Em louvor à crioulização: a experiência do abismo em Abdulai Sila

Résumé

“Madjudho”, conto que integra Mistida (2002), de Abdulai Sila, contextualiza, com extrema crueza, a tensão do imaginário da cultura e da identidade num dado momento da vida social, política, econômica e psicológica de Guiné-Bissau. Embora o narrador e seus principais personagens não façam menção direta ao País, percebemos que o texto retrata a vida de dois sujeitos marcados pela guerra de libertação nacional. O narrador apresenta-se como voz aparentemente imparcial na narrativa, mas logo vemos que esse mesmo narrador conta a história sob um ponto de vista solidário a seus personagens de maior relevo: o Comandante, um ex-combatente atormentado e seu companheiro, um rapaz que, na altura da guerra, foi por ele acolhido. Nesse sentido, a partir da leitura que vamos tecer acerca desse conto, esperamos pôr em evidência as principais linhas de força do imaginário literário do autor, procurando elaborar uma análise que valorize a questão da mestiçagem cultural vista pelo viés da “crioulização”, constructo defendido tão firmemente por Édouard Glissant.

Plan

Texte

Introdução

Se fizermos uma rápida consulta às matérias (jornais, livros, relatórios etc) que tratam das literaturas de Língua Portuguesa, certamente notaremos com surpresa e algum descontentamento, pelo menos nesse primeiro momento de descoberta, que Guiné-Bissau está entre os países desse grupo onde a literatura, tanto no período colonial quanto na atual era pós-colonial, menos se fez e se faz presente. As justificativas para esse quadro encontram coro naqueles que, para além da literatura, apontam para o analfabetismo secular, que tanto assolou o país no período da colonização, e à falta de infraestrutura à vida econômica, social e cultural, nos moldes ocidentais. Além disso, a sociedade bissau-guineense convive com tensões sociais e revoltas políticas internas que desestabilizam continuamente as fracas instituições que poderiam garantir um pouco de estabilidade à população. Num quadro como esse, muitos dos seus cidadãos deixam o país, sem jamais retornar, transformando a situação dos seus habitantes, em variados aspectos, ainda mais precária e dependente da ajuda externa. Apenas como elemento de comparação, Cabo Verde, país com população duas vezes menor que a bissau-guineense e área geográfica dispersa e reduzidíssima, tem uma produção literária vigorosa, com fluxos culturais de criação literária mais intensos, donde podemos destacar, contemporaneamente, autores de valor literário reconhecido como o poeta Arménio Vieira [1941-] e o romancista Germano Almeida [1945-]. Ao passo que a descoberta da poesia em Guiné-Bissau é um fenômeno recente, nascido na guerra da libertação, e a prosa, quase inexistente, é cultivada por um grupo ainda menor. É nesse grupo que encontramos Abdulai Sila [1958-], com três livros na prosa, e Filinto de Barros [1942-2011], com o romance Kikia Matcho (1997, com reimpressão em 1999), único livro publicado em vida. Devido ao pioneirismo, à obra mais extensa e, sobretudo, à aproximação, casual talvez, com nossos pressupostos e os objetivos nesse texto, vamos dar melhor destaque ao Sila, mas reconhecemos que Filinto de Barros, através de António Benaf e Joana— principais personagens do romance—, traz também contributos relevantes à questão da mestiçagem bissau-guineense.

Nascido em Catió, cidade do interior de Guiné-Bissau, Sila é tido como o primeiro romancista do país, através da publicação em 1994 de Eterna Paixão, embora tivesse escrito antes A última tragédia, mas editado somente um ano depois, em 1995. Mais tarde, em 1997, com o aparecimento de Mistida, uma coletânea de textos curtos, Sila compõe uma trilogia. Esta, agora com mais os dois romances reunidos, num só volume, foi reeditada em 2002, pelo Centro Cultural Português de Cabo Verde. Recentemente, em 2007 e em 2013, respectivamente, o escritor optou por publicar dois textos dramáticos, As orações da mansarda e Dois tiros e uma gargalhada, pela mesma casa editora que, assim como os demais livros, publicou. A Kusimon Editora, que em crioulo significa “com as próprias mãos”, tem como um dos fundadores o próprio escritor. A literatura em prosa de Sila oferece um grande fermento para a investigação do processo de mestiçagem sob a perspectiva da “crioulização” defendida por Édouard Glissant (1996, p. 17):

Les phénomènes de créolisation sont des phénomènes importants, parce qu’ils permettent de pratiquer une nouvelle dimension spirituelle des humanités. Une approche qui passe par une recomposition du paysage mental de ces humanités d’aujourd’hui. Car la créolisation suppose que les éléments culturels mis en présence doivent obligatoirement être « équivalents en valeur » pour que cette créolisation s’effectue réellement. [Os fenômenos de crioulização são fenômenos importantes, porque eles permitem praticar uma nova dimensão espiritual das humanidades. Uma aproximação que passa por uma recomposição da paisagem mental dessas humanidades contemporâneas. Porque a crioulização supõe que os elementos culturais postos em presença devem obrigatoriamente ser “equivalentes no valor” para que essa crioulização se realize de verdade.]

