversário. “Levar uma bronca”, por sua vez, indica uma ação de ordem comunicativa/verbal, em que um participante é repreendido por outro. Dessa forma, cada um dos lexemas nominais (cabeçada, baile, bronca) faz emergir, com o auxílio do verbo suporte “levar”, uma específica conceptualização. E o mesmo pode ser percebido em constructos com llevar.
(13) Y otra más, si vas a disparar a un grupo, el primero que se lleva el disparo es un personaje jugador, en lugar de un zombie.14
[Sketch Engine; ESP]
(14) [...] por la mala hostia de su marido – con perdón– y la vidente, predecesora de Sandro Rey, le dice a la consultante que si se lleva alguna bofetada de vez en cuando, será quizás porque no recibe a su esposo con una copita de coñac, como Dios manda […].15
[Sketch Engine; ESP]
(15) Trabajo en esto, asi que quien me lo discuta se lleva un grito […].16
[Sketch Engine; ESP]
Os excertos em 13 e 14, similarmente ao exemplo 10, referenciam um estado de coisas mais concreto, associado a um frame de agressão física. E “lleva um grito”, em 15, associa-se a um de (agressão por) comunicação.
Dessa forma, com base em Stefanowitsch (2003), a fim de se detectar as tendências configuracionais das construções de predicação passiva com os verbos levar e llevar, elaborou-se uma análise colostrucional focada no slot do sintagma nominal (para maiores elucidações metodológicas, cf. MACHADO VIEIRA et al, 2022). Volta-se para a relação entre (co)lexemas e construção gramatical, de modo a detectarmos as nuances funcionais atreladas ao perfil construcional dos predicadores. Na tabela 5, abaixo, encontram-se expostos os resultados referentes aos padrões do espanhol formados por llevar.
Tabela 5 – Resultados da análise colexêmica simples17 dos (co)lexemas a preencherem o slot de elemento nominal nos predicadores compostos pelo verbo LLEVAR.
Fonte: autoral
Acima, nota-se os 10 primeiros resultados mais relevantes associados à análise. Na primeira coluna, tem-se o item lexical a ser considerado. Nas segunda e terceira, há, respectivamente, a frequência de ocorrência do item na construção (cf. tabela 5) e a frequência geral do item no corpus. Em seguida, são dispostos a frequência da construção sob estudo no corpus e o número de construções18 presentes neste. A partir destes valores, determinou-se a frequência esperada do item na construção (coluna 6), se este é ou não atraído para o slot construcional (coluna 7) e o grau de associação entre lexema e slot (coluna 8) em termos da medida de Log Likelihood.
Como se pode observar, estão dispostos, nas três primeiras colocações, com maior grau de atração, os termos susto, tarjeta e golpe. Visíveis nos excertos (16), (17) e (18), o uso dos lexemas remetem a contextos semânticos diferenciados. “Susto” é empregado para indicar uma experiência primordialmente psicoemocional negativa. “Tarjeta” relaciona-se, em seus constructos em corpus, ao domínio do futebol, representando uma penalidade associada ao esporte. “Golpe” ressalta um impacto (físico e/ou abstrato) negativo. Dessa forma, detecta-se uma tendência nos usos: uma alta associação do slot construção a lexemas que evocam experiências de cunho negativo.
(16) Vestapor vuelve con Fausta, que también se lleva un susto de muerte al ver a su amante vivito y coleando.
[Sketch Engine; ESP]
(17) La pena máxima viene consecuencia de una falta dudosa a Raúl García por un presunto agarrón de Alexis, que se ha llevado la tarjeta amarilla, al igual que Munir tras anotar Aduriz.
[Sketch Engine; ESP]
(18) Se trata de un concurso japonés de piedra, papel o tijera con la peculiaridad que el que pierde se lleva un golpe en la cabeza con un periódico.
[Sketch Engine; ESP]
Ao se tratar dos resultados dos usos do português, veem-se padrões associativos similares. Na tabela 6, a seguir, há a exposição dos dados.
Tabela 6 – Resultados da análise colexêmica simples dos (co)lexemas a preencher o slot de elemento nominal nos predicadores compostos pelo verbo LEVAR.
Fonte: autoral
Os lexemas tiro, susto e surra encontram-se nas três primeiras colocações em termos de grau de atração, convergindo com os resultados do espanhol. Curiosamente, cartão, que possui valor similar à tarjeta, está na quarta posição, ressaltando o alinhamento entre os usos de ambas as línguas românicas em jogo.
Considerações finais: por uma perspectiva diassistemática da gramática
Os resultados abrem caminhos relativos para o desenho da diassistematicidade segundo uma ótica (socio)construcionista. Ao se conceptualizar associações cognitivas entre (sub)sistemas, fornecem-se subsídios para o mapeamento de novos traços da gramática e das operações cognitivas engendradas em sua configuração.
A partir da observação dos dados em foco, é possível projetar a existência de uma diaconstrução que licencia realizações inerentes não só ao português ou ao espanhol, como também a outras línguas (como avoir peur, no francês, e get shot, no inglês). No Diagrama 1, prevê-se tal realidade.
Diagrama 1: Representação da rede diassistemática dos predicadores de passividade com verbo suporte do português e do espanhol.
Mobilizam-se, ademais, questionamentos teórico-metodológicos como: (i) que outros perfis construções de predicação passiva, compostos por verbo suporte, para além dos verbos levar e llevar, apresentam alinhamentos funcionais semelhantes ao delineados? (ii) se há, qual o grau de (des)semelhança entre elas? (iii) quais procedimentos de análise propiciam uma melhor visualização da diassistematicidade em rede? Dessa forma, os resultados ressaltam o potencial comparativo entre predicadores de passividade com verbo suporte no Português e no Espanhol.
Em suma, o projeto aqui exposto surge como uma resposta ao crescente interesse em abordar áreas ainda em desenvolvimento no âmbito dos estudos linguísticos, (i) a rede (a) de predicadores compostos por verbo suporte e a (b) de predicadores de passividade, (ii) o lugar da perspectiva construcionista da gramática no que tange à interrelação entre línguas e como tal afeta o conhecimento linguístico subjacente. Tem-se por foco a análise dos pareamentos forma-função visíveis na configuração de perífrases de passividade empregadas no Português e Espanhol constituídas, respectivamente, pelos verbos suporte LEVAR e LLEVAR. Dessa forma, prevê-se a disponibilização de um caminho que possibilitará um desenvolvimento no campo das análises linguísticas – a fim de enriquecer tanto o plano acadêmico científico, quanto o domínio de ensino das línguas (seja como língua materna ou língua estrangeira).