Texto integral
1. N’O ano da morte de Ricardo Reis, a abertura do capítulo 12 mostra-nos uma muito elucidativa situação de diálogo entre personagens. Trata-se do momento em que duas mulheres, vizinhas de Ricardo Reis acabado de se instalar no Alto de Santa Catarina, comentam as novidades que quebram a rotina da casa:
Diálogo e juízo, Ontem veio cá uma, agora está lá outra, diz a vizinha do terceiro andar, Não dei fé dessa que esteve ontem, mas vi chegar a de hoje, vem fazer a limpeza da casa, diz a vizinha do primeiro, Mas olhe que não tem nada ar de mulher a dias, Lá nisso tem razão, parecia mais uma criada de gente fina, se não viesse carregada de embrulhos, e levava sabão amêndoa, conheci-o pelo cheiro, e trazia também umas vassouras, eu estava aqui na escada, a sacudir o capacho, quando ela entrou, A de ontem era uma rapariga nova, por sinal com um bonito chapéu, destes que agora se usam, por acaso nem se demorou muito, a vizinha o que é que acha, Francamente, vizinha, não lhe sei dizer, mudou-se faz amanhã oito dias e já lá entraram duas mulheres. (Saramago 2016, 293)
O diálogo formalmente estabelecido entre duas figuras anónimas traduz, na sua formalização, uma interação discursiva que pode ser lida no âmbito da chamada narrativa conversacional. Nesta e num contexto relativamente informal de vivência quotidiana (social, profissional, familiar, etc.), os sujeitos envolvidos recorrem a narrativas com propósitos argumentativos, explicativos, emocionais ou lúdicos (cf. Reis 2018b, 306-309). Assenta esta prática em dois princípios concretizados neste e noutros romances de Saramago: primeiro, o princípio da naturalização narrativa, mediante o qual reconhecemos a pertinência do relato como procedimento social e cognitivo próprio da ação humana e nela disseminado; segundo, o princípio da polifonia, que determina a instalação, na narrativa conversacional, de uma pluralidade de vozes eventualmente discordantes, num movimento de interação de que se deduzem virtualidades narrativas.
No caso em apreço, não existe discordância manifesta entre as vozes que, por alguns momentos, ocupam a cena do romance. Sem desaparecer por completo, a dimensão polifónica do diálogo-relato acaba por se desvanecer; parece evidente até que se insinua nele uma certa concordância de juízo (“Diálogo e juízo”, assim começa o capítulo), bem justificada pela cumplicidade da conversa e pelo propósito de solidária fiscalização de costumes que a motiva.
Ainda assim e salvo exceções, as personagens são usualmente entidades individualizadas. Por isso, terminado o diálogo, cada uma das vizinhas segue o seu caminho, cabendo a uma delas uma ação individual que sugere o seguinte: sem prejuízo de uma certa tendência saramaguiana para a “coletivização” da personagem – muito nítida em Levantado do chão e em Memorial do Convento e ainda, noutros termos, em Ensaio sobre a cegueira –, em momentos determinados a personagem acaba por recuperar a sua individualidade. Vejamos como se encerra o breve episódio:
Quero ver é se apanho a mulher a dias para lhe dizer que tem de lavar o lanço dela todas as semanas, esta escada sempre se pôde ver, Diga, diga, não julgue ela que vai fazer de nós criadas, Ah, era o que faltava, nem sabe com quem se metia, este foi o remate da vizinha do terceiro andar, assim se concluindo o juízo e o diálogo, faltando apenas mencionar a cena muda que foi subir à sua casa muito devagar, pisando maciamente os degraus com os chinelos de ourelo, e rente à porta de Ricardo Reis parou à escuta, com o ouvido mesmo junto à fechadura, ouviu um barulho de águas a correr, a voz da mulher a dias que cantava baixinho. (Saramago 2016, 294)
Ao longo deste “diálogo e juízo”, estão bem expressas algumas dominantes do estilo de Saramago (ou, pelo menos, do Saramago dos anos 80) e da sua retórica de composição da personagem, a saber: o anonimato das figuras representadas, a sua pontual indiferenciação, a ausência de verbos declarativos (com apagamento da intervenção do narrador), o uso singular da pontuação, a dinâmica de dramatização, a entoação coloquial do que aparenta ser uma reportagem ao vivo, etc.
A estas dominantes, que são, em geral, entendidas como “marca de água” estilística do escritor, nos tais anos 80, acrescento agora componentes que julgo mais consequentes, tendo em vista o que vem a seguir. Visivelmente, o diálogo, para além de inserto em contexto narrativo, estabelece-se como processo de conhecimento in fieri; neste caso (que é ainda o das duas vizinhas bisbilhoteiras), o diálogo revela não apenas uma atitude trivial de curiosidade, relativamente à vida alheia, mas também uma atmosfera social provinciana, bem própria da Lisboa de então (e também da de agora, diga-se de passagem), no ano em que Ricardo Reis vive na capital portuguesa. Mais: o processo de conhecimento propiciado pelo diálogo assume uma dimensão mais ampla e profunda do que na conversa com que se inicia o capítulo 12; penso, evidentemente e conforme disse a abrir, na relevância dos vários diálogos entre Ricardo Reis regressado e Fernando Pessoa escapado do túmulo.
2. São essas várias ocorrências que legitimam a aproximação d’O ano da morte de Ricardo Reis de uma filosofia do romance que o concebe como prática de dialogismo e pluridiscursividade. Ao mesmo tempo (insisto), aquela filosofia do romance suscita algumas dificuldades, tendo-se em atenção aspetos importantes do pensamento literário do escritor.