A crioulização e outros elementos adjacentes do constructo do crítico das Antilhas podem ser vislumbrados na elaboração textual dos personagens do escritor de Guiné-Bissau. A recrudescência do caos ou do mundo misturado no espaço romanesco poderá estabelecer complexas conexões na representação da história, da política, da etnia, da religião, do social e do psicológico nos personagens. Além disso, a imprevisibilidade, bem como opacidade da memória, poderão também cingir a forma romanesca de uma característica peculiar, absolutamente crioula. Por isso, defenderemos, nesse texto, uma leitura sobre a literatura pós-colonial de Abdulai Sila sob um olhar igualmente descentralizado, na tentativa de poder perceber a inventividade e a riqueza em zonas da cultura consideradas periféricas no mundo, tidas como exóticas, incapazes e impossíveis de demonstrar alguma humanidade profunda ou arte universal que se possa reconhecer.

Mestiçagem cultural, rizoma, relação e experiência do abismo

Os povos que experimentaram o abismo não se vangloriam de terem sido eleitos. Não julgam ter dado origem ao poder da modernidade. Vivem a Relação, que desbravam à medida que adquirem o esquecimento do abismo e que a sua memória se consolida.
Édouard Glissant—
Poética da Relação, 2011.

“Madjudho”, narrativa curta de Abdulai Sila, apresenta uma imagem acerca da “mistura” que, acreditamos, segue para além de uma simples referência ou estilo literário apenas. Vamos destacar o trecho a seguir, diretamente de Sila, para que, depois, possamos melhor contextualizá-lo e analisá-lo:

Iria muito provavelmente averiguar donde vinha tanto líquido, pois estava mais do que certo que aquilo não era tudo dele. Afastaria as folhas secas uma a uma até descobrir a origem. E se não concordasse com a mistura iria tomar medidas, medidas imediatas e drásticas, para separar as partes. Podia-se até admitir a hipótese de arrancar as raízes do cajueiro, uma a uma, caso desconfiasse que era alguma delas que andava a mijar aquele líquido parecido com o seu. Mas se concordasse com a união, seria capaz de passar ali o dia inteiro a mijar, a beber e a mijar, até a outra parte se convencer de que ele era o mais forte e sabia como impor o que queria. (SILA, 2002, p. 332).

Nesse trecho, o narrador expõe a movimentação interna do pensamento do personagem, no momento em que, de manhã, como rotineiramente fazia, urina sobre um tronco de cajueiro. A urina descia pelo tronco, infiltrando-se nas raízes da árvore e, abundantemente, escorria pelo chão, sob as folhas secas até retornar ao pé do personagem. Essa situação, aparentemente banal, agita a subjetividade do personagem, levando-o a questionar sobre a natureza do líquido. A urina que volta ao pé, além de parecer abundante, traz resíduos endógenos e exógenos, isto é, o líquido “original” incorpora, no trajeto, da uretra ao pé novamente, materiais de outra natureza, restos de cascas, fungos, insetos e minerais, avolumando-se, expandindo-se, mas, nesse movimento, vai também se misturando, travestindo-se de outra coisa, escondendo-se sob as folhas.

A intromissão de matérias diferentes no líquido observado pelo personagem nos conduz à percepção de um traço do imaginário, ou seja, uma informação da cultura que se faz presente, mas cuja raiz já não se pode mais precisar. No caos em que o personagem habita, a memória está completamente dissipada, inacessível por meios objetivos. Então, ela se faz presente/ausente através de irrupções fantásticas e imprevisíveis. A figuração da imagem congrega em si uma dispersão da vida espiritual do personagem, marca, na sua passagem, o “aqui e agora”, mas também a indicação de um “lá, num outro lugar, no passado e no futuro”. Então, lendo a imagem como um traço da memória, ela explicaria simbolicamente o tremor do sujeito na atmosfera do misturado, do absolutamente imprevisível. Mas a forma da imagem, vista como enigma ou intervalo literário, poderá ganhar algum sentido mais objetivo? E quais as condições para isso?

Pensamos que a figuração da imagem no contexto da obra poderá nos auxiliar a arriscar uma leitura sobre ela, favorecendo, ademais, possíveis generalizações sobre o texto e a própria atividade do escritor, como costumeiramente os trabalhos de crítica literária costumam fazer. Para Antonio Candido (1997), toda crítica, válida e viva, é arbitrária, de modo que, então, advertimos que seguiremos esse caminho. Embora sem ter a certeza de que iremos alcançar esses objetivos, acreditamos que toda atividade crítica deseja, ao fim e ao cabo e por mais modesta que ela seja, elaborar uma leitura que seja válida e viva acerca do texto literário. Enfim, entendemos que a crítica é, dentre outras coisas, um modo de desestabilizar o senso comum acerca da literatura e, por extensão, da percepção que temos do mundo.

No trecho que selecionamos de Sila, notamos a dicotomia de linhas de força da condição cultural vivida pelo personagem. A árvore — cajueiro — e o solo — terra, raízes, insetos, pequenos animais e demais elementos de origem desconhecida — fazem parte de um conjunto de coisas, mas, nesse conjunto, embora unidos e relacionados, cada elemento comunica uma perspectiva diferente. O cajueiro, com sua raiz, pode significar a condição atávica da cultura, o elemento puro e imponente que se edifica sobre as demais formações. E o solo, absorvendo raízes adversas, líquidos e outras matérias que se cruzam, forma uma plataforma horizontal de contato, indicando uma figuração compósita da cultura.

Nesse sentido, podemos então relacionar a imagem plasmada de Sila às elucubrações de Gilles Deleuze e Félix Guattari, quando introduzem a noção de rizoma, como podemos recordar na descrição seguinte:

diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 31).

