Tal como Teseu saiu do labirinto de Creta, o qual era assombrado pelo terrível minotauro, guiando-se pelo fio dado por Ariadne, filha do rei Minos, vamos percorrer a produção machadiana em busca do fio condutor que permitirá construir uma teoria acerca do pensamento de Machado de Assis relativo à tradução e achar a saída deste labirinto, o da representação e avaliar o percurso do autor na constituição do pecúlio cultural literário brasileiro.
Sabemos que o escritor começou sua carreira literária pela tradução e foi esboçando uma teoria com relação à mesma durante o seu trajeto. É certo também que aos poucos foi mudando de opinião com relação a essa prática, uma vez que quando analisava textos traduzidos entregues para avaliação seguia uma rígida cartilha que desabonava as traduções mal-feitas, principalmente no tocante ao emprego da língua portuguesa. O que não podemos afirmar com certeza é em que ponto começou a alterar sua posição, porém em busca do tal fio pudemos observar que Machado era rígido apenas quando analisava os textos que lhe eram entregues para avaliação e também quando praticava traduções encomendadas, porque quando as fazia por sua conta «permitia-se algumas liberdades». No início algumas e depois muitas.
Alguns críticos do trabalho machadiano ousam afirmar que essa transformação aconteceu na mesma época em que houve a propagada mudança na sua ficção com Memórias Póstumas de Brás Cubas, e que como tal, também foi motivada pela crise dos quarenta anos ou detonada pelo agravamento de alguma enfermidade, uma vez que um período de grave doença do escritor e o repouso em Friburgo por três meses forneceram à crítica psicológica e biográfica o enredo para a modificação e a geração de um ‘novo’ Machado. A verdade é qualquer alteração no percurso machadiano, ou seja, a instauração do ‘novo’ no seu trajeto é condicionado pelo ‘já existente’ e isso é justificado pela relação, outras vezes citada, do pensamento do autor brasileiro com o Eclesiastes
«O que já foi, isso será. O que já se fez isso se fará; nada de novo debaixo do sol. Uma coisa da qual se diz: «Eis, aqui está uma coisa nova», justamente esta existiu nos séculos que nos precederam.»
(Eclesiastes, cap. 1, v. 9-10)
O certo é que Machado de Assis parece sempre estar consciente de sua mudança com relação aos primeiros escritos, porém reconhece a existência de seus pensamentos, ainda que discretos e acanhados, desde o início.
Para exemplificar tomemos o que diz quando se refere às duas fases de sua obra de ficção numa carta a José Veríssimo:
«O que você chama a minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue a catar nela algumas raízes dos meus arbustos de hoje.» (ASSIS, 1953, p. 145).
E deste modo podemos considerar que aconteceu desta maneira não só com o romance machadiano como também com suas considerações teóricas e críticas, ou seja, para os arbustos de hoje há que se considerar as raízes de ontem. Tudo isso retomamos com a intenção de demonstrar que também com relação à tradução o nosso Machado de Assis começou o percurso aos poucos, traduzindo textos quase que literalmente, para enfim «degluti-los» e devolvê-los com nova feição.
A tradução é muito além de uma forma de multiplicar leitores, é uma escola de invenção e descoberta. Assim sendo, um julgamento da ação tradutória na carreira de Machado de Assis, a partir de uma visão atualizada, destaca-se como um aspecto extraordinário na produção do escritor. Enxergadas, de um ponto de vista limitado até então, as fontes de teorização da tradução em sua carreira literária necessitam de uma ampliação e importância: Machado de Assis formulou e desenvolveu desde 1857 uma teoria da tradução.
Neste momento de questionamentos sobre o «novo momento da tradução» – alargamento do conceito, ampliação de disciplinas a tratá-la de modo especial – é imperiosa a necessidade de uma ‘remexida’ nessa teoria tradutória.
Machado de Assis e o fio de Ariadne
«As idéias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum, e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. a própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião de ladroeira com ladroeira formal.» (Machado de Assis)
Machado sempre deixou claro seus precursores, suas leituras, as quais poderia ter lido no original ou não. Dentre essas leituras, o escritor brasileiro também escolhia os textos que desejava traduzir e recriar.
De acordo com muitos estudiosos a biblioteca machadiana era composta sobretudo por livros de autores românticos e filósofos que lhe deram acesso à cultura estrangeira num contato que viabilizava sua atuação na construção de uma literatura nacional.
Com relação a uma teoria da tradução à luz dos recentes conceitos a ela atribuídos, podemos vislumbrar a ficção machadiana como uma das fontes de teorização tradutória a fim de concluir que ela é uma realização daquilo que pregou enquanto crítico e teórico e que ela esteve presente durante todo o seu percurso enquanto escritor, teórico, crítico e ensaísta.
