Texto integral
Todas as peças de teatro que escrevi resultaram de convites e de propostas.
In Carlos Reis, Diálogos com José Saramago
Em Saramago, o teatro só é espelho se, na unificação formal das múltiplas imagens que produz,
não deixar de apontar o sentido de um futuro de igualdade e de liberdade.
Miguel Real e Filomena Oliveira, As 7 vidas de José Saramago
Introdução
Publicadas1 entre 1979 e 2005, as cinco peças de teatro de José Saramago seguem as linhas temáticas que atravessam a produção do escritor. A História, a religião, a política e a ideologia inscrevem-se nos enredos dramáticos, permitindo ao autor denunciar inúmeras dissonâncias. A esses vetores estruturantes, soma-se a desconstrução mítica com sentido crítico e renovador, em termos sociais, culturais e políticos. Ao longo das tramas, o escritor denuncia os poderes instituídos durante séculos, sugerindo, através de um olhar crítico e autorreflexivo, uma alternativa à disforia. É possível (entre)ver na escrita dramatúrgica um despertar mais solar para uma população oprimida ou desconsiderada. Irrompe, de facto, nas propostas dramáticas saramaguianas um tempo mais harmonioso que devolve esperança ao homem e à sociedade.
Escritos por encomenda (Serôdio 1997, 33; Zurbach 1999, 151), os textos teatrais costumam ser desvalorizados, ainda que contribuam para a coerência do traçado escritural do autor. Através de um olhar denunciador, José Saramago desmascara os discursos abusivos e reflete sobre o lugar do homem na sociedade, em diferentes tempos e circunstâncias. Propomo-nos analisar A noite (1979), Que farei com este livro? (1980), A segunda vida de Francisco de Assis (1987), In Nomine Dei (1993) e Don Giovanni ou O dissoluto absolvido (2005) à luz destas premissas2, porque o escritor assume a politização da palavra, apelando à consciencialização cívica quer em termos individuais, quer em termos coletivos.
A noite – a (re)escrita da História, resistência e utopia
Em “História, romance, alegoria”, Carlos Reis afirma que “[u]m dos temas estruturantes do pensamento de José Saramago é, evidentemente, a História, a sua interpretação e a sua inscrição literária” (Reis 2022, 11). No campo dramatúrgico, a revisitação da História é, de igual modo, relevante. A primeira peça de Saramago versa sobre a noite da Revolução dos Cravos e o modo como uma redação de um jornal vai acompanhar a mudança de regime político em Portugal (Veloso 2020, 496)3. Trata-se de um drama de teor histórico, em dois atos, vindo a escrita a perspetivar os abalos políticos contra o governo de Marcelo Caetano, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e a censura levada a cabo pelos avaliadores do Exame Prévio na noite da Revolução, momento que coloca fim ao Estado Novo4. Desde logo se verifica o caráter interventivo que se inscreve nesta proposta dramática, através de um cunho realista e crítico na avaliação social e política do momento.
O diretor Máximo Redondo permanece fiel a uma prudência pactuante com o poder instituído. Considera que, face à força dos revoltosos, cabe aos jornalistas dominarem os ânimos e evitarem a agitação política e social. Abílio Valadares, chefe da redação, faz prova de ostentação no cargo que exerce, sendo contrariado não só por Manuel Torres, redator de província, mas também, a título de exemplo, por Jerónimo, chefe da tipografia.