E, mais adiante: “Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como árvoreimagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma antigenealogia”. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 31-32). Desse modo, o traço do rizoma é a constituição, numa plataforma horizontal, de conjuntos a-sistêmicos que se relacionam e se interpõem. Em sentido diverso, temos o esquema arbóreo que se coloca como constituição unidimensional, vertical, que apresenta uma origem ou filiação, uma raiz, e que, no seu percurso, oblitera e mata movimentos concorrentes ou marginais, jogando-os nas suas sombras.

Essa noção de rizoma será também aproveitada por Édouard Glissant. Ao refletir melhor sobre as relações entre cultura atávica— de raiz única—, e compósita, constituída por rizomas, o intelectual e escritor da Martinica afirma:

On s’aperçoit que les cultures composites tendent à devenir ataviques, c’est-à-dire à prétendre à une perdurabilité, à une honorabilité du temps qui sembleraient nécessaires à toute culture pour qu’elle soit sûre d’elle-même et pour qu’elle ait l’audace et l’énergie de se dire. [Percebe-se que as culturas compósitas tendem a se tornar atávicas, isto é, a desejar uma permanência e uma honorabilidade temporal que, parece, são necessárias a toda cultura para que ela se sinta autoconfiante e para que ela tenha audácia e energia para falar de si mesma] (GLISSANT, 1997, p. 195).

E, por outro lado :

Les cultures ataviques au contraire tendent à se décomposer, à se créoliser, c’est-à-dire à remettre en question (ou à défendre de manière dramatique) leur légitimité. Elles le font sous la pression de la créolisation généralisée dont nous avons dit que la totalité-terre est l’objet. (GLISSANT, 1997, p. 195). [As culturas atávicas, ao contrário, tendem a se decompor, a se crioulizar, isto é, a pôr em questão (ou a defender de maneira dramática) sua legitimidade. Elas se fazem sob a pressão da crioulização generalizada que, afirmamos, tem por objeto a totalidade-mundo].

Pensamos, assim, que a inter-relação entre essas duas formas de identidades culturais— atávicas e compósitas—, criam e definem, na contemporaneidade, o espaço tenso do mundo, marcado por opressões e resistências em todas as áreas de contato (sociais, econômicas, políticas, religiosas, étnicas etc.).

Quando a urina é lançada a meio tronco, quebrando a linearidade do espaço e do tempo, ela reproduz esse ambiente caótico da relação entre culturas atávicas e compósitas, isto é, ela não comunica mais o começo ou o fim de algum objeto ou trajeto. Essa urina é assim percebida como um “Sendo”— um devir do Ser— cuja relação está ancorada num tempo que desconhece o passado e a imagem do futuro. Então, essa informação irá perturbar a visão unilateral comum que o personagem tem sobre os seres e as coisas. Como figura do discurso, a urina que escorre pelo tronco é também uma questão de semiótica que poderá, mais uma vez, nos remeter à noção de rizoma:

Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda. Não é fácil ver a erva nas coisas e nas palavras (Nietzsche dizia da mesma maneira que um aforismo devia ser "ruminado", e jamais um platô é separável das vacas que o povoam e que são também as nuvens do céu). (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 34).

A erva que cresce no tronco, sem raiz, e que se expande sem um mecanismo regulador, encontra no ato do personagem uma correspondência. O líquido que dali escorre não tem uma medida, e se expande sem mapa ideológico, sem um sistema de pensamento definido, isto é, sem controle ou ingerência.

Ao ver a performance do líquido, o personagem também “rumina”. A imagem o obriga a refletir e a propor, ainda que de maneira hipotética e inconsistente, posicionamentos, isto é, perspectivas para a situação vivida. O personagem, no momento da narração, já não se importa com a surpresa da abundância do líquido provocado pela mistura. Entretanto, em outros tempos, como notamos na leitura do fragmento, era algo a ser combatido. Queria saber da origem e, ademais, se tivesse a certeza daquilo que era estranho ao líquido, logo acharia um jeito, mesmo que drástico, de buscar a divisão. A inflexão do personagem mostra, assim, uma postura hostil à mistura, vista como algo baixo ou negativo à manutenção da própria subjetividade. Além disso, o personagem busca também uma posição fundamental, no sentido de rechaçar e expurgar os elementos diversos encontrados.

Por outro lado, o personagem não rejeita a hipótese política de se “unir” à mistura, a fim de eliminar por completo o elemento estranho ao longo do tempo. Em síntese, podemos concluir que, na reflexão do personagem, a maneira pela qual ele decide lidar com a mistura (com hostilidade ou com diplomacia) revela que a sua intenção é sempre a mesma: chegar à origem da mistura, e erradicar, na raiz, o elemento desencadeador dessa mistura. Passado o período da guerra, o personagem já não se importa mais com a mistura, mas nutre a esperança de que uma “mistida” — termo em crioulo que significa, entre outras coisas, “safar-se de algo com urgência”—está por vir, ou seja, de que algo ainda precisa ser “passado a limpo” mesmo tendo a guerra sido declarada oficialmente terminada.

Não muito diferente da realidade de outros países africanos que experimentaram a contra gosto o período da colonização, Guiné-Bissau sofreu barbaramente com o processo da luta pela independência política. O Partido Africano da Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC), fundado em 1956, e extremamente atuante na década de 70, conseguiu, sob a liderança de Amílcar Cabral, a tão esperada independência política de Cabo Verde e de Guiné Bissau. A luta pela democracia continuou sendo a bandeira do partido, mas, no processo de descolonização, muitas sabotagens, subornos e golpes minaram os planos do partido, constituindo-se, em fins do século XX, numa ditadura de partido único, traindo assim as suas principais motivações no momento de fundação e de luta pela libertação. O partido continua a existir, amargando fracassos e, por vezes, sucessos.