A crítica literária, ao mencionar os precursores de Machado de Assis, aponta as presenças de Xavier de Maistre, Shakespeare, Moliére, Goethe, Sterne, entre outros, como expressão das «fontes machadianas». No entanto, a citação de suas fontes acentua o mérito do escritor brasileiro e marca um diferencial com relação a seus contemporâneos. Os empréstimos de textos alheios num momento da tentativa de formação de uma nação suscitaram um certo conflito, pois se discutiu até que ponto Machado pode ser considerado um escritor nacional como José de Alencar o foi.
Na atualidade, com a mudança do conceito tradicional aferido à tradução com relação aos estudos das fontes e influências, destaca-se a importância dos estudos da tradução como favorecedores de novas perspectivas teóricas, no momento em que permitem «a abertura ao Outro».
Já no início de sua carreira, no papel de crítico literário, Machado aparece como consciente valorizador da diferença que um segundo texto pode imprimir no original. Consideremos uma declaração sua presente no ensaio – «Instinto de Nacionalidade» datado de 1873.
«O que se deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.»(ASSIS, 1992, p. 804)
Esse sentimento íntimo é responsável por imprimir originalidade e possibilidade ao escritor consciente de gerar diferença em qualquer assunto do qual se aproprie, seja este de qualquer tempo ou lugar, e marcá-lo de modo a torná-lo seu. Notemos que o crítico Machado faz uma antecipação ao ficcionista Machado que colocaria mais tarde em prática o que antes teorizara.
O leitor que se apaixona por um texto e resolve traduzi-lo, pretensamente sem se permitir um envolvimento com ele, ou seja, o tradutor que como Pierre Menard, aparentemente se impõe o impossível sacrifício de sua auto-anulação, parece, na verdade, estar fugindo da carga de sua própria culpa. Afinal, o tradutor é exatamente aquele leitor que se apropria do texto do outro e o reescreve numa outra língua, deixando nele as marcas dessa apropriação e dessa «traição».
Em um trabalho de crítica literária intitulado «Antônio José» e publicado em Relíquias de Casa Velha, Machado reflete sobre o conceito de imitação, declarando que um escritor pode permitir a si
«Ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica.»( ASSIS, 1992. p. 727)
O crítico Machado de Assis, ainda em suas reflexões sobre «imitação», considera o conceito de «cópia» defendendo em seu texto «Idéias sobre o Teatro» de 1859, que
«Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma partícula , é uma das forças mais produtivas com que conta a sociedade.»(ASSIS, 1992. p. 791)
Ao «copiar» um texto escrito no e para o centro do mundo renascentista, Machado «adicionou-lhe» não só uma «partícula», mas muitas. No romance machadiano, texto e contexto se entrelaçam. Copiar, nesses termos, em nada diminui o escritor.
Em uma crônica de A Semana de 28 de julho de 1895, assim sublinha o crítico Machado
«A Revolução Francesa e Otelo estão feitos: nada impede que esta ou aquela cena seja tirada para outras peças, e assim se cometem, literariamente falando, os plágios.»¹
Nesta crônica de «A Semana», Machado deixa claro que tanto a história oficial quanto a história fictícia podem ser «plagiadas» de maneira criativa.
Machado de Assis, sempre tão acusado de esquecer a cor local num momento em que a Literatura Brasileira tendia a «lambuzar-se» nestas tintas, propõe-se a fazer literatura nacional, a partir da literatura ocidental, ou seja, «copiando»-a, traduzindo-a com criatividade.
Machado tem consciência de que os dramas e tragédias do homem universal são os mesmos do homem local. Não podem ser as problematizações humanas facilmente transportadas para qualquer lugar por um autor consciente?
O que difere sensivelmente o texto machadiano do de seus modelos é o peso do tempo e do espaço onde está inserido cada um dos textos. Em seu já comentado ensaio intitulado «Instinto de Nacionalidade», Machado cita Shakespeare e demonstra sua admiração pelo escritor inglês
«Perguntarei simplesmente[...] se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.»( ASSIS,1992, p.803-4)
Nesses termos, Machado defende que um autor consciente deve «alimentar-se» dos assuntos de sua região, mas essa máxima não pode se fazer tão absoluta que impossibilite recriações e empobreça a literatura «nascente». A suas recriações Machado, dá o nome de «plágio». Porém, é preciso atentar para o sentido da palavra «plágio» que assume, aqui, novo significado. Trata-se de um exercício que possibilita à segunda versão, a originalidade da primeira.
