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Fiction

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MAÍRA CRESCERA EM ARAÇATUBA, para onde a família havia se mudado quanto ela nem tinha dois anos. Nascera mesmo em Santo Antônio de Aracanguá, que demora cerca de quarenta quilômetros até Araçatuba. Era a primogênita das três filhas de um livreiro mais ou menos bem sucedido e de uma professora primária do ensino público. Seu pai morrera quando ela mal chegara na puberdade. Fora vítima de um acidente de carro em uma de suas idas semanais à capital.

Acontecera à sua mãe uma das coisas que ela mais temia: enterrar o marido. Por mais insólito que possa parecer, de um tempo para cá chegara mesmo a programar como haveria ele de continuar vivendo, depois que ela esticasse as canelas. Indicara, mesmo, uma lista de mulheres que, garantia, seriam as candidatas mais indicadas para que ele voltasse a se casar. Também seria bom para as meninas.

- Deixa de besteira, mulher, vomitava o marido. Será que mesmo depois de morta você quer continuar me controlando? Essa sua baboseira me entra por um ouvido e sai pelo outro. Seus prognósticos não deram certo. Seus planos foram de água abaixo.

Contra o irremediável não há remédio que possa dar jeito. Ela não poderia se livrar do fardo de sozinha, dali para a frente, cuidar da livraria e de dar morada, roupa lavada e engomada, comida e educação às filhas comuns. Era demais para ela.

Se enquanto o marido era vivo já era desconfiada e irritadiça, agora foi que ficou mais esquiva e de pavio a cada vez mais curto. E quanto mais o tempo passava mais se tornava intolerante. Qualquer discordância tomava por afronta pessoal e tudo reprovava e reprovava todos. Seria difícil dizer se odiava mais o mundo ou si mesma.

As meninas sofriam o diabo nas unhas dela. Principalmente Maíra. A primeira a adolescer, também fora a primeira a levar a mãe a novamente se defrontar com outra vontade dentro de casa. Além do mais, como ela mesma dizia, cheia de direitos e avessa às obrigações. Não tinha dúvidas de que o que Maíra queria com esta liberdade mínima para ir e vir era mesmo ficar solta de pés e mãos. Esquecia-se de que, enquanto fosse sustentada por ela, devia-lhe obediência irrestrita. Iniciou-se um conflito que não dava sinais de quando poderia ao menos arrefecer.

A coisa azedou de vez quando Manuela, a filha do meio, apareceu grávida. Não se sabia ao certo de quem. Ainda tinha quinze anos. A mãe se descabelara. A única solução seria o aborto. Mas era medida extrema contra o que resistia. A menina nem tanto nem tampouco.

Para completar a mãe também começara a sentir os efeitos de uma improvável gravidez. Não sabia como isso poderia estar acontecendo. Tinha a certeza de que, desde que o marido morrera, não se deitara com um único homem sequer. Só se fosse uma prenhez por obra e desgraça de alguma entidade irreverente. A verdade, contudo, é que vieram os enjoos matinais, as regras desapareceram, o ventre e os seios cresceram a olhos vistos e ela ganhou peso que pelos seus apetites não era para ganhar. Houve dias em que chegou a sentir as pesadas do feto acomodando-se dentro da barriga.

Naquela idade e na sua condição de viúva tinha até vergonha de procurar um médico. Entretanto, foi o que terminou fazendo. Procurou uma prima que nem obstetra era. Sendo, porém, médica, geralista e parenta, teria menos constrangimento em consultá-la. Fosse o caso de que comprovada a gravidez, aí sim: ela lhe indicaria um especialista.

Não foi assim que aconteceu, porém. Depois de demorada investigação clínica, de diversos exames laboratoriais e de uma ultrassonografia abdominal, a conclusão foi a de que o útero não estava abrigando nenhum inquilino. Tratava-se de uma gravidez psicológica, tratada nos compêndios especializados com um nome bonito que ela não conseguira memorizar.

- É pseudociese, mamãe, dissera Maíra para um novo amuo da mãe.

- Lá vem a sabichã. Já que você tem resposta para tudo me diga por que é que a minha barriga cresceu tanto?

Maíra entendeu o recado e saíu pela tangente. Sugeriu que ela perguntasse à médica. Ninguém melhor para melhor explicar.

- Só posso pensar em gases intestinais em demasia, dissera a prima clínica geral. Vou lhe passar um remedinho à base de simeticona e ligeirinho você vai se sentir melhor. Vai acabar essa sensação de estufamento e o ventre vai se retrair.

- Será que faz mal tomar um chá de raiz de “agenciana”.