No presente momento, Guiné-Bissau, tendo experimentado sucessivos golpes e revoltas, está imerso no caos político, social e econômico, dependente de políticas externas cujos interesses muitas vezes não são convergentes. Para termos uma ideia dessa complexidade, vemos em Guiné-Bissau um país que não tem uma moeda própria, pois está integrado numa comunidade de países africanos francófonos (União Econômica e Monetária do Oeste Africano — UEMOA), mas, por outro lado, é também membro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Nesse jogo de interesses, e levando em conta também o narcotráfico que se infiltrou nas áreas mais sensíveis do país, Guiné-Bissau não consegue consolidar nenhum modelo coerente de política econômica e social. Vive a depender militar e economicamente de velhas potências colonizadoras e de, recentemente, de novos jogadores políticos, tais como China e Brasil.

A história do personagem— o Comandante— está carregada de simbologia. Foi confiado a ele, no período da guerra, um posto de observação que, mesmo tendo passado o conflito militar, ainda se mantivera preso nele. Sempre alerta, para o Comandante a guerra não acabou, e guarda com zelo uma “medalha”— na verdade, um relógio de um só ponteiro arrancado, provavelmente, do painel de controle da cabine de um avião abatido na guerra— que considera um troféu inconteste. O tempo da guerra tem uma duração na vida psicológica do personagem diferente da vida social. Apesar de, oficialmente, a guerra ter sido declarada ganha pelas autoridades militares e civis do país, para o personagem, a guerra só terá sido realmente ganha quando “o orgulho e a dignidade” (SILA, 2002, p. 334) da nação forem recuperados. Em face disso, o personagem se tornou figura excêntrica e caricata na sociedade, um sujeito marginal que, deslocado, não se beneficiou da nova ordem política estabelecida. Com a trajetória do Comandante, notamos a crítica de Sila com relação à situação política do país, pois os filhos da pátria, que ajudaram a consolidar uma classe de dirigentes políticos locais novos, foram, entretanto, mal recompensados e abandonados. O que nos chama a atenção, na fabulação construída por Sila, é justamente a articulação do imaginário, oferecido pela oralidade da língua crioula, e a cultura da escrita.

Para quem teve a experiência de conhecer ou viver a realidade africana, não achará absurdo a raiz do cajueiro, de repente, urinar, como pensou o Comandante. O fantástico, na cultura africana, é, na maior parte das vezes, um dado aceito e rotineiro, absolutamente naturalizado. Podemos notar também essa vertente na literatura de Mia Couto (1997), um dos autores mais conhecidos na literatura africana de Língua Portuguesa dos últimos tempos. Na literatura de Couto, o fantástico irrompe de maneira espontânea, operando misturas inusitadas entre o histórico e o místico. Isso não difere em absoluto da literatura de Sila. Guiné-Bissau congrega um número grande de etnias, tais como Bijagós, Manjacos, Papéis, Fulas e outras. Cada uma dessas etnias (trans)forma o insólito do imaginário, construindo a explicação sobre a existência no mundo, coletiva ou individual. Com isso, pensamos que a literatura de Sila, embora possa estabelecer conexões múltiplas com o fantástico-maravilhoso das literaturas ocidentais e latino-americanas, não é, por ele, dirigido.

Isso posto, notamos que existe em Sila uma verdadeira ponte entre o imaginário étnico, oferecido pela oralidade do crioulo, e a forma escrita, quando o autor decide articular esse imaginário por meio da cultura da escrita da literatura de base ocidental. Assim, quando Sila tenta transpor o imaginário através do escrito, pensamos que ele assume a posição de tradutor cultural, isto é, de um escritor que opera numa plataforma horizontal de manifestação organizada por uma “poética de relações”, nos termos de Glissant (2011). Para Glissant (1997), a globalização (e isso vale também para a colonização) se revela através de opressões e explorações, em todas as áreas, dos fortes sobre os mais fracos. Por outro lado, essa situação de opressão e de miséria é também um dado desencadeador de reflexão e conscientização, pois o sujeito local nota que, através dos fluxos de informação baseados em redes da própria globalização, aquilo que o afeta é também algo que afeta outros sujeitos das comunidades do mundo todo.

Ora, essa percepção no sujeito de que a força que o oprime é, em termos simbólicos, a mesma força que oprime um outro, em um outro local, poderá favorecer um pensamento relacional e não essencialista sobre a própria cultura e identidade. Assim sendo, quando um escritor, um sujeito engajado à própria cultura, decide tratar de sua cultura por meios literários, ou seja, poéticos, ele abandona a ideia de raiz como ideia majoritária, e seu discurso opta, no seu lugar, por uma representação da conjectura cultural onde vive motivada por um desejo de levar a comunicação de seu imaginário ao imaginário do outro. Essa “relação”, horizontal e rizomática, pode ser maximalizada através do processo de “crioulização”, como podemos perceber em Abdulai Sila.