É nestes termos que a originalidade de Machado de Assis comparece em nossas letras, numa articulação consciente do processo de criação através do percurso da tradução que o ficcionista Machado de Assis trabalha, confirmando na prática aquilo que pregara enquanto crítico. Nesse sentido, o crítico se antecipa ao romancista.
Em tempos de afirmação de nacionalidade e definição do próprio sistema literário nacional dentro do percurso de uma Literatura Nacional é importante destacarmos a consciência com que Machado de Assis trabalhou a serviço da literatura local utilizando-se da universal.
De todas as declarações de Machado aqui mencionadas podemos deduzir que ele defende, com a consciência de o estar fazendo, a contextualização modificadora de influências literárias, seja através da adição de uma «partícula» ou de um tempero extra com o «molho de sua fábrica».
Com relação ao outro tipo de plágio, que é a apropriação indébita do texto do outro, o próprio Machado de Assis foi acusado desse tipo de ato por um folhetinista do Correio Paulistano: o Sr. Sílvio Sílvis.
Este foi o parecer dado pelo colunista sobre a estréia da peça de Machado de Assis, O Caminho da Porta, em 1864:
«Tivemos um dia 11 gordo a respeito de espetáculo. Foi todo ele novo, novíssimo. Abriu o divertimento a comédia brasileira – Caminho da Porta do Sr. Machado de Assis. A lhes falar a verdade não sei lá o grande mérito que acham nesta composição. O dono dela (dono se dizia dos escritores quando os que roubavam se chamavam ladrões, hoje nem todos os escritores se podem chamar de dono... mas também não se chamam outra coisa) o dono dessa composição possui apenas no Caminho da Porta um estilo elegante e delicado, o mais...»
O nosso Machado sempre se defendeu das acusações de plágio embora nunca tenha demonstrado pretensão de uma originalidade perfeita, no sentido antes dado ao termo, antecipando desta maneira, a noção de que esta é impossível, como hoje sabemos. Com relação ao conceito de autoria, Machado também deixa muito clara sua concepção.
Assim se posiciona Machado de Assis a respeito do julgamento do Sr. Sílvis na Carta à redação da Imprensa Acadêmica datada de 21 de agosto de 1864:
«O que me obriga a tomar a pena é a insinuação de furto literário, que me parece fazer o Sr. Sílvio- Sílvis, censura séria que não pode ser feita sem que se aduzam provas. Que a minha peça tenha uma fisionomia comum a muitas outras do mesmo gênero, e que, sob este ponto de vista, não possa pretender uma originalidade perfeita, isso acredito eu; mas que eu tenha copiado e assinado uma obra alheia, eis o que eu contesto e nego redondamente. Se, por efeito de uma nova confusão, tão deplorável com a outra, o Sr. Sílvio- Sílvis chama furto à circunstância a que aludi acima, fica o dito por não dito, sem que eu agradeça a novidade. Quintino Bocaiúva, com a sua frase culta e elevada, já me havia escrito: « As tuas duas peças, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a própria riqueza do teu estilo». »(ASSIS, 1992, p. 978)
Quando afirmamos que o ficcionista Machado trabalha de acordo com o que determina o crítico Machado transcrevendo para nosso solo através de «plágios» grandes textos da literatura universal, é preciso esclarecer, mais uma vez, que esse trabalho de «plágio» não é uma mera cópia, mas uma cópia transformadora, uma tradução.
O termo «plágio» utilizado pelo Machado em seus textos de crítica literária do século XIX e por alguns de seus críticos, como a americana Helen Caldwell em seu trabalho datado de 1960, já foi renomeado pela atual crítica literária comparatista como «apropriação transformadora», «cópia em diferença» ou mesmo «reescritura» mas sempre conservando a idéia «insidiosa» contida no termo utilizado pelo escritor brasileiro e é agora utilizado nesta tese com o nome de tradução. Como bem coloca o escritor
«A literatura como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de sua vitalidade.»
ou
«Já alguém afirmou que citar a propósito um texto alheio equivale a tê-lo inventado.» (Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1856)
Nesse sentido, argumentaremos que a crença no ‘múltiplo plagiarismo’ aos olhos de Helen Caldwell, crítica norte-americana cujo texto The Brazilian Othello of Machado de Assis (1960) é citado por diversos estudiosos do autor, seria, na realidade, uma contribuição machadiana para a teorização e o exercício do que a contemporaneidade chama de intertextualidade.
Ao rearticular o texto primeiro através do «plágio» transformador, já não se mostra mais o texto matriz com o mesmo, pois esse já foi «perturbado» – para utilizar um termo do crítico Homi Bhabha – pelo poder criador do segundo texto, «produzindo outros espaços de significação subalterna».(BHABHA: 1998. p.228).
