Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça.
Mia Couto, A confissão da leoa
O “grão” é o corpo na voz que canta, na mão que escreve, no membro que executa.
Roland Barthes, O grão da voz
Se tomamos a palavra política em seus sentidos genéricos definidos em dicionários, encontraremos sempre sua concepção relacionada à polis, à cidade-estado. Ciência ou arte de administrar a cidade-estado, a política tem sido compreendida como parte da natureza humana, na relação estabelecida entre interesses difusos que, via de regra, leva os homens a disputarem violentamente. E por que disputam? Uma das respostas mais rápidas e levianas pode ser dada sem prejuízo dessa motivação: disputam o poder, este também tecido em redes complexas e móveis que suprimem, em geral, a possibilidade do diálogo e da paz.
Se tomamos a literatura na sua acepção mais rotineira, encontramos a sua vocação cultural para a instauração de novas realidades, o que por si só define o seu caráter demiúrgico, a de estabelecer mundos imaginados que, por mais absurdos que sejam, sempre estão plugados na vida e na experiência dos homens. Exercício de linguagem, a literatura é, assim, subversiva pela sua própria natureza.
Tendo em conta essas duas considerações iniciais, podemos afirmar que toda a literatura é política, pois que trata da relação entre seres humanos, por meio do improvável e contraditório “ser inventado”. Mas há romancistas, dramaturgos, poetas que levam à máxima significação o sentido da palavra “política”. Entre estes está José Craveirinha, o poeta moçambicano, para quem a poesia era, como queria Mário Quintana, “a eterna Tomada da Bastilha”.
A literatura moçambicana contemporânea dificilmente poderia ser abordada sem a lembrança marcante de poetas como Rui Knopfli, Noémia de Sousa, Rui Nogar e, para saltar para o presente, Eduardo White que a poesia perdeu neste ano de 2014. Todos eles, poetas que contribuíram para a invenção de Moçambique. Mas José Craveirinha (1922-2003) ocupa um espaço especial no contexto da literatura moçambicana. Os temas desenvolvidos na sua poética estão intimamente imbuídos de experiências políticas do país e do seu envolvimento nos momentos de transformações decisivas do processo colonial, bem como as lutas pela independência e mesmo, as guerras pós-coloniais. Desse modo, o estudo da poesia de José Craveirinha requer um entendimento, nem que seja mínimo, da história de Moçambique pois, de modo diferente, a leitura de sua poesia pode resultar parcial. Se cada poeta cria a partir de sua presença no seu mundo e dos cidadãos de seu tempo, José Craveirinha confirma a experiência como um motivo da construção literária. Nesse sentido, Ana Mafalda Leite afirma que
a sua atividade enquanto poeta, assim como a da maioria dos poetas e artistas de Moçambique, estava condicionada ao silêncio imposto e à ameaça da polícia política. José Craveirinha enforma por esse motivo, com Rui Nogar, Malangatana Valente, Luís Bernardo Honwana e Orlando Mendes, aquela que poderemos designar por geração do silêncio (1991, p.21).
E é dentro desse tempo de silenciamento e de repressão que Craveirinha publica Xigubo, em 1958. Muitos países da África viviam a eferverência dos movimentos de libertação nacional como é o caso de Angola e Moçambique, considerando-se que em 1959, mediante uma guerra sangrenta, a Argélia conquista a sua independência fortalecendo de modo incisivo as lutas dos demais países africanos contra o colonialismo:
As independências do período que vai de aproximadamente 1962 a 1975 foram resultados da luta armada. As guerras contra as forças metropolitanas, a luta armada, é que dominaram a cena, não mais as negociações. Anteriormente a este período, a única independência alcançada por via das armas tinha sido a da Argélia (LOPES & ARNAUT, 2005, p.81).
Se o tempo era repressivo contra qualquer manifestação de sonho e de liberdade, José Craveirinha faz da poesia um lugar de construção de utopias, dando voz a desejos reprimidos de moçambicanos e de africanos de modo geral. A palavra “Xigubo” significa “grito de guerra” e aparece como uma espécie de manifesto em que a linguagem coloca em cena um mundo africano desconfigurado pela ocupação colonial e que precisa recuperar valores e referências da ancestralidade para construir a nação.
Francisco Noa, discutindo a literatura colonial, demarca conceitualmente muito bem a noção do que ele chama de “espaço-nação”. Afirma o estudioso, numa perspectiva cultural, o que motiva sua reflexão é que
a ideia de nação tem um valor estruturante, pois, longe de ser um dado apriorístico, é sempre o efeito de uma elaboração imaginativa, de uma mitificação, enfim, de uma ficcionalização, mas que mantém uma relação dialéctica e metonímica com as tradições, a raça, a língua, os costumes, o contexto epocal e geográfico, etc. (2002, p.211-2)
A poesia é entendida em Xigubo como palavra para ser pronunciada em voz alta, não na intimidade, mas na força coletiva da expressão de sonhos e desejos. O movimento da linguagem é o movimento da dança em que, reunidos, num ritual ancestral, os homens encontrariam o diálogo entre o passado e o presente, e poderiam construir a harmonia do devir. A utopia cristaliza-se como força propulsora da poesia que encontra na linguagem viril do poeta a energia coletiva necessária para promover a transformação daquela realidade de Moçambique acerca de uma década o que viria a ocorrer no futuro. Assim, a poesia é o lugar da liberdade e se torna, por excelência, o terreno da subversão do silêncio do que os africanos eram vítimas, incorporando gestos, sons, cantos, num diapasão entre as formas. Abdala Junior, ao discutir a poesia nos ritmos africanos afirma que
Os novos cantos africanos seguiam as perspectivas rítmicas de cada um de seus países. Expressavam as suas vozes por sobre as formas de alienação metropolitanas. Eram gritos denunciadores do inconformismo de escritores pertencentes aos setores intelectuais e que procuravam uma identidade nacional no referente sociocultural do país (2007, p. 254).