O primeiro ato declina-se nas diferenças entre Valadares e Torres. Numa conversa conflituosa entre ambos, revelar-se-á a face sombria de Abílio Valadares. Manuel Torres sustentará que o abismo entre eles é grande, que a falta de verticalidade do chefe da redação é reprovável, que os subornos ou o consentimento da corrupção denunciam uma postura cúmplice com o sistema. Valadares critica o idealismo do colega e a utopia que deseja ver impressa, em particular a que se inscreve num futuro democrático e livre que permita uma sociedade igualitária, justa e fraterna. Valadares e Torres opõem-se nas suas inclinações políticas e no modo como encaram a profissão. O primeiro resvala para o patético e para o grotesco; o segundo eleva-se na sua condição de homem crítico e ético, revelando-se incansável na busca da “verdade e justiça” (Santana 2008, 142). Numa longa tirada que marca o primeiro ato, Torres questiona a neutralidade e a objetividade do jornalismo, apresentando-se, também, esta proposta dramática como uma reflexão sobre o mundo da comunicação, meio que Saramago conhece bem como cronista-editorialista desde final dos anos 60 nos jornais A Capital, Diário de Lisboa e Diário de Notícias.
Depois da transmissão de “Grândola, vila morena” (Saramago 2014, 65), “a senha de partida dada aos revolucionários de Abril” (Mendonça 1980, 85), Torres vai auscultar os rumores das ruas de Lisboa, trazendo para a redação os clamores do fim da opressão. Dentro do próprio jornal, outras vozes juntam-se à do jornalista. Manuel Torres vai, de certo modo, liderar o processo de dar voz aos subalternos do Diretor e de um Administrador que continua preocupado com os prejuízos para o jornal. Embora Jerónimo e Damião sejam fundamentais na forma como enfrentam os poderios vigentes5, é Torres quem apela a que todos os defensores da liberdade se juntem para firmarem o fim do fascismo em Portugal. De facto, caberá aos profissionais do matutino optarem por uma edição que informe os leitores do rumo da História, contrariando a passividade do jornal e imprimindo, portanto, “linhas novas” (Saramago 2014, 126) que anulem autoritarismos e servilismos.
Que farei com este livro? – tempos disfóricos e resiliência do artista
A peça Que farei com este livro?6 está relacionada com “a problemática da publicação de Os Lusíadas [ao dramatizar] o desinteresse do rei e da corte, a miserável situação material do poeta e de sua mãe, as relações com a Inquisição, o negócio do impressor” (Seixo 1999, 32). O leitor ficará a conhecer a situação geopolítica da época, em particular a que antecede a malfadada viagem para o norte de África, que marca o fim da soberania de Portugal. A ação dramática situa-se, portanto, antes da derrota de Alcácer-Quibir e de Portugal se encaminhar para a semiperifericidade global (Santos 130-136), mais precisamente entre 1570 e 1572.
Luís de Camões, Diogo do Couto e Damião de Góis tentam contrariar as vicissitudes da sociedade reduzida ao poder da igreja, às contendas políticas ou às intrigas da Corte. Mostram-se capazes de superar as disforias ditadas pelos poderios sociais, políticos e religiosos, mas sofrem consequências por criticarem o sistema vigente. A peça de teatro enumera as condicionantes políticas, como a recusa do rei D. Sebastião em contrair matrimónio, o desejo da avó D. Catarina de aproximar Portugal de Castela ou a peste a grassar em Lisboa. Como refere Cândido de Oliveira Martins (2022, 52), este cenário distópico é pouco propício à condição do artista.
É no segundo ato da peça de teatro que a visão crítica dos tempos se acentua. Um ano após o seu regresso da Índia, Camões não conseguira, ainda, dar à estampa Os Lusíadas. O reino enclausura-se, cada vez mais, no conservadorismo e na rigidez ditada pelos poderes instituídos, vindo o primeiro quadro, nomeadamente o diálogo que se estabelece entre Camões, Diogo do Couto e Damião de Góis, a vincar as inúmeras dissonâncias que Portugal atravessa.