Como nos lembra Schneider ( 1990, p. 72) um artífice da palavra, «bem que tem o direito de reutilizar produtos acabados como matéria-prima nova» e o conceito de intertextualidade postulado por Julia Kristeva alivia o escritor dessa situação de compromisso com suas fontes e crise de consciência com relação ao processo de autoria.
«O termo intertextualidade designa esta transposição de um ou vários sistemas de signos num outro, mas já que este termo foi frequentemente entendido no sentido banal de «crítica das fontes» de um texto, preferimos o de «transposição» que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige uma nova articulação da temática existencial, da posição enunciativa e denotativa.» (KRISTEVA, 1974, p. 60).
Novamente lembramos aqui o cultuado Instinto de Nacionalidade de Machado de Assis que, publicado em 1873, antecipa muitas dessas questões porque, segundo ele, « não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam», pois, de acordo com Machado, o que enriqueceria a literatura nacional seria justamente o diálogo com outras culturas. Para ele, «copiar a civilização existente» não estabelecia um impedimento à criação artística, e não enfraquecia a produção local.
Machado de Assis consideraria em Instinto de Nacionalidade e também em A Nova Geração a inclinação exagerada à cor local um equívoco por não deixar enxergar outras possibilidades para o processo de constituição da literatura nacional e, ao mesmo tempo, já revogava a estabelecida relação centro-periferia que poderia restringir a nossa literatura a um espaço circunscrito pela preocupação excessiva com a individualização e o nacionalismo. Desse modo, se aproxima da crítica contemporânea por delinear, no século XIX, uma teoria que propõe o alargamento do horizonte crítico para os intelectuais de sua época.
Assim coloca em A Nova Geração:
«Do que fica dito resulta que há uma inclinação nova nos espíritos, um sentimento diverso no dos primeiros e segundos românticos, mas não há ainda uma feição assaz característica e definitiva do movimento poético. Esta conclusão não chega a ser agravo à nossa mocidade; eu sei que ela não pode por si mesma criar o movimento e caracterizá-lo, mas sim receberá impulso estranho, como aconteceu às gerações precedentes. [...] A atual geração, quaisquer que sejam os seus talentos, não pode esquivar-se às condições do meio; afirmar-se-á pela inspiração pessoal, pela caracterização do produto, mas o influxo externo é que determina a direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente a força necessária à invenção de doutrinas novas.»( ASSIS, 1879, p.809)
Por isso, Machado não repele o «outro», ele o adota carinhosamente certo de que daí há muita contribuição para criação de um pecúlio cultural universal, que possa «assegurar à nossa literatura o direito à universalidade das matérias». (SCHWARZ, 1990, p.09).
Novamente em A Nova Geração podemos vislumbrar o germe da teoria da tradução que afirmamos nesta tese estar embutida em toda a produção intelectual do grande e inclassificável Machado de Assis
«Digo aos moços que a verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição; e que o modo eficaz de mostrar que se possui um processo científico, não é proclamá-lo a todos os instantes, mas aplicá-lo oportunamente. Nisto o melhor exemplo são os luminares da ciência: releiam os moços o seu Spencer e seu Darwin. Fujam também a outro perigo: o espírito de seita, mais próprio das gerações feitas e das instituições petrificadas.» (ASSIS,1992, p.836 ).
Diante disso, pudemos perceber um Machado de Assis sugerindo aos intelectuais brasileiros «que releiam o seu Spencer e o seu Darwin» mas que o façam de modo a evitar a adoção do «já-estabelecido» sem um posicionamento crítico, pois isso em nada contribuiria para a constituição da nacionalidade cultural no Brasil.
A ideia de uma teoria da tradução construída por Machado de Assis aparece também numa crônica de 22 de agosto de 1864, na qual vislumbramos um dos pontos mais debatidos pelos teóricos da tradução na contemporaneidade: se a tradução deixa de ser devedora ao texto original tendo vida própria. Assim coloca Machado:
«Os meus hóspedes são americanos, um da América do Sul, outro da América do Norte; ambos poetas, - cantando um na língua de Camões, outro na de Milton, - e para que, além de talento, houvesse neste momento um elo de união entre ambos, - um criou uma página poética sobre uma lenda do Amazonas, - outro criou outra página poética, traduzindo literal, mas inspiradamente, a página do primeiro. O primeiro é John Greenleaf Whitter, autor de um livro de baladas e poesias, intitulado: In War Time, Em Tempo de Guerra; - livro, onde vem inserta a página poética em questão. Chama-se o segundo, na linguagem simples das musas, - Pedro Luis, poeta fluminense, dotado de uma imaginação ardente e de uma inspiração arrojada e vivaz, autor da magnífica Ode à Polônia [...] A própria tradução parece original, tão naturais, tão fáceis, tão de primeira mão são os seus versos. Não quero privar os entendedores do prazer de compararem as duas produções, os dois originais, deixem-me assim chamá-los.» ( ASSIS, 1994, p100-1).