José Craveirinha instaura sua via política por meio desse procedimento, como um teatro, uma representação de elementos do terroir, buscando a reconstituição necessária de uma plataforma cultural comum à memória e ao imaginário do povo, ao modo dos inventores do Modernismo brasileiro na década de 20.
Para seguir o ritmo dessa representação, faz-se necessário “falar” o poema, ao modo de uma evocação, em voz alta, com a voz e o corpo:
XIGUBO
(Para Claude Couffon)
Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!
Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã Lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.
Dum-dum!
Tantã!
E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.
Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.
E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio. (p.55)
O poeta inicia seu canto oferecendo-o ao poeta francês, tradutor e hispanista, Claude Couffon, inscrevendo assim seu poema na linhagem daquela literatura de resistência que configura a poesia de Couffon e também dos poetas e escritores por ele estudados. Em seguida, anuncia a comunhão entre o homem e a natureza, traduzindo a solidariedade própria do ser humano na relação com a África, seus rios, sua gente e suas crenças.
Ao ir penetrando no terreno do poema pode-se ouvir o barulho dos tambores que vão sendo traduzidos pelo uso de onomatopéias, aliterações e assonâncias criando um ritmo crescente e forte que ganham a força para “rasgar o silêncio da terra”. A luta é feita em forma de dança e o corpo é apresentando na sua força, beleza e capacidade de luta e embate físico. A dança passa a ser o movimento da guerra em que a virilidade dos corpos e a hombridade dos caracteres dos guerreiros apontam para o horizonte da liberdade e da independência. Esse movimento da dança cria uma ambiguidade semântica: ao mesmo tempo em que há a evocação de uma tradição há também a promessa de que essas forças encontram-se apenas desativadas mas que estão prontas a desabrochar. É o combustível e a força que faltam para o desencadeamento da revolução.
O uso de palavras das línguas Bantu, línguas faladas em Moçambique, aparece como um propósito evidente da união de várias forças internas do país que, reconquistando suas tradições ao serem evocadas nesse ritual, estarão novamente aptas a realizar a reconquista do mundo tomado pelos colonizadores, pelos opressores europeus. Segundo Almeida & Maquêa,
o poeta desenvolve o tema da revolução e dos sonhos de liberdade de forma perfeitamente adequada ao motivo, utilizando largamente, por exemplo, vocábulos e expressões das línguas locais. Assim, valorizando as línguas, as culturas e as tradições, há uma concepção do fazer poético como fazer político (2005).
Nos trinta e dois poemas de Xigubo, desta edição com a qual trabalhamos, o tema é telúrico. Canta a terra, fêmea, mãe, moçambicana, e de modo amplo, africana, buscando valorizar as coisas e os homens, sua história e sua cultura. O apelo a elementos que em geral funcionam como constituintes na construção de uma identidade nacional, como já foi observado, sendo muito comum na história dos países que buscam sua autonomia política e cultural, não deixa de ser também um convite à confiança no sucesso da luta pela independência, pacífica ou não. Veja-se o caso da literatura brasileira, principalmente do Romantismo e do Modernismo, em que escritores, poetas, artistas e intelectuais em geral estavam imbuídos na construção da identidade nacional, cada qual a seu modo, buscaram nos elementos que julgaram serem os autênticos da terra como inspiração para a criação literária.
A necessidade de valorizar a África, o negro, a cultura tradicional daquelas comunidades aparece então neste livro como matéria de construção poética e funciona como alternativa ao modelo opressor imposto pelo colonizador. Em torno desse tema, podemos ler um outro poema de José Craveirinha, agora buscando integrar essa temática na modernização, traduzindo de forma tensa e inconciliável as relações entre o patrão e o operário:
GRITO NEGRO
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina
Patrão!
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!
Eu sou carvão
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão
Patrão! (p.56-7)
A beleza desse poema está relacionada à capacidade lírica do poeta de instaurar uma confluência entre o homem negro e a sua condição. O homem, arrancado de sua terra, de suas raízes, é tomado para ser explorado nas minas de carvão. Sabe-se que os moçambicanos viajavam para a África do Sul para trabalhar nas minas de carvão daquele país. José Craveirinha articula a metáfora e o sentido literal do mineiro na linguagem mesma do canto e do corpo, seguindo procedimento semelhante ao realizado no poema “Xigubo”.