Num contexto autoritário imposto pela austeridade régia, Camões precisa de um parecer do Santo Ofício e do financiamento de um mecenas para que o livro seja dado à estampa7. Após um ano e meio de espera, Luís de Camões revelará a Francisca de Aragão que teve licença para imprimir. Contudo, para guardar o privilégio quanto à guarda da propriedade da obra, comprometeu-se com el-rei a “cantar os seus feitos futuros em Marrocos” (Saramago 2019, 161). Trata-se de uma situação que o envergonha, o que leva Francisca de Aragão a propor-lhe os “trinta ou quarenta mil réis” (Saramago 2019, 163) para a feitura do livro, desobrigando-o desse compromisso que o tornaria o escritor do regime.
O recetor da peça Que farei com este livro? depreende que a crítica saramaguiana é transversal a períodos distintos, como sublinha Luiz Francisco Rebello, para quem “a distanciação no tempo funciona como um meio de projectar uma luz reveladora sobre o presente” (Rebello 2019, 9). Apesar de o texto se inscrever no século XVI, por analogia, o escritor reprova, também assim, o sistema ditatorial que silenciou Portugal durante as largas décadas que esteve em vigor no século XX.
A segunda vida de Francisco de Assis – um olhar crítico sobre a mercantilização do mundo
A segunda vida de Francisco de Assis “vai constituir um grau mais na ficcionalização do tempo histórico, passando para a actualidade o prolongamento da acção do santo e transportando-lhe o significado numa metáfora conjunta e lapidar” (Seixo 1999, 33-34). O enredo dramático tem lugar numa “época indefinível” (Saramago 2018a, 22), como refere uma das didascálias do primeiro ato. Contudo, o leitor compreende que a época encenada, através do recurso à paródia, espelha o sistema neoliberal que marca os tempos hipermodernos (Lipovetsky, Charles 2006, 14), vindo a ideologização política que a paródia permite a dar conta do pensamento autoral sobre as disforias do sistema criticado no texto (cf. Brilhante 1988, 124-125).
Nessa transcontextualização própria da paródia (Hutcheon 1989, 48), a peça de teatro dialoga com o fantasioso e com um certo realismo mágico porque “o passado histórico e o presente fundem-se através da quebra da convenção cronológica” (Zurbach 1999, 154), trazendo, para a urdidura do texto, um fantasma. Trata-se de Francisco de Assis que, nesta sua segunda vida, vai encontrar a Ordem que fundara sob o signo da singeleza e da santidade imersa no frenesim do lucro empresarial. A Companhia, transformada numa multinacional com agentes espalhados pelo mundo, dirigida pelo pai e pelo irmão de Francisco, ergue-se na megalomania de um sistema tecnocrata e economicista bem organizado.
A mãe do protagonista, apesar de surpreendida com este inesperado reencontro, uma vez que o julgava morto, explicar-lhe-á o modus operandi da Companhia: “Agora vendemos. Vendemos tudo, até aquilo que poderíamos dar de graça: esperança, fé, caridade.” (Saramago 2018a, 29). O escritor traz Francisco de Assis para a era de uma economia de mercado e do lucro. Este procurará reverter os caminhos distópicos seguidos por Pedro e Elias, repondo uma gramática do sentido da vida. De certa forma, Saramago antecipa algumas das propostas tecidas por Erik Olin Wright em Como ser anticapitalista no século XXI, para quem o anticapitalismo deve ser, por um lado, uma atitude moral que aponte os malefícios e injustiças no mundo em que vivemos, e, por outro lado, uma atitude prática que incentive à construção de uma alternativa.
O segundo ato envereda claramente pela confirmação do funcionamento disfórico do mundo empresarial, quer pela duplicidade e pressão dos dirigentes, quer pelo desdém e desmérito para com os subalternos. Por isso, o texto não descura uma política democrática, assunto particularmente caro a Saramago. Numa eleição que vai ditar o futuro de Francisco na Companhia, a questão do funcionamento democrático, do sistema eleitoral e da abstenção8 será problematizada na posição tomada por Rufino, abstendo-se numa primeira votação para depois mudar o sentido do seu voto e se colocar ao lado do poder representado por Elias. Contudo, ao lado de Francisco, permanecem Leão, Junípero, Pica e Clara.