Ainda com relação à tradução, lembraremos uma crônica de 17 de outubro de 1864, do Diário do Rio de Janeiro, na qual Machado de Assis comenta a publicação de Cantos Fúnebres, de Gonçalves de Magalhães se referindo à tradução da Morte de Sócrates, de Lamartine, deste modo:
«Não li toda a tradução da Morte de Sócrates, nem a comparei ao original; mas as páginas que cheguei a ler pareceram-me dignas do poema de Lamartine. O próprio tradutor declara que empregou imenso cuidado em conservar a frescura original e os toques ligeiros e transparentes do poema. Essa deveria ser, sem dúvida, uma parte da tarefa; para traduzir Lamartine é preciso saber suspirar versos como ele. As poucas páginas que li dizem-me que os esforços do poeta não foram em vão.» (ASSIS, In: JACKSON, v.23, p.192)
O texto «Amour des femmes pour les sots», (1859) de Victor Henaux (Queda que as mulheres têm para os tolos) foi traduzido por Machado de Assis em 1861 e publicado na revista A Marmota, em cinco números sucessivos: 19, 23, 26, 30 de abril e 03 de maio, registra um erro cometido por vários estudiosos de sua obra: o texto em questão foi considerado por muito tempo como original do autor, até que Jean-Michel Massa declarou que se tratava na verdade de uma tradução.
Através da comparação entre o tratado em francês e sua tradução em português é possível avaliar a fidelidade de Machado ao texto original.
Outro exemplo é a tradução feita por Machado de Assis, no Folhetim do jornal Diário do Rio de Janeiro, de 15 de março de 1866 até 29 de julho de 1866, da obra de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar, que apareceu sem a assinatura do tradutor. A ausência do nome não causa espanto no caso dos textos traduzidos nos jornais brasileiros no século XIX porque ressalta a invisibilidade do mesmo.
De acordo com Ledo Ivo a tradução de Os trabalhadores do mar
«Posto diante do gênio torrencial e de imaginação desbragada, que não hesitava diante das mais crispantes ostentações do romanesco, o jovem Machado se permitiu algumas licenças. Como se em sua oficina de tradutor quisesse amortecer as ruidosas antíteses hugoanas. [...] Em Victor Hugo o mar estendia-se completo, minucioso, com as iras e calmarias, habitantes e leis cósmicas. Em Machado de Assis, tudo isso poderia resumir-se, um dia, ao rastilho de uma ressaca: a dos olhos da dissimulada Capitu.» (IVO, 1976: 55).
Ivo observou que Machado de Assis, ao traduzir o texto de Victor Hugo, alterou o tempo da narrativa pela substituição dos verbos utilizados no mais que perfeito no texto «original» pelo pretérito perfeito.
Decerto que a crítica também observa contribuições que a tradução de Os trabalhadores do mar deu ao jovem tradutor. Todas as passagens que denotam «ecos do pessimismo» poderiam ser assinadas pelo romancista maduro de alguns anos mais tarde, como se tivessem influenciado no amadurecimento de nosso escritor, como, por exemplo: « Toda natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras. Podridão é alimentação. Assustadoras limpeza do globo. O homem carnívoro é também coveiro. A nossa vida é feita de morte».(HUGO, Victor, parteIII, l. 4)
A tradução também visita a prosa de ficção machadiana, algumas vezes como fonte de teorização, outras como processo de criação literária. Para exemplificar a postura de Machado de Assis, utilizaremos a «teoria do molho» exposta por Afrânio Coutinho que se baseou nas utilizações metafóricas criadas pelo escritor oitocentista com relação à apropriação de textos alheios.