No conto que estamos tomando como referência, notamos que, embora escrito em Língua Portuguesa, a projeção de imagens vem do Crioulo de Guiné-Bissau. A começar pelo título do livro, “Mistida” e, depois, passando pelo nome do conto, “Madjudho”. Através do Crioulo há um encontro de etnias que numa língua étnica ou na língua do colonizador não poderia ter espaço. A cultura crioula dá a energia para a realização de uma confluência de imagens porque nela não existe uma raiz única e, por isso, não tem um caráter atávico que a organiza. O Crioulo é uma língua compósita e, portanto, toda a projeção cultural que realiza aponta majoritariamente para uma atitude “relacional”. Imaginamos que, embora Sila carregue o vetor de sua etnia, bem como o arcabouço da cultura ocidental, absorvida pela aquisição da Língua Portuguesa, a aura que o anima não se encontra na extremidade étnica ou na ocidentalização. Na verdade, é do Crioulo que Sila garimpa as imagens da literatura, e essas imagens, por ser crioulas, ou seja, mestiças e imprevisíveis, sempre comunicam, na generalidade, algo muito específico de cada etnia. Há um aspecto considerado por nós bastante positivo em Sila, que, para outros críticos, pode inclusive servir de argumento contrário: Sila é um inescapável escritor de Língua Crioula que escreve em Língua Portuguesa. Isto é, o veículo dele é a Língua Portuguesa, mas a orientação ficcional, ou seja, “imagética” é de base crioula, majoritariamente africana, relacional e imprevisível.

O Crioulo é a língua mais corrente de Guiné-Bissau. Na Capital, Bissau, há muitos cidadãos, sobretudo os mais velhos, que, além de manter viva, no meio familiar, a língua étnica da região onde nasceu, usam o Crioulo como segunda língua nas relações que mantêm com outros cidadãos da cidade, muitos deles pertencentes a outras etnias e, assim, portadores de outras línguas étnicas. Os cidadãos que, entretanto, nasceram e vieram ainda muito cedo para a cidade, normalmente se expressam em Crioulo como primeira língua e pouco sabem ou muitas vezes não sabem mais se expressar na língua étnica dos pais ou parentes. A Língua Portuguesa, língua do ensino obrigatório e do Estado, é, na escola, ministrada flagrantemente em Crioulo com manuais bibliográficos vindos muitas vezes de fora. Apenas uma parcela reduzida da população, abaixo de dois dígitos de porcentagem, tem a Língua Portuguesa como língua materna. Então, poderíamos dizer que o Crioulo é, na verdade, uma zona disforme e aberta de contatos culturais diversos, e que Sila se beneficia disso tudo no momento em que, escrevendo em Língua Portuguesa, projeta ao mundo luso-afro-brasileiro um dado do imaginário dos mapas culturais em trânsito de Guiné-Bissau, legitimado pela profusão imagética do Crioulo.

A suspeita de uma segunda globalização— a da cultura, isto é, por meio da mestiçagem, que age, por reverso, à globalização econômica e da cultura planificada— foi despertada em Glissant (1996) a partir do entendimento que o próprio fez acerca dos vários fluxos de povos (hindus, africanos e europeus, por exemplo) que tornaram as Antilhas num espaço de disputas territoriais e de trânsitos culturais. Desses trânsitos, desnudou-se também “um falar” crioulo— o Crioulo francês— como aspecto linguístico particular da cultura e da identidade do arquipélago. Como metonímia, o crítico da Martinica tomou a crioulização como figura primordial da cultura da mestiçagem no mundo.

Como sujeito pertencente a uma terra que não tem uma raiz única, porque essa mesma terra foi tomada como território “legítimo” por diferentes povos em diferentes momentos históricos, desdobra-se, então, um movimento no sentido de se realizar, nesse local, uma totalidade no âmbito da mestiçagem, como forma de corrigir os excessos do desejo pela conquista do território sobre a nação. E a filosofia dessa aprendizagem, que é a crioulização, está, ainda segundo Glissant, na práxis da “poética da relação”:

Dans la totalité-terre aujourd’hui physiquement réalisée, où la créolisation a remplacé la pulsion de l’extension et de la légitimité de la conquête, la Poétique de la Relation permet d’approcher la différence entre une terre (lieu incontournable de tout étant) et un territoire (réclamation comme rituelle, et désormais infertile, de l’Être). (GLISSANT, 1997, p. 197). [Na totalidade-mundo hoje fisicamente realizada, onde a crioulização substituiu a pulsão da extensão e da legitimidade da conquista, a Poética da Relação permite aproximar a diferença entre uma terra (lugar incontornável de todo sendo) e um território (petição como ritual, e a partir daí infértil, do Ser)].

No mesmo diapasão teórico de Glissant, vemos Abdulai Sila. Esse escritor, nascido em Catió, ou seja, numa pequena cidade da costa ocidental africana, realiza, na prática, uma crioulização cultural cuja natureza só pode ser melhor compreendida quando fazemos alusão à crioulização francófona debatida por Glissant.

A Martinica, Departamento Francês, faz parte de um conjunto de ilhas menores das Antilhas— cadeia de ilhas dispostas ao longo da extremidade oriental do Mar das Caraíbas. A posição geográfica de Martinica a torna aberta ao mar (e aos povos vindos por ele) em todas as direções, e qualquer tentativa de socavar uma identidade cultural do diverso esbarra-se na natureza geográfica que desestimula um pensamento de raiz, de filiação única. Nota-se, ainda, que Martinica fica entre outras ilhas, de modo que qualquer posição que se tome (política, econômica, cultural etc) é preciso relacionar com as outras ilhas ao redor. Com isso, pensamos que a produção cultural dessa ilha oscila temporalmente entre aceitação e resistência aos imperialismos culturais, mas, para além desse antagonismo, essas forças antagônicas são vislumbradas na “relação”, ou seja, na convergência de tensões através de produções culturais mestiças. Nessa conjuntura, emerge uma cultura compósita que se organiza pelo viés da crioulização.