O segundo ato focará o mundo de Pica, Inês, Jacoba e Clara. Secretárias da Companhia, conhecem o papel comummente atribuído aos subalternos. O papel que as mulheres podem – ou devem – ocupar na contemporaneidade é assim relevado. Francisco acredita na força de cada indivíduo – homem ou mulher –, afastando-se da visão sexista que a cultura e a Igreja promoveram durante largos séculos. Por isso, Pica e Clara vão ocupar um papel fundamental na equação que se redesenha. É no fim do enredo dramático que a desconstrução da imagem de Francisco se opera. Ainda que a História apresente Francisco de Assis como um ser singelo, o enredo dramático dá-lhe outras roupagens. Primeiro, obstinado e até hostil na forma como se apresenta no seu regresso; depois, mudando o seu comportamento. A reformulação identitária inscreve Francisco de Assis no plano da ação. Ao optar pelo nome de nascimento, ele acentua o mecanismo do ímpeto visando, com esta motivação, erguer uma sociedade melhor. O sentido utópico levará o protagonista a conferir um novo rumo ao grupo, optando pelo nome original, mas que deixe entrever um futuro relacional e paritário, mais consentâneo com a alterglobalização; um futuro que não se vincule aos modelos ostensivos, frenéticos e disfóricos, mas que procure conciliar as múltiplas vozes e os diferentes ritmos da mundialização.
In Nomine Dei – religião, intolerância e conflito
In Nomine Dei dramatiza as lutas travadas entre católicos e protestantes, em Münster, no século XVI, em particular as que têm lugar entre maio de 1532 e junho de 15359. Através de uma visão autorreflexiva da história do Ocidente, característica da produção romanesca saramaguiana, como nos recorda Ana Paula Arnaut (1999, 329), In Nomine Dei chama a atenção para os flagelos alicerçados na intolerância religiosa, na repetição do erro social, na anulação da diferença identitária e no gosto desmedido do poder. O escritor, ainda que comummente designado por ateu, sustenta um conhecimento judaico-cristão da contenda que atingiu a Europa do século XVI. A teia de ecos e a matéria cultural que se espraiam no texto revelam uma crítica à religião destrutiva e aniquiladora.
Os sete quadros que compõem o primeiro ato apresentam o conflito religioso, em particular o que se refere ao batismo infantil. Para os católicos, este sacramento segue a tradição cultural e, por isso, as crianças são batizadas na mais tenra idade. Para os anabatistas, as crianças não têm opinião sustentada, devendo receber o sacramento na idade adulta. Podemos ainda verificar outras diferenças apontadas por Rothmann, como a crítica à comunhão com caráter sacrificial, o que levará à problemática da transubstanciação10 e à escolha da língua franca na eucaristia em vez do latim, permitindo a todos os fiéis a compreensão da mensagem cristã.
A prática da intertextualidade (Bakhtine 1970, 5; Genette 1982, 8, 14, 16) desvendada no texto revela a presença de inúmeros coros, nomeadamente o coro dos eclesiásticos, dos católicos, dos luteranos, dos anabatistas, dos radicais ou do coro geral, que acentua o trágico do momento vivido em Münster. Trata-se, pois, de uma tragédia moderna marcada pela crise religiosa e de relações pessoais. Num jogo com a tradição de um género literário que caiu em desuso (Steiner 2006, 4-5), ainda que possa ser renovado, a multiplicidade de coros e a intertextualidade com a tragédia visam interrogar a religião, a construção da cidade como uma contrautopia, o sentido político dos decisores da nova urbe e as perspetivas humanas de quem nela habita.