Esses princípios listados por Coutinho trazem à tona os juízos de valor concebidos por Machado e que vem a ser o segredo de sua genialidade. Coutinho inicia seu ensaio lembrando que o nosso escritor afirmara que
«O discípulo embebe-se na lição do mestre, assimila ao seu espírito o espírito do modelo» (ASSIS, 1992, v.1, p.32)
ou faz confissões como
«tiro de cada coisa uma parte e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo» (idem, p. 32)
em outro lugar declara
«Que a evolução natural das coisas modifique as feições, a parte externa, ninguém jamais o negará; mas há alguma coisa que liga, através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa inalterável, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos». (idem, p. 32)
Para Machado de Assis não importava o material, mas o tratamento dado a ele, assim, jamais usava as contribuições alheias como estavam na origem. De acordo com Mário Casassanta, lembrado por Coutinho
«O certo é que [Machado], apesar de haver pilhado alimento em muito timo e muita manjerona, deu-nos um mel de seu fabrico que não sabe a timo nem a manjerona.» (idem, p.33)
Essa é a teoria do molho que explica o fazer literário machadiano e também sua brasilidade. Além da «teoria do molho» introduz-se ainda, neste percurso, o estudo do texto machadiano através das noções contemporâneas, como as de intertextualidade e plagiotropia para a elaboração do conceito de tradução enquanto citação//reinterpretação/recontextualização no processo criativo machadiano.
É de fácil reconhecimento e apontado freqüentemente pela crítica brasileira o fato de Machado fazer uso sistemático de citações em seus textos, mas não citações simplesmente, e sim, citações truncadas, ou sejam, que não correspondem fielmente aos textos citados. Explicações vieram de toda a parte e de toda a sorte, inclusive de falhas na memória do escritor. O certo é que por meio da citação, o escritor exercita o ato de apropriação e é dessa forma que Machado se mostra como tradutor e elabora uma teoria sobre tradução. Ao apropriar-se de textos de outrem, estabelecia simultaneamente uma teoria sobre o traduzir.
O uso de citação de autores estrangeiros, no original ou em tradução, suplementava o assunto das crônicas, dos contos, dos diversos gêneros literários em que os textos foram produzidos. Depois de percorrer boa parte do seu labirinto, percebemos que diante do paradoxo tradição X inovação, Machado optou por uma solução criadora que, ao mesmo tempo que transformava a tradição, adaptava-a às necessidades culturais e artísticas de seu tempo.
Um dos escritores que mais acompanhou Machado pelos labirintos de suas criações foi o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare. Ele soube recriar com engenho e arte a obra shakespeariana, adaptando-a aos seus propósitos narrativos. Podemos afirmar que Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta e Macbeth representam seus textos prediletos. Citações de falas desses personagens aparecem em suas crônicas, contos, romances. Porém, as referências adquirem uma roupagem machadiana com novos significados: irônicos, galhofeiros, perversos ou satânicos. Machado sempre se valia de citações de Shakespeare, ora para invertê-las, ora para questioná-las.
A crítica norte-americana Helen Caldwell registra a presença de Otelo como argumento de vinte e oito histórias e artigos de Machado de Assis. Segundo ela, sete dos nove romances do autor trazem a marca do ciúme, que é também enredo de outras dez pequenas histórias. Romeu e Julieta serviu de tema para um romance e dois contos. Hamlet é o texto que mais aparece em referência nos textos machadianos.
De acordo com a maioria dos críticos do textos machadianos, a tradução do texto A Queda que as mulheres têm para os tolos produziu o romance Ressurreição, como este é, segundo Helen Caldwell, o «germe» de Dom Casmurro, considerado uma tradução de Otelo. Atentemos para o «mosaico de citações» (KRISTEVA, 1974) que constitui a produção machadiana.
Uma outra prática encontrada no puxar dos fios comparece no conto A Cartomante. Já nas primeiras linhas nos deparamos com a frase célebre da tragédia Hamlet « há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa filosofia».
De acordo com Garcez
«Machado de Assis situa o seu diálogo com a tradição literária européia em vários níveis de sua construção discursiva a começar pelo gênero. A reescritura de Hamlet no Brasil oitocentista se dá a partir de uma transposição de gênero: a um gênero considerado maior como o trágico, Machado contrapõe um gênero moderno como o conto realizando uma travessia considerada pelas instituições convencionais como qualitativa. Essa dessacralização da tragédia e também da própria obra Hamlet estende-se ainda pelo texto através de inversões, de dissonâncias, de deslocamentos que marcam o viés contrapontual sob o qual se apresentam, no conto, as personagens, a linguagem, as marcações sociais e espaciais e aspectos da realidade brasileira.» (GARCEZ, , p. 115-6)
A intertextualidade constatada nesse caso se manifesta pela tradução que destaca a irreverência na apropriação, na desierarquização e mesmo na transcriação do escritor brasileiro que traz para a periferia do oitocentos o texto do dramaturgo inglês. Pode-se sublinhar que o Reino da Dinamarca foi transformado ao chegar ao Rio de Janeiro articulando a identidade nacional através da forma criativa e irreverente. No Brasil, as personagens shakespearianas são travestidas de marcas do cotidiano, chegando bem próximas do popular, misturando aspectos da realidade brasileira com discussões de caráter universal.