A história de Guiné-Bissau e, talvez ainda mais forte, a de Cabo Verde guardam um enredo de convergência à Martinica. Assim como o arquipélago do Mar do Caribe presenciou e acumulou em seu território uma gama de culturas, que hoje se crioulizam, Cabo Verde e Guiné-Bissau também foram espaços cingidos por deslocamentos de indivíduos e, muitos deles, semelhantes na condição imposta pelo tráfico de escravos. Esses indivíduos carregam em comum “a experiência do abismo”, usando a metáfora de Glissant, em escalas terrificantes: a barca, o mar e a sensação de apagamento:

A experiência do abismo está no abismo e fora dele. Tormento daqueles que nunca saíram do abismo: que passaram diretamente do ventre do navio negreiro para o ventre violeta dos fundos do mar. Mas a sua provação não morreu, verificou-se nesse contínuo-descontínuo: o pânico do país novo, a saudade da terra perdida, e por fim a aliança com a terra imposta, sofrida, redimida. [...] Encontraram nela os primeiros ocupantes, também eles deportados por um saque imóvel. Ou então adivinharam apenas os seus vestígios devastados. [...] E assim o desconhecido-absoluto, que era a projeção do abismo, e que transportava eternamente o abismo-matriz e o abismo infinito, tornou-se por fim conhecimento. (GLISSANT, 2011, p. 19).

A formação de Cabo Verde apresenta, assim, laços estreitos com a Martinica. Cabo Verde é um arquipélago formado por dez ilhas vulcânicas, que fica no Oceano Atlântico, a 640 Km a oeste de Dacar, Senegal, bem como próximo da Mauritânia, Gâmbia e Guiné-Bissau. Esses países da costa ocidental africana foram colonizados respectivamente por franceses (Senegal e Mauritânia), por ingleses (Gâmbia) e portugueses (Guiné-Bissau). Logo, vemos que se trata de territórios de disputas pelas antigas potências coloniais, e que hoje esses territórios estão imersos em disputas internas de poder. Veja, por exemplo, o conflito de Casamança, na fronteira de Senegal com Guiné-Bissau. Com atenção especial a esse último país, embora não tenha sido uma terra nova (pois, ao contrário, era dali que a empresa colonial retirava os homens a ser escravizados), passou (e ainda passa) pela experiência do abismo, como veremos mais adiante. Guiné-Bissau viverá o abismo em sua própria terra.

Guiné-Bissau, nesse sentido, apresenta uma característica própria. Apesar de estar preso ao continente africano, o desenho de sua geografia mostra, na parte litorânea, fendas de terra ou pequenos golfos marinhos que se ligam aos principais rios que alimentam o país. Contemplando essa geografia ímpar, imaginamos que, por força da vitalidade aquífera (oceânica, fluvial e pluvial, devido às intensas chuvas e alagamentos), temos a impressão de que toda a área do continente bissau-guineense é, na verdade, um conjunto de ilhas muito próximas umas das outras, separadas por rios maiores (Cacheu, Mansoa, Geba, Rio Grande de Buba e Cacine, por exemplo) e outros menores. Toda a região de Catió, a propósito da localidade natal de Sila, faz fronteira com o arquipélago de Bijagós, banhado pelo Atlântico, tendo as suas margens laterais marcadas pela presença dos rios Tombali e Cacine, e a parte posterior cortada pelo rio Balana. Em termos culturais, essa disposição geográfica de Guiné-Bissau torna a própria terra num ambiente de pequenos territórios africanos étnicos, mas não fechados em si, pelo contrário, que se comunicam por vasos relacionais, por rios rizomáticos, afluentes ou mesmo por navegações rudimentares em alto mar.

Então, a colcha de ilhas do litoral bissau-guineense avulta como um espaço de descontinuidades territoriais que não permitem um pensamento uno, uma raiz, uma inflexão fechada de valores étnicos, sociais e morais fundamentalistas, porque cada espaço ali também depende de outros contatos e espaços, cujo sistema de valores não é exatamente o mesmo. Sabemos, pois, que os bijagós se relacionam com outras etnias em outros espaços. Muitos deles trabalham, por exemplo, na capital, mas têm seus parentes nas ilhas. Na cidade, o bijagó se depara com fulas, balantas e outras etnias, e mantém boa convivência com todas elas. Essa situação só se desestabiliza quando certas classes políticas do país tornam o poder um meio de manobra para favorecer uma etnia em detrimento de outras, apoiadas sempre por agentes externos, porém ligados historicamente à economia do país ou da região.

Em face dessa característica humano-geográfica de Guiné-Bissau, entendemos que a capital Bissau aparece, sobretudo, como um espaço de encruzilhada de culturas autóctones e também de culturas de fora do ambiente africano, através da presença de estrangeiros ligados às representações governamentais, empresariais e de outros setores de nações diversas. Bissau se creouliza e Sila aparece como um escritor por excelência dessa mestiçagem cultural que, a cada dia se intensifica na cidade. Do porto de Bissau à Feira do Bandin, Bissau mistura cheiros, cores, peças, imagens e pessoas. Contudo, dentro desse processo, o escritor lembra a “mistida” a ser feita, os reparos de conduta moral, ética e social necessários à emancipação de toda a comunidade. A voz de Sila é a de todos os bissau-guineenses que sofrem (ou sofreram) com o caos desencadeado pelo processo de colonização e, depois, com a descolonização. Então, Sila recupera “a experiência do abismo” do terceiro nível: a sensação de não pertencimento à própria terra representada através de seus principais avatares literários.