O poeta afirma a sua condição presente e a compreensão de que essa condição é alimento para a continuidade do sistema do explorador mas, ao mesmo tempo, declara firmemente que isso não será para sempre. A revolta está anunciada e como a palavra poética é também ação política, o recado está dado: “Arder vivo como alcatrão, meu irmão/ Até não ser mais a tua mina, patrão”.
Percebemos neste poema que, ao modo do operário de Vinícius de Moraes, na medida em que o mineiro se confunde com a sua condição e dela ganha consciência, ele colhe simultaneamente a sua possibilidade de libertação. Ao queimar, ao sofrer, ele se destrói enquanto explorado, deixando de ser a fonte de riqueza e de exploração do colonizador. Em Vinícius de Moraes, na medida em que o operário constrói a obra ele constrói também a sua liberdade: “E dentro da tarde mansa/ Agigantou-se a razão/ De um pobre e esquecido/ Razão que fizera/ Em operário construído/ O operário em construção” (1968).
Ao construir poemas que tratam da construção da consciência, José Craveirinha projeta nesse mineiro que é carvão, sua própria vontade de mudar o mundo, fazendo da palavra a combustão de sua poesia e de sua atuação política. A visão utópica, responsável pelas lutas de indepedência e que engajou muitos dos homens de espírito, da época, é presença marcante nos poemas de Craveirinha e denota sempre a busca de construção de um lugar que ainda não existe. Essa necessidade premente que impõe a liberdade no decurso de uma história de dominação pelo poder colonial pode ser lida no poema abaixo:
POEMA DO FUTURO CIDADÃO
Vim de qualquer parte
de uma nação que ainda não existe.
Vim e estou aqui!
Não nasci apenas eu
nem tu nem outro...
mas irmão.
Mas
tenho amor para dar às mãos-cheias.
Amor do que sou
e nada mais.
E
tenho no coração
gritos que não são meus somente
porque venho dum País que ainda não existe.
Ah! Tenho meu Amor a todos para dar
do que sou.
Eu!
Homem qualquer
cidadão de uma Nação que ainda não existe. (p.60)
Neste poema encontramos a voz de um poeta que se vê como representante de muitas outras vozes e que tem consciência de que a coletividade é importante para a conquista e a consolidação de qualquer espaço de liberdade. A poesia deixa de ser então lírica no sentido restrito de ser a expressão individual, mas a conjunção de vários indivíduos que, justamente por ser capaz de confluir, pode criar uma voz articulada capaz de restaurar a humanidade do mundo.
Podemos encontrar nesse poema a veia irônica de Craveirinha que, em entrevista a Patrick Chabal, deu suas notas biográficas falando mais de sua cidade que de si mesmo:
Nasci em 28 de maio do ano de 1922, na ex-Lourenço Marques. Amanhã não sei como se chamará; não sei como se chamará por uma razão muito simples: é que a cidade que foi chamada Lourenço Marques já foi também conhecida por Delago Bay, era mais conhecida pelos naturais da terra por Cafrom, era depois conhecida pelas pessoas da área propriamente citadina por Xiluim, e agora deu-se-lhe o nome de Maputo (1994, p.85).
No poema “O futuro cidadão” percebemos que a preocupação do poeta está muito além do mundo imediato, seu bairro ou sua cidade, independente da declaração do poeta na entrevista que recortamos acima. O mundo livre ainda não nasceu e a utopia – a Nação está no horizonte – é imaginada por alguém que ainda não é um cidadão. O futuro cidadão, no entanto, já emerge e anuncia a sua chegada. Esse pré-cidadão termina por ser o mais cidadão de todos, e isso exatamente pela conquista da consciência de sua condição, legitimada pela linguagem da poesia. Como afirma Ana Mafalda Leite:
A linguagem manifestatária de Xigubo é, por tudo o que foi dito, uma ato de legitimação e de conquista do poder simbólico, estético-linguístico, na medida em que entra em desacordo com os valores literários dominantes e consagrados da sociedade colonial em que se insere. Tal tentativa faz dele um discurso originário, fundador e de certa maneira programático (1991. p.38).
O tom da linguagem, cujo corpo e voz contribuem para produzir o efeito de um programa político, pode ser acompanhado na busca de unidade entre nação e cidadão que é anunciada nesse mundo prenhe de virtualidades: não existe ainda nem a nação nem o cidadão, pois ambos devem nascer juntos. Não é possivel ser cidadão de uma terra comandada pelos colonizadores, ou o poeta não está interessado em ser cidadão de algo que não tenha a ver com a realidade e os sonhos de seu povo. A poesia é então a plenitude da utopia, caracterizada pela junção de todos os africanos que deverão assumir o seu destino quando conseguirem conquistar o seu espaço.
Graças ao espaço da linguagem, que tudo pode formular, inventar, recriar e construir, dá-se o poder transgressor da palavra poética que afirma a possibilidade de outros mundos, outras realidades, destruindo a monológica imposição de verdades absolutas. José Craveirinha foi um desses homens que optou por reunir literatura e política num grito de guerra, pela liberdade, mas também pela paz.