Perscrutando mais um pouco o percurso do labirinto machadiano encontramos, no conto Um Homem Célebre, mais uma demonstração das conjecturas do nosso tradutor abordando o tema da impotência criativa do personagem Pestana. Neste conto, Machado acaba por colocar em discussão o tema da imitação e da originalidade. Pestana, o personagem principal, tem um talento admirável para compor polcas que logo caíam no gosto do público que pedia, sempre que tinha oportunidade, que o exímio compositor tocasse uma de suas modinhas. Ao contrário do que se poderia supor, Pestana sempre o faz a contragosto e sem entusiasmo, não por pudores ou modéstia, mas porque se sentia aborrecido e vexado cada vez que precisava relembrar suas composições e certificar-se de que não passavam de imitações. Sempre que chegava em casa, irritado consigo por uma dessas lembranças, metia-se no pijama e sentava-se ao piano para tocar seus compositores preferidos : Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann. No dia seguinte, ao levantar, era tomado de súbito por uma onda de inspiração, corria ao piano e de lá saía, como que fluindo, uma nova composição, a qual era imediatamente levada ao editor e daí para o sucesso era só um átimo de tempo. Logo depois vinha outra decepção, e era sempre assim. Cada vez que imaginava ter criado uma peça musical de qualidade, descobre ser mera imitação.
O ponto alto de sua frustração ocorre quando pensa ter finalmente criado um noturno e, ao executá-lo para a mulher, sem avisar-lhe do que se tratava, ouviu em resposta: «Não é um Chopin?»
Diante da constatação, Pestana
«empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-o em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições.» (ASSIS, 1994, p. 502). (grifo nosso)
Na verdade o contato com os clássicos na noite anterior dava o gás que faltava a inventividade do compositor. O conto de Machado de Assis traz à baila um conceito considerado importante para a criação artística: a originalidade. O compositor Pestana não conseguia lidar com a angústia que a influência que os clássicos exerciam sobre sua atividade criadora e concebia o original como aquilo que nunca tinha sido feito antes. Machado mais uma vez teoriza sobre o processo criativo através de sua ficção.
E, concluindo, não poderíamos deixar de citar mais uma vez Garcez de que esta é
«Mais uma percepção aguda do mestre a que a crítica literária atual deve estar mais atenta se não quiser passar de um extremo a outro: de uma postura eurocêntrica a um fechamento nacionalista da periferia, incapaz de dar conta da verdadeira situação política, econômica e cultural dos países marginalizados pelo centro Estados Unidos-Europa.» ( idem, p. 117)
Considerações finais
Acreditando que a saída de um labirinto se dá virando sempre para a esquerda, puxamos o fio do percurso traçado por Machado de Assis na Literatura Brasileira a fim de desvelar o trabalho tradutório do nosso autor. Verificamos que ele começou sua carreira literária pela tradução e que quando analisava textos traduzidos entregues para avaliação seguia uma rígida cartilha que desabonava as traduções mal-feitas principalmente no tocante ao emprego da língua portuguesa, porém pudemos observar que Machado era rígido apenas quando analisava os textos e quando praticava traduções encomendadas, quando as fazia por sua conta «permitia-se algumas licenças».
De todas as declarações de Machado mencionadas neste artigo podemos deduzir que ele defende, com a consciência de o estar fazendo, a contextualização modificadora de influências literárias, seja através da adição de uma «partícula» ou de um tempero extra com o «molho de sua fábrica».
Pelo que retomamos aqui, conclui-se que, já no século XIX, o crítico Machado antecipou questões com as quais hoje se deparam diversos críticos no estudo da tradução, e nesse momento, que é o da discussão sobre esse fenômeno literário que é a tradução, muito pouco se tem alertado para a lacuna que se instaura nos estudos machadianos pela não discussão da prática tradutória exercida por ele. Ledo Ivo ressalta a falta de interesse dos críticos de Machado por sua «práxis tradutória»
«As atividades de Machado de Assis como tradutor não têm sido esmiuçadas pelos seus críticos e biógrafos, que se agarram ao exemplo da tradução de «O Corvo», de Edgar Allan Poe, contentando-se com esse episódio afortunado e fazendo apenas menções sumárias à parte quase total do ofício. Registra Lúcia Miguel Pereira que ele traduziu, entre 1860 e 1867, nada menos que sete peças teatrais, inclusive O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e o romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Não são, porém, estabelecidos os vínculos entre autor e tradutor, como se não tivesse havido entre ambos qualquer comunicação ou proveito» (IVO, 1976, p. 51).