A chegada a Münster do profeta Jan Matthys renova a esperança dos anabatistas, mas também incentiva a novos ódios. A sua entrada na cidade é acompanhada de fenómenos meteorológicos extremos, numa alusão ao modo apocalíptico que ele vai semear. Com o propósito de fundar uma Nova Jerusalém, surge acompanhado pelo recém-batizado Jan van Leiden, que, por sua vez, é seguido pela primeira mulher, Gertrud von Utrecht. Matthys batizará, de imediato, Rothmann e Knipperdollinck, e o leitor percebe o poder que detém e que não quererá partilhar, não tardando a gerar novos conflitos.
Matthys não ouve os avisos de Gertrud von Utrecht: “Lembra-te que a morte sempre atraiu a morte.” (Saramago 2018c, 77). Num ato irracional, Matthys decide enfrentar os católicos, sendo degolado pelos apoiantes de Waldeck. O livro vai sobretudo expor a hipocrisia de Jan van Leiden, que invoca e deturpa os textos sagrados, levando Matthys a sair de Münster para enfrentar o bispo católico. Trata-se de uma falácia com aproveitamento forjada nas mensagens bíblicas, mas com intenção governativa. Assim, este novo profeta apressa-se a tomar o lugar do seu antecessor, vindo de imediato a fazer prova de autoritarismo, lembrando a atitude de Nabucodonosor11, que também procurou anular a memória e a História ao enveredar por um registo autoritário e totalizante. É, aliás, neste segundo ato que Berndt Knipperdollinck exige que se queimem os livros e se destruam as imagens12. Se, por um lado, revela que o protestantismo não necessita de ícones na demonstração da sua fé, por outro lado, sustenta que os sistemas ditatoriais tendem a atos de loucura contra a cultura e a memória de um povo.
Jan van Leiden começa por abolir o Conselho Municipal, nomeia, de seguida, os Juízes das Tribos de Israel para então os destituir. Através da paródia, da ironia e da carnavalização (Bakhtine 1970, 5), o terceiro ato vai mostrar que, num ambiente sombrio e mórbido ditado pelo conflito, Jan van Leiden usurpará todos os direitos, concentrando o poder em suas mãos.
A guerra altera o número de habitantes em Münster. Por isso, Jan van Leiden instaura a poligamia para reverter a situação. A peça de teatro revela o momento em que a fé e a libido se confundem para melhor servirem os impulsos deste novo rei. Os seus comportamentos sombrios confirmar-se-ão no final do enredo. Qualquer sinal de reprovação é punido e os críticos de Jan van Leiden são executados em praça pública. Trata-se de execuções que roçam o aparato festivo, contribuindo para o efeito carnavalesco que atravessa o texto dramático. O final do livro assenta numa estética barroca. Apesar do ambiente sombrio e da fome, Jan Van Leiden ordena que os súbditos dancem diante do trono do rei. Em clima de folia, ele ditará regras de extermínio para que a escassa população de Münster possa sobreviver, expondo “mulheres, velhos, crianças” (Saramago 2018c, 161) à morte.
A manipulação da linguagem, que se verifica ao longo do texto, é particularmente visível nos cinco quadros que compõem o terceiro ato. Esta situação será ainda prática comum para duas personagens que surgem no final da peça de teatro, com graves consequências neste campo de guerra. Trata-se de Hans van der Langenstraten e Heinrich Gresbeck, que irrompem no cenário qual Deus ex machina. Certos de que a misericórdia de Deus parece ter abandonado a localidade e os seus habitantes, abrem as portas de Münster aos católicos.
Vale a pena destacar o papel que a mulher ocupa no enredo dramático. A mulher foi durante séculos enclausurada numa subalternidade cultural, social e física. Esta proposta dramática parece confirmar uma visão palingenésica expressa em inúmeros romances, como acontece, por exemplo, em Memorial do Convento. Também nesta proposta dramática o escritor sugere que o mundo pode ser refeito a partir de um princípio feminino13. A figura de uma mãe, personagem não nomeada, que quer que o filho seja batizado, anuncia-se sob o signo da ponderação e do raciocínio crítico. Ainda que seduzida por ambas as fações, acaba por concluir que deverá ser ele a procurar, mais tarde, a fé católica ou a fé protestante. Apresenta-se, pois, defensora do livre-arbítrio e da liberdade de expressão que cada indivíduo deve ter em sociedade. Forte e destemida, esta mulher anuncia outras que serão introduzidas na cena do conflito. Assim acontece com Hille Feiken, assim acontecerá, sobretudo, com Gertrud. Ela anula o estereótipo da passividade e da subserviência comummente atribuído ao género, revelando que os males da humanidade foram quase sempre perpetuados por homens, por terem sempre sido as vozes maioritárias e poderosas da história da humanidade.