- De jeito nenhum. Chá de genciana, de dente-de-leão, de erva-cidreira etcetera e tal. Só vai ajudar. Mas também é bom tomar água de coco e comer abacaxi e mamão. Se for o caso, fazer massagens no abdômen.

Foi a conta... Uma semana mais tarde e adeus gestação fabulizada: os engulhos matinais sumiram e a barriga e os peitos voltaram aos volumes de antes. Mais um pouco e as regras recomeçaram, embora não fossem mais durar por muito tempo, dado que a idade já lhe profetizava a menopausa iminente. Só nunca mais se livrou foi da alcunha jocosa de Mãe do vento, decretada por uma vizinha indiscreta. Nem das gargalhadas quando eram lembrados os seus peidos estrondosos. Às vezes eram mesmo despejados em rajadas que lembravam o cantar de uma metralhadora. Chegavam a durar percursos inteiros, desde que ela partia da sala de visita e até que chegava ao meio da cozinha.

Ela não tolerava tais gozações. Ao seu ver vinham sempre prontas para ridicularizá-la. Daí por que reagia com agastamento. Levantava-se num susto, se estivesse sentada, e se sumia a dar as costas para as gaitadas. Nem se dava conta de que a escapulida só assanhava a mangação.

Chegou a ficar deprimida. Ir a uma psicóloga seria de bom tamanho. Mas não deu em nada. Continuava sem disposição para coisa alguma, o tempo todo matutando sobre o papel de besta que havia encenado. Só tinha ânimo, mesmo, era para se arreliar e partir como um cão raivoso, fosse diante da mais grave ou da mais irrelevante ação ou omissão. Bastava que a viesse fazer inventar uma caçoada, ainda que sem razão de ser.

Rabugice que mais pegou fogo quando o neto acabou nascendo. E ainda mais quando ela se deu conta do que disse mancha arroxeada no alto de cada uma das nádegas da criança, puxando para o alto em que se desmancha o rego da bunda.

- Só faltava essa!, deixou falar o preconceito a que catequizada desde pequena. Um neto que vai crescer bastardo e além do mais acaboclado.

Foi por aqueles dias que, não já sobejasse o abuso que a consumia, achou Maíra de recolher uma ninhada de gatos, pelo menos aparentemente órfãos. Ela os encontrara empilhados debaixo de um banco, na Praça Avenida Brasília. Era um por cima do outro num esforço extremo de autoproteção. Teve tanto dó que arranjou uma caixa, meteu dentro dela os filhotes desamparados e os levou para casa.

Tolamente imaginou que poderia escondê-los. Esqueceu que os inevitáveis miados dos bichanos haveriam de denunciar-lhes as presenças. E mais que os sapecas, cedo ou tarde, não se contentariam em ficar reclusos no abrigo improvisado.

Não foi preciso mais do que a primeira noite para que o segredo fosse desmontado. Quando a mãe soube virou bicho. Tinha horror a qualquer tipo de animal. Principalmente gatos.

- Gato é um animal traiçoeiro, pregava ela. Não gosta de ninguém. O apego dele é somente com a casa. É interesseiro. Ele sabe que lá tem água e comida. O resto é resto.

Maíra encolheu-se.

- Além do mais eu sou alérgica e não vou viver doente por causa de merda de pelo de gato.

Ninguém podia ignorar tal aversão desgovernada. Ninguém mesmo. Qualquer um, por menos tempo que a conhecesse, certamente já a ouvira bradar:

- Se eu estiver dirigindo e um nojento desse passar na frente, nem espere que não vou brecar. Eu vou é acelerar. Ele que se dane!

Mas voltando a Maíra, gemeu ela um derradeiro apelo:

- Os coitadinhos vão morrer de fome, mãe. Quando eles estiverem maiores a gente vai dando. Garanto que não vai faltar quem queira.

- Nem invente, fechou o tempo a mãe. Se amanhã eles ainda amanhecerem por aqui eu garanto que resolvo do meu modo. E vai ser muito pior.

Os olhos de Maíra ensoparam-se de lágrimas. A irmã do meio apertou o bastardo acaboclado contra os peitos. Ela não tem pena nem do neto, quanto mais de gato!. A irmã menor por pouco não arrancou todos os fios da cabeça. Mas não havia acordo. Ou as meninas davam um destino aos bichanos ou a mãe iria dar-lhes fim de um jeito ou de outro.