Diante do fenômeno raro da posição geográfico-humana de Guiné-Bissau, cuja territorialidade é, na verdade, uma mistura de terra firme— pretensão continental que avança para Senegal e Guiné-Conacri, situação que se interioriza— com descontinuidades territoriais— parte litorânea, formada por ilhas isoladas e arquipélagos, situação que se expande e dilui diante do oceano—, pensamos que é possível estabelecer um paralelo com o aspecto da crioulização defendida nos termos de Édouard Glissant, bem como aproximar o contexto da Martinica ao contexto bissau-guineense, apesar de, como estamos vemos, a Guiné-Bissau não ter sido historicamente um país receptor do tráfico negreiro e nem constituir um arquipélago tão-somente, quando fazemos uma aproximação com a Martinica. Porém, mesmo diante dessas diferenças, estamos percebendo que, no que tange à crioulização, visto como um modo de existência e de figuração cultural de povos compósitos, Guiné-Bissau mantém um diálogo profundo com o constructo glisssantino. É claro que, nessa leitura, estamos falando de uma representação literária do país que acreditamos estar escondida na literatura de Abdulai Sila. Por esse caminho, estamos lendo os seus principais personagens literários.

A experiência do abismo se dá, no conto, através dos dois personagens principais. Através do Comandante e também através do jovem que vive com ele. Moravam juntos, mas o jovem nada sabia da razão de estarem juntos e nem sobre a própria história de vida. Acerca da vida do Comandante, havia também certa incompreensão e muitas especulações a respeito:

Uns diziam que ele era simplesmente um extraviado, alguém que fora para ali por mero capricho do destino; outros afirmavam reconhecer nele os modos de um excomungado, um ser maldito que, por força dos inúmeros pecados cometidos ao longo da sua miserável existência, tinha que conhecer o inferno mesmo antes de lá chegar; finalmente, houve quem visse nele um exautorado, um nobre cidadão privado da dignidade e dos benefícios que um passado glorioso e pleno de sacrifícios lhe conferiam (sic). (SILA, 2002, p. 336).

A memória turva do Comandante, bem como o silêncio sobre a vida do jovem, organizam o contexto do abismo vinculado à própria terra. E, buscando compreender melhor esse apagamento, ambos os personagens tecem estratégias de entendimento da realidade por caminhos imprevisíveis. O jovem— personagem —não sabia exatamente quem era e por que ele estava com o Comandante. Sua memória objetiva só começa a partir do momento em que se via correndo para mata, junto ao Comandante, vendo, atrás, a tabanca (moradia comunitária) ardendo em chamas:

Lembrava-se ainda tão bem desse dia! Tinha um irmão mais novo que a mãe levara às costas quando saíra para ir buscar água no único poço da tabanca que ficava longe, perto da bolanha [plantação de arroz]. Nunca mais voltou a vê-los, já nem se lembrava da cara deles. Estava a brincar com outras crianças no bantabá, à sombra de um grande mangueiro, quando começou o tiroteio. Os seus companheiros tinham corrido para o interior das suas casas, mas ele ficara a ver uma coisa que parecia um pássaro enorme, que voava rápido e fazia muito barulho. Só quando as casas começaram a arder é que ele desatou a correr em direção à floresta. (SILA, 2002, p. 337).

O jovem, por conta da guerra, perde os laços com a família e a terra, e vai viver na companhia do Comandante. Comunidades de outros países africanos também experimentaram o trauma do abismo por meio da guerra. Voltando à literatura de Mia Couto (1997), e restringindo-nos ao mesmo tempo às comunidades de Língua Portuguesa em África, temos o caso de Thuair (ancião) e Muidinga (menino). O livro de Mia Couto mostra como a guerra pós-colonial de Moçambique frustra projetos de vida particulares e de comunidades inteiras, mas, por outro lado, mostra que, mesmo diante de tanta injustiça e sofrimento, a solidariedade e a imaginação humanas brotam espontânea e imprevisivelmente nos condenados à própria sorte. Em Sila vemos essa mesma mensagem.

O jovem e o Comandante tiveram a experiência de guerra em diferentes modos. Enquanto o último atuou diretamente na luta armada, como combatente, o segundo, e por ser talvez um menino apenas, auxiliou no transporte de armamento. Ambos fizeram frente ao invasor. Mas, agora, estão desamparados, vivendo num posto militar abandonado. Entretanto, o jovem, na medida em que cresce ali junto ao Comandante, toma consciência do passado, procurando dar à própria vida uma razão que justifique um novo começo. Nessa busca, o jovem verá no Comandante uma orientação. Através de parábolas, o Comandante fará o jovem questionar o próprio conhecimento sobre a realidade, introduzindo-o no mundo sobrenatural. Notar a cor do sol ou sentir o aroma do vento foram estratégias usadas pelo Comandante para fazer com que o jovem se abrisse para o desconhecido, para o extra-sensível e para o imprevisível. Uma nova margem é, assim, alargada na subjetividade do jovem, e partir daí a narrativa corre para um desfecho inesperado.