Don Giovanni ou O dissoluto absolvido – a (des)construção do mito
Don Giovanni ou O dissoluto absolvido14 vai contribuir para desconstruir o mito de Don Juan, com presença notória na Europa desde a versão apresentada por Tirso de Molina, a saber El burlador de Sevilla y el convidado de piedra (1630)15.
Don Juan faz parte dos quatro mitos que enformam o imaginário ocidental, em particular os que se vinculam ao individualismo da época moderna16. A tradição literária inscreve um mito que percorreu séculos e cartografias diferentes sob o signo do engano, da libertinagem e da prepotência, mas oferece renovados matizes, como os que configuram, por exemplo, traços românticos e nostálgicos (Brunel 1988, 487). As reformulações de Don Giovanni possibilitam “a sobrevivência do mito nos tempos modernos” (Sequeira 2009, 204). A proposta de Saramago, por sua vez, permite conhecer uma versão resultante da sua ideologia e da sua postura perante a sociedade.
O escritor dialoga com outras versões, partilhando da observação de que todo o texto é transformação de outro texto (Kristeva 1969, 64). José Saramago retoma o mito e recria a história de Don Juan, apresentando ao leitor uma versão humorístico-sarcástica do eterno sedutor, subvertendo, portanto, parte dos discursos herdados. Constituído por um prólogo e seis cenas, o texto saramaguiano sustenta o polimorfismo de um mito (Rousset 1981, 32; Wunenburger 1994, 49; Walter 2005, 264), em consonância com uma receção mais atual. A proposta de Saramago17 permite aos personagens apresentarem uma renovada conformação cultural, social e identitária, optando o autor pela desconstrução parodística ao dialogar com as (re)criações que os séculos foram fixando. Numa reavaliação crítica própria da paródia (Hutcheon 1991, 20), o leitor/espetador da época hodierna não acredita que todo o homem é um vilão, nem concebe que a mulher possa continuar a ser vista como uma alma inocente. Nessa “transcontextualização irónica” (Hutcheon 1989, 48), o escritor dará uma imagem debilitada do sedutor, revelando sobretudo as atuações femininas.
A peça Don Giovanni ou O dissoluto absolvido vem acompanhada por uma epígrafe provinda de um provérbio: “Nem tudo é o que parece”. A tonalidade proverbial revela o gosto pelo recurso ao excêntrico e ao popular por parte de Saramago. Mas vale sobretudo a pena mostrar como, nesta proposta lúdica e arrojada, Saramago reconfirma o mito sob o signo do desengano e do logro, não só na atitude de Don Juan, mas também na atuação de Dona Elvira e de Dona Ana. A proposta dramática de José Saramago aponta, sobretudo, a malícia das mulheres. O sedutor sustenta que não viola mulheres e que não abusou de Dona Ana. Afirma, ainda, que foi ela a abrir a porta, julgando tratar-se do noivo, “a quem, pelos vistos, costuma receber no seu quarto, a ocultas do pai” (Saramago 2018b, 30). Esta observação irónica e sarcástica vai ao encontro da denúncia da frivolidade de algumas mulheres que se escondem sob a aparência da fragilidade e da inocência. O autor desconstrói sobretudo a imagem “do eterno sedutor” (Rodrigues 1960, 13), parodiada pela estratégia levada a cabo por Dona Elvira e Dona Ana.