Soube-se, dois dias depois, que a mãe os afogara em uma providencial bacia de alumínio. Ela o fizera com as próprias mãos. Matara um por um, sem uma única expressão de dó e sem qualquer probabilidade aparente de arrependimento. Quer dizer: salvou-se o menor de todos e por alguma razão o mais assanhado. Era todo coberto por uma pelagem negra, exceto por uma mancha branca que lhe fazia um losango irregular no teto da cabeça, entre uma orelha e outra. Salvo pelo gongo, como se costuma dizer. E mesmo assim por obra e graça de Enedina, a lavadeira, que em boa hora o encafuara em uma sacola e sumira com ele no oco do mundo.

Quando as coisas mais ou menos se acalmaram Enedina trouxe-o de volta. Maíra o batizou como Arquibaldo, lembrando do coronel que sobrevivera ao naufrágio do Titanic. Levou-o, então, para a casa da avó paterna, onde acreditou que ele poderia sobreviver.

Enganou-se. A mãe deu um jeito de sequestrá-lo e de também afogá-lo. Depois, assim como fez com os outros, mandou que lhe atirassem o corpo teso no lixão.

Maíra ficou inconsolável mas não deu o braço a torcer. Achou melhor fazer de conta que não sabia do acontecido. Arrumou as trouxas e se mudou para a casa da outra avó. Só saiu de lá, mesmo assim voltando a cada período de férias, quando passou no vestibular e foi estudar História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Ao retornar de vez a Araçatuba já veio amigada com um radialista chamado Romero. Conheciam-se desde meninos e foram colegas de classe na faculdade. Ela agora dava aulas no curso de licenciatura em História da unidade local da Universidade Paulista. Ele tinha um programa de música sertaneja na Rádio Nativa FM.

Ao menos por uma parte Maíra seguira as pisadas do pai.

Por anos e anos ele fora dono da mais bem sortida livraria de Araçatuba. Ele aprendera a viver mergulhado nas letras. Em casa, o cubículo que dizia sua biblioteca andava abarrotado de livros.

- Onde já se viu uma coisa dessa, bramava a mulher. Não há nem mesmo lugar para se guardar uma agulha. Você precisa dar um jeito é de vender mais e comprar menos livros.

Chegou a jurar que mais cedo ou mais tarde daria fim naquele depósito de poeira e pasto de traças. O que, aos olhos do marido, só podia ser devido a um estouvamento patológico.

- Eita mundo velho sem porteiras!, resmungou o marido. Eu só trago os livros que tenho vontade de ler. Se leio por inteiro ou não leio, se nem nunca vou abrir, é outra história. Veja Shakespeare, por exemplo. Eu tenho as obras completas e só terminei de ler umas quatro ou cinco peças. Mas quando me dá vontade ou preciso conferir uma citação, os livros estão lá, sempre à mão. Não sou como a gente da sua terra que compra livro por metro. Ler não interessa. O que importa é encher as prateleiras. Principalmente livros grossos e com capas vistosas. O que interessa é fazer de conta que é letrado. Só pose!

Mas a verdade é que não era mesmo comum um tão grande acervo bibliográfico como aquele que acumulara nas estantes desarrumadas e empoadas do seu estúdio. Era lá, contudo, onde se homiziava quando estava em casa e carecia livrar-se das arengas, das cobranças, da cara feia e dos estremeliques da mulher. Era lá que podia finalmente espairecer um pouco.

Lia de tudo: poesia, ficção, teatro, crítica literária, história do Brasil e universal, filosofia, economia, psicologia, física quântica, espiritismo e o mais que lhe chegasse às mãos. Eram as memórias e as biografias, entretanto, que mais do que tudo o fascinavam. Bem a propósito, nunca se ausentara do tampo do seu birô um exemplar de Fragments d’un journal intime, que reunia trechos do Diário escrito por Henry-Frédéric Amiel.

- Este livro é uma relíquia, confidenciou certa vez a Maíra. Foi publicado em Genebra, no ano de 1908, por Georg & Cº Libraires – Editeurs. Tem até um estudo introdutório assinado por Edmond Scherer. É raro. Pelo menos por aqui.

A mulher e as filhas, salvo Maíra, ficavam a ouvi-lo. As palavras lhes entravam por um lado e vazavam pelo outro. Que ele ficasse tranquilo. Ninguém ali tinha a menor intenção de meter as mãos nas coisas dele. Um monte de velharia! Grande merda!

Fora com seu pai que Maíra alargara o seu conhecimento do francês, já que na escola mal aprendera algumas palavras e essa ou aquela regra de gramática. Fora ele quem lhe pusera nas mãos alguns livros miúdos da coleção Lire en français facile, publicada pela Hachette. E foi assim que, pelo que se lembrava, conhecera Les trois mosquetaires, Le tour du monde en 80 jours, Les misérables e um monte de clássicos.