Raros ensaios são publicados sobre o assunto e apenas Eliane Ferreira (1998) tem um trabalho de maior fôlego sobre o tema e aborda as traduções machadianas para a ribalta. Segundo a estudiosa, Machado de Assis traduziu 48 textos, abrangendo poesia, romance, teatro, ensaio. Principalmente teatro e poesia. Eliane aponta que Machado também opinava sobre as traduções de peças traduzidas como parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro, como veremos em capítulo mais adiante. De acordo com ela, o velho bruxo afirmava que «o tradutor dramático é uma espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha».
Eliane F. C. Ferreira (1998) em seu bem elaborado trabalho comenta:
«Se, num primeiro momento, Machado em seu ensaio « O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura Brasileira» (1858) e a definição que emitiu para o tradutor dramático em «Idéias Sobre Teatro» (1859), se aproxima da posição de que as traduções funcionam como um entrave ao surgimento dos talentos genuinamente nacionais, sua prática contradiz sua postura crítica, já que, ao longo de sua carreira, vai demonstrar que a tradução é um dos elementos formadores da nacionalidade literária brasileira e que propicia seu desenvolvimento intelectual.» (FERREIRA, 1998, p.57) (grifo nosso)°
É preciso dizer mais uma vez que Machado de Assis se preocupava com o transplante de textos sem uma posição crítica da cultura estrangeira que uma tradução não cuidada podia oferecer. Por isso podemos afirmar que sua prática não contradiz sua postura crítica. Machado avaliava as traduções dentro do que postula o sentido tradicional do termo: preocupação com transferência lexical, porém nunca se manifestou contra as aclimatações dos modelos tomados criticamente de outras plagas.
Em Machado de Assis, tanto na prática quanto na postura crítica, todas as informações advindas de diferentes contribuições, depois de emaranhadas, preparam-se para «nova mastigação», numa digestão, da qual não é mais possível apontar o «organismo assimilador» ( a onça) da «matéria assimilada» ( o novilho).
«Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? [...] a onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro melhor: eis o estatuto universal.» (ASSIS, 1992, p. 522).
Em nosso percurso pudemos comprovar as inúmeras alterações no original praticadas pelo irreverente Machado em suas traduções, tornando seu o texto de outro; produzindo originalmente na recepção. E essa não é a discussão mais cara aos assuntos tradutórios na contemporaneidade?
E mais, pudemos comprovar que Machado se aproxima da crítica contemporânea por esboçar, no século XIX, um pensamento que propõe a ampliação do horizonte crítico para os intelectuais de sua época ao não fugir da inevitável dependência. Como vimos
«A atual geração, quaisquer que sejam os seus talentos, não pode esquivar-se às condições do meio; afirmar-se-á pela inspiração pessoal, pela caracterização do produto, mas o influxo externo é que determina a direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente a força necessária à invenção de doutrinas novas.»
(ASSIS, 1879, p. 809).
No caminho, percebemos ainda que a trilha percorrida pelo autor brasileiro nos assuntos da tradução se assemelha ao seu percurso na ficção já identificado e debatido por inúmeros críticos: Machado começa sua tarefa literária como tradutor que se preocupa com as equivalências lexicais e no percurso vai alterando suas concepções até traduzir antropofagicamente: transforma o destemido Otelo, o mouro de Veneza no aburguesado narrador casmurro, empresta a rivalidade dos irmãos bíblicos, Esaú e Jacó, ou dos irmãos persas, Cirus e Ataxerxes, para um prosaica narrativa oitocentista, constrói um narrador à semelhança de Xenofonte e, por fim, esse mesmo narrador comparece em seu último trabalho como que num alter-ego com seu criador, apropriando-se na narrativa do seu memorial da «especiaria alheia», mas sempre temperando-a «com o molho de sua fábrica».
No fim do percurso, podemos vislumbrar um Machado que antecipou questões que hoje norteiam os estudos da tradução, que não acreditam mais numa leitura singular e se propõe a desvendar sempre o texto revelando suas relações intertextuais.
De acordo com Candido
«O amadurecimento promovido por Machado de Assis foi decisivo e cheio de conseqüências futuras, porque ele não apenas consolidou com maestria uma escolha temática, mas se interessou por técnicas narrativas que eram heterodoxas e poderiam ter sido inovadoras (e foram). Além disso, teve consciência crítica da sua posição sem preconceitos provincianos, com se vê no famoso e nunca assaz mencionado artigo «Instinto de Nacionalidade», de 1873.»
(CANDIDO, 2000, p.203)
Sendo assim, longe de encerrarmos de vez a questão, descobrimos agora mais uma faceta inesgotável do Bruxo do Cosme Velho: um tradutor que representa ou reapresenta para nós toda a cultura universal travestida numa nova e irreverente indumentária.