Dona Elvira elimina o catálogo onde consta a desonra de inúmeras mulheres, e em jeito carnavalesco (Bakhtine 1970), o protagonista será ridicularizado. Sob o signo da máscara e da paródia, Don Giovanni é escarnecido por duas mulheres que entoam em simultâneo: “nasceste morto entre as pernas” (Saramago 2018b, 78). A peça expõe a transgressão à masculinidade, sublinhando agora a fragilização do protagonista e a sua humanização. Sem provas escritas, Don Giovanni não pode atestar o seu ímpeto vital. O mito do eterno sedutor está, portanto, desconstruído.
Enfraquecido, Don Giovanni fica assim absolvido dos seus impropérios lascivos. As mulheres dão-se a conhecer na versão diabólica. Mas é a mulher, enquanto companheira amorosa e ser racional, que mudará o rumo do enredo dramático. Zerlina é a mulher que aceita Don Giovanni nas suas conformações identitárias dissonantes porque deseja reencontrar-se como mulher, capaz de seguir o amor e pôr cobro a uma relação sem sentido. O escritor revisita o mito de Don Juan para reproblematizar funções que desempenhou no passado, dando a ver uma roupagem diferente, em consonância com novos públicos. O peso da culpa e da dicotomia bem/mal perdeu-se, a frivolidade é alvo de ironia, o desejo estilhaçou-se, o poder das mulheres evidenciou-se, apaga-se a tragicidade (Kalewska 2012, 119, 128).
Conclusão
As cinco peças de Saramago tratam de uma multiplicidade de assuntos sobre a condição humana submetida a um contexto político, social ou cultural ameaçador, paradoxal ou incerto. Contudo, face à dissonância, o escritor inscreve o modo utópico18 que permitirá ao leitor/espetador (entre)ver rasgos luminosos. Em “Tenho um ódio visceral às utopias”, Saramago afirma: “a utopia só é válida se se puder alcançar amanhã, não dentro de cinquenta anos” (in Gómez Aguilera 2021, 494). Contudo, como revela Fernando Gómez Aguilera no seu prefácio “Crónica do escritor na rua”, o reiterado pessimismo do escritor “deve entender-se não como uma claudicação, mas sim como uma energia que põe em questão a ordem convencional, que penetra e faz oscilar a fachada da aparência e o status quo para modificar a perspetiva e incorporar outros ângulos, leituras e protagonistas” (Gómez Aguilera 2021, 19).
A escrita dramatúrgica de José Saramago pode ser « profondément sociale et politique » (Wieviorka 2000, 58), abrindo-se à utopia, porque A noite promove a liberdade e o fim da ditadura e Que farei com este livro? sugere uma atenção redobrada ao campo cultural e patrimonial. Por sua vez, A segunda vida de Francisco de Assis propõe uma fraternidade mais coesa e empática, ao defender uma comunidade menos movida pela cultura capitalista e pelo sistema neoliberal. Se corroborarmos as palavras de Éric Aunoble, para quem “les utopies sont malgré tout un moteur d’histoire” (2000, 10), ainda que a distopia se inscreva em In Nomine Dei, a visão crítica e reflexiva das dissonâncias e das violências religiosas imprime o modo utópico na produção do autor. Na proposta dramática mais lúdica, a saber, Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, uma nova antropoética inscreve uma atuação diferente, permitindo configurações sociais e culturais mais consentâneas com a modernidade.
As dissonâncias podem ser superadas. Os textos teatrais reconfiguram-se, portanto, em modo utópico. Nesta vertente crítica e prospectiva, a escrita dramatúrgica de José Saramago envereda contra o fascismo (A noite), a indiferença (Que farei com este livro?), o mundo contabilístico e lucrativo (A segunda vida de Francisco de Assis), a intolerância religiosa (In Nomine Dei) e os valores instituídos (Don Giovanni ou O dissoluto absolvido).