Já depois da morte do pai foi que Maíra criou coragem, entrou no estúdio e recolheu a coletânea de fragmentos do Diário Íntimo de Amiel. Fora encontrar o volume jogado em uma gaveta da já devastada biblioteca. Quando pouco um milagre, depois da limpa que fez a viúva e da fogueira que armara no meio do quintal. Reparou na mancha escura que o suor de mãos imprimira na lombada e nas partes contíguas da primeira e da quarta capas. Ignorou o Avertissement que os editores dataram de outubro de 1882, percorreu aos saltos o longo texto de Edmond Scherer e, finalmente, topou nas confissões do pensador genebrino: Berlin, 16 juillet 1848.

Mal começou a lê-lo e logo acreditou estar justificado o apego do pai por aquela obra: ideias alinhavadas com uma clareza cortante, rigor na pormenorização das circunstâncias dos fatos narrados, esclarecidos questionamentos quanto ao sentido da existência, severo juízo de si mesmo. Sublinhou: Mets-toi d’accord avec toi-même (...) et laisse guider ton existence aux puissances générales contre lesquelles tu ne peux rien. – Si la mort te laisse du temps, tant mieux. Si elle t’emporte, tant mieux encore. Si elle te tue à demi, tant mieux toujours, elle te ferme la carrière du succès pour ouvrir celle de l’heroïsme, de la resignation et de la grandeur morale. Toute vie a sa grandeur...

Sentiu-se tentada a removê-lo para a sua mesa de cabeceira. Haveria de ajudá-la a pregar o sono, já que vivia perseguida por uma perturbante insônia. Enquanto isso conheceria um clássico e alargaria a sua visão de mundo. Logo se deu conta, porém, de um outro volume que estava por lá: Os dez dias que abalaram o mundo, de John Silas Reed. Seu pai havia lhe falado sobre aquele repórter idealista, aventureiro e ativista. Teria morrido antes mesmo de completar trinta e dois anos, destruído pelo tifo. Apesar de ser americano de Portland, contudo, fora sepultado no Kremlin, em Moscou, com honras de herói.

Deixou Amiel para depois. O tipo de relato de Reed a seduzia pelo tom aventureiro. Conhecer a história é conhecer e por vezes desvendar o mistério das conquistas civilizatórias e do paradoxal embrutecimento da humanidade. Quando leu México Rebelde procurou decifrar as razões da insurgência que fizera ferver o México nos começos do Século XX. Agora era a vez de tentar entender um pouco a Revolução Russa de 1917, seus propósitos, seus avanços, seus heróis e seus vilões. Mas também já preparar terreno para explicar o desmantelamento que veio depois.

Ademais, ajudaria a botar para mais à frente o se dar definitivamente conta de que o pai se encantara para sempre. Ele lhe fazia tanta falta que era como se a sua ausência se solidificara e a esmagasse. Sentia-se abandonada. Com o fim dele ruinou o bastião de que sempre se socorria, a cada vez que torturada pela mãe. Só ele valorizava o seu gosto pelas leituras, pelos estudos e pelo magistério. Só com ele conseguia trocar ideias. Teria, de agora por diante, de vencer sozinha a resistência materna contra o sonho de tornar-se professora, de escrever, de crescer por dentro.

- Ou você muda a sua cabecinha de vento ou um dia vai se arrepender quando não tiver mais jeito, berrava a mãe com a absurda onisciência dos intolerantes. Ser professora! Grande coisa! Veja o meu exemplo. O que foi que eu fiz a vida inteira? Nada. O que ganhei foi a merreca de uma aposentadoria que não dá nem para os meus alfinetes. Abra o olho. Eu é que não vou dar força para alimentar uma idiotice dessa.

Quando fora de férias a Maceió levara a intenção de aproveitar e fazer algumas pesquisas sobre Zumbi dos Palmares. Sabia que contavam que ele havia sido o último comandante do Quilombo dos Palmares, cujo arraial principal estava na Serra da Barriga. Vencido, preso e morto pelas tropas de Domingos Jorge Velho, fora degolado e tivera a cabeça levada para uma sinistra mostra no Recife.

Antes, porém, ao menos pelo que dizem alguns relatos, arrancaram o pênis do finado e o enfiaram na sua boca. Nem isso, porém, conseguira dissipar a aura messiânica com que conviveu e com que a história se encarregaria de condecorá-lo. Passara a ser louvado como herói, sendo o dia da sua morte, hoje, lembrado como Dia da Consciência Negra.