O Comandante, aparentemente enlouquecido pela guerra, guarda, alí no posto abandonado, as contingências do conflito não alcançadas. Ou seja, o Comandante, que não abre os olhos durante o dia para não ver o sequestro da luta de independência, espera o dia em que ele e toda sua comunidade sairão realmente vitoriosos do conflito. Dia em que poderá abrir os olhos, contemplar o seu país e a face de seus companheiros. Para o Comandante, a instauração de um tempo de esperança, fé, justiça e solidariedade faria com que ele abrisse altivamente os olhos durante o dia. E esse dia chega quando, juntamente com o jovem, presencia a metamorfose da “medalha” numa grande luz que se levanta ao céu. É chegado então o grande dia. Dia da esperada “mistida”, dia da virada de página do conflito pós-colonial bissau-guineense, dia em que a experiência do abismo torna conhecimento e práxis social.

Para nós, o desfecho do conto traz novamente o elemento sobrenatural do início da narrativa como mecanismo de entendimento da realidade, fruto de misturas da crioulização. A “medalha”, fato histórico, é transportada para um mundo místico onde seu reconhecimento passa pelo crivo de um pensamento de “relação”, ou seja, de uma comunicação inter-étnica entre povos africanos da região. A “bola luminosa” volta então a dialogar com a raiz do cajueiro, que poderia ter urinado ao pé do Comandante, e com os feiticeiros de Guiné-Bissau ou griots de toda a África. A “mistida” acontece porque, e tão-somente por isso, o imprevisível, em contraposição à razão determinista, acontece.

Esse dado é, acreditamos, um dado da crioulização. A confiança do Comandante, e depois do próprio jovem, é talhada a partir de vestígios combinados numa memória coletiva que reúne informações subjetivas e diversas de toda uma realidade cultural africana. Dessa mistura, Abdulai Sila aponta para um caminho. Visto que a literatura é também a materialização, através da ficção, de um desejo do imaginário social, isto é, de uma condição histórica não satisfeita, entendemos que em Sila o elemento mágico, a carta coringa da crioulização, salta a olho nu para a transformação da consciência sobre a realidade bissau-guineense, ou seja, da condição pós-colonial já imaginada e experimentada, tensa e sofridamente vivida pelo autor, para uma condição pós-colonial contingente, reimaginada, solidária e justa.

Considerações finais

No intuito de conhecer melhor a literatura produzida por Abdulai Sila, optamos por ler um texto curto— “Madjudho” —, uma ilustração da prosa mais recente do autor, tentando relacionar à carga do imaginário presente neste texto ao contexto histórico-geográfico de Guiné-Bissau e, no plano mais teórico, à questão da mestiçagem cultural. Procuramos, desse modo, e à esteira de Édouard Glissant, recompor parte da paisagem mental das humanidades subjacentes à expressão literária de Sila. Vimos que características da crioulização, tais como rizomas, caos, culturas compósitas e atávicas, imprevisibilidade, entre outras, estão presentes na narrativa. Essa mistura de elementos vai além de uma simples ambientação. A crioulização se faz também presente no íntimo da percepção dos principais personagens do conto.

Na sondagem da imaginação do personagem— microcosmo da sensibilidade da criação literária de Sila—, atestamos a concretização da epifania da condição existencial crioula. A experiência do abismo (num espaço governado por etnias africanas, bem como por resíduos de culturas ocidentais, que se exprimem pela oralidade, tendo aí a língua Crioula como maior centro de gravidade), faz irromper no personagem a figuração do fantástico como via interpretativa e utópica acerca do mundo e de suas múltiplas relações.

Quando o fantástico brota, em Sila, sentimos que o fator da imprevisibilidade surge em decorrência do exercício preliminar da “relação”, isto é, da poética das relações que ele estabelece com várias outras expectativas étnico-culturais dentro do contexto social em que vive. Enfim, a experiência do abismo é, em Sila, não só transformada em conhecimento, como poderia supor Édouard Glissant. Essa experiência, como foi levada a cabo, pode também ser vista por nós como um louvor à crioulização, no domínio da literatura africana de Língua Portuguesa.

Bibliographie

BARROS, F. de. Kikia matcho. O desalento do combatente. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.

CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. 8. ed. Belo Horizonte- Rio de Janeiro: Editora Itatiaia Limitada, 1997, vol. I.

COUTO, M. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Trad.: Aurélio Guerra Neto; Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, vol. I.

GLISSANT, É. Introduction à une poétique du divers. Paris: Gallimard, 1996.

_____. Poética da Relação. Trad.: Manuela Mendonça. Porto: Porto Editora, 2011.

_____. Traité du Tout-Monde. Poétique IV. Paris: Gallimard, 1997.

SILA, A. A última tragédia. Bissau: Ku Si Mon Editora, 1995.

_____. As orações da mansarda. Bissau: Ku Si Mon Editora, 2007.

_____. Dois tiros e uma gargalhada. Bissau: Ku Si Mon Editora, 2013.

_____. Eterna paixão. Bissau: Ku Si Mon Editora, 1994.

_____. Mistida (Trilogia). Praia- Mindelo: Centro Cultural Português, 2002.

_____. Mistida. Bissau: Ku Si Mon Editora, 1997.

Notes

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Essa e demais traduções do francês para o português foram, neste texto, elaboradas caseiramente pelo próprio pesquisador.

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Référence électronique

Sebastião Marques Cardoso, « Em louvor à crioulização: a experiência do abismo em Abdulai Sila  », Reflexos [En ligne], 2 | 2014, mis en ligne le 25 mai 2022, consulté le 26 avril 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/640

Auteur

Sebastião Marques Cardoso

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

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