Não era intenção de Maíra perseguir a demolição do mito. De que serviria à História do Brasil? De que lhe valeria? Projetava, isso sim, era desvestir Zumbi dos adereços trazidos pela lenda, para finalmente revelar o homem verdadeiro e a sua história real. Se tal desnudamento devolveria a sua memória ao mundo dos homens comuns ou até dos farsantes ou dos tiranos, ela não tinha nada com isso! Queria a verdade e não descansaria enquanto não a dessepultasse e a espalhasse aos quatro ventos.

É que ela teria colhidos indícios, ao seu ver relevantes, de que ele, para assumir o poder, teria sido o autor, o mandante ou quando pouco cúmplice no assassinato do seu tio Ganga Zumba. Além do mais teria governado com mão de ferro. Finalmente, o que lhe parecia mais gritante, a notícia de que existiam escravos negros dentro dos vastos domínios do Quilombo.

Mais ou menos fizera Zumbi o que fora prática da Rainha Nzinga: ele nas terras da Colônia; ela nas lonjuras do continente africano. Com a diferença de que ela, além de manter escravos tão negros quanto ela, ainda os vendia aos portugueses. Quando tinha tempo para isso, digamos, no meio de tantos quefazeres: orgias com mancebos que exigia estivessem vestidos com trajes femininos; sacrifícios humanos; festivais antropofágicos.

Já tão distantes os fatos e há séculos e séculos construída a história oficial, Maíra tinha consciência da dificuldade de desenterrar a verdade. Mas se animava com o fato de que outras fantasias, sobre o mesmo personagem, já haviam sido arruinadas. Cultivara-se durante muito tempo, por exemplo, a versão de que Zumbi não só aguerridamente resistira à prisão, como terminara se suicidando, saltando do alto de um penhasco. Hoje, contudo, já fora isso definitivamente apagado. Descobriu-se um documento que comprovaria que D. Pedro II de Portugal, conhecido como Rei Pacífico, premiara com cinquenta mil reis o capitão Furtado de Mendonça. E o fez, justamente, por haver morto e cortado a cabeça do negro dos Palmares do Zumbi.

Outras evidências poderiam ser encontradas. Mereceria Zumbi, realmente, a mística com que fora canonizado, antes e depois de extinto? Fora ele, de fato, o percursor altruístico da extinção da escravatura? Estaria com ele o propósito de despertar o negro vilmente cativo para a consciência da sua humanidade? Ou seria um paladino de faz de conta? A imortalidade que lhe proclamaram os contemporâneos desfez-se com o inevitável? A nação independente que teria projetado inaugurar, cá na América do Sul, composta e governada por uma cidadania negra, derreteu-se e afinal se derramou com o sangue jorrado pelas feridas abertas em brancos e negros, em africanos, portugueses e descendentes?

A sua aspiração era decifrá-lo e revelá-lo. Entendia, por exemplo, que se devia à quase deificação do lendário Zumbi o obscurecimento que sobreviera ao papel de Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Homem de carne e osso e poeta negro que, tendo sido escravo, erguera a bandeira da libertação dos cativos. Até recebera, em sua época, a titulatura de Apóstolo negro da abolição. Entretanto, por onde agora andava a sua memória?

O projeto de pesquisa de Maíra, contudo, terminou por ir de água abaixo. Pelo menos por enquanto. Conhecer o francês Jean-Loup fê-la desligar-se daquela meta acadêmica, talvez pedante, excluindo-a das suas prioridades. Ainda mais quando estava em gozo de férias. Não via sentido em jogar fora o que quer que pudesse vir de melhor daquele fascínio que a pegara de surpresa. E pelo visto era correspondido.

Depois, o acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas estava lá e não iria desaparecer de uma hora para a outra. Se bem que soubesse que as artes e a memória histórica são por aqui pouco reverenciadas. Pode haver dinheiro para tudo. Para o incentivo à cultura, contudo, só sobram migalhas. O que para muitos é compreensível: Cultura não dá votos.

Para Maíra, dadas as circunstâncias, melhor um pássaro na mão do que dois voando. Cada coisa a seu tempo. Agora tinha Jean-Loup. Não podia saber se o teria amanhã. Os documentos que pretendia cascavilhar, entretanto, lá estavam e lá permaneceriam. Seria até um pretexto para outra viagem a Maceió.

Só não levou em conta que essa nova viagem poderia não vir nunca a acontecer ou pelo menos nem tão cedo. Azar!

Para citar este artigo

Referência Eletrônica

Carlos Méro, « Maíra », Reflexos [Online], 3 | 2016, Online desde 19 mai 2022, Acessado em 07 décembre 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/870

Autor

Carlos Méro

Président de l’Académie de Lettres d’Alagoas

carlos@carlosmero.com

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