Num colóquio realizado na Fundação Calouste Gulbenkian a 31 de junho e 1 de julho de 2022, pude debruçar-me sobre a estética do romance segundo José Saramago. Aí sublinhei que, em diversos momentos e circunstâncias da sua vida literária, Saramago enunciou contributos que apontam para uma informal poética do romance. Estão implicadas nessa poética questões atinentes à condição social da literatura e do romancista, bem como à configuração do romance e de algumas das suas categorias, à sua retórica, às suas dominantes estilísticas e às suas mutações, como género dominante no Ocidente, desde os alvores da modernidade (cf. Saramago 2022, 55-87).
A associação de Saramago, por via doutrinária, a uma certa estética do romance ocorre na passagem do século XX para o século XXI; para esboçar essa estética do romance, o escritor leva a cabo um diálogo metaliterário com os títulos que integram o corpus romanesco que produziu, diálogo por vezes processado em registo ensaístico. Que o mesmo é dizer, em jeito de tentativa.
Entretanto, contextualizo: a tentativa mencionada tem lugar na posteridade do neorrealismo, um movimento literário com forte impacto na literatura portuguesa dos anos 40 e 50 do século XX; como Saramago reconheceu, aquele movimento prolonga-se terminalmente em Levantado do chão, que é o “último romance do neorrealismo, fora já do tempo neorrealista” (Reis 2018a, 103). Antes e depois disso, a ficção narrativa saramaguiana situa-se em contexto pós-modernista, um contexto bem distanciado, em termos formais, temáticos e ideológicos, do realismo crítico oitocentista que, de resto, havia sido posto em causa também pelo neorrealismo e pelo referencial marxista que o orientava. Resta saber (fica para daqui a pouco) como esse referencial ideológico, que em Saramago não se extinguiu, se articula com uma conceção dialógica do romance.
Uma tal conceção provém, como é sabido, do pensamento de Mikhail M. Bakhtin e, sendo embora conhecida, deve ser recordada muito sumariamente. O seu ponto de partida é a noção genérica de que o dialogismo é uma propriedade constitutiva dos atos discursivos, correspondendo à “tendenza naturale di ogni parola viva”; assim, “in tutti i suoi cammini verso l’oggetto, in tutte le direzioni la parola s’incontra con la parola altrui e non può non entrare con essa in una viva interazione piena di tensione” (Bachtin 1979, 87; a grafia do nome do autor é a que é adotada na tradução citada).
Rejeitando uma suposta feição monológica da linguagem, Bakhtin defende o caráter interativo do processo discursivo e valoriza outras entidades que participam na comunicação, designadamente componentes de contexto que acentuam a proeminência das interações pluridiscursivas. Pode dizer-se, então, que o dialogismo é subsumido na noção de heteroglossia; no seu âmbito, o sujeito do discurso “operates not with language as an abstract regulatory norm, but with a multitude of discourse practices that form in their totality a dynamic verbal culture belonging to the society concerned” (Tjupa 2013, 1).
Por fim, o discurso do romance em prosa é aquele que mais claramente favorece o dialogismo; em palavras do grande teórico russo, “l’orientamento dialogico della parola tra le parole estranee (di tutti i gradi e i modi di estraneità) crea nuove e sostanziali possibilità artistiche nella parola, una sua particolare artisticità prosastica che ha trovato la sua espressione più piena e più profonda nel romanzo” (Bachtin 1979, 83). A partir daqui, podemos entrever um confronto de efeitos aporéticos entre uma conceção do romance como dialogismo e pluridiscursividade e as postulações de Saramago acerca da díade autor/narrador, das prerrogativas da autoria e da sua legitimidade para reger e determinar o texto romanesco.
3. Antes de aprofundar esta aporia, devo aludir a algumas emergências dialógicas na ficção saramaguiana, que o mesmo é dizer, à afirmação de uma escrita narrativa como confronto de diferentes vozes e posições.
Desde logo e muito significativamente, a obra fundacional e de aprendizagem que é Manual de pintura e caligrafia centra-se em oscilações em que se projeta uma pluralidade de movimentos artísticos e de géneros discursivos. E assim, o trajeto do protagonista desenvolve-se da pintura à escrita (que será uma escrita narrativa), concretizando um conhecimento que deriva para um autoconhecimento não isento de hesitações, de incertezas e de tentativas.
Exatamente porque desse processo não está ausente o sentido da aprendizagem e das suas dificuldades, a escrita que o pintor frustrado leva a cabo oscila entre vários géneros, todos eles marcados por forte investimento subjetivo: o relato de viagens, a crónica e a autobiografia, harmonizadas no culto da narrativa como ensaio (a não esquecer: a primeira edição de Manual de pintura e caligrafia trazia o subtítulo Ensaio de romance). O desenlace deste trajeto é a consciência do romance e da sua inevitabilidade, mais o surgimento do romancista (cf. Reis 2018a, 9-23).
A dimensão de alteridade que o relato também encerra reforça um potencial dialógico e interpessoal destacado pelo próprio Saramago, num texto autobiográfico:
A história é contada na primeira pessoa, e aí, tal como logo sucederia noutros romances posteriores, a figura da mulher aparece como um forte elemento de transformação, porque sem ela, sem o “outro” que ela é, sem essa mulher que é citada apenas com a inicial M., o pintor H. não chegaria a descobrir que os caminhos pelos quais transitava não o conduziriam ao conhecimento de si mesmo como homem e como artista. A descoberta do próprio chegará através do conhecimento do outro, a mulher será a guia desse percurso que acabará dando um novo sentido à vida do pintor e, em definitivo, à vida de ambos. (Saramago 2013, 21)
Toda a questão do relacionamento com o “outro”, como “forte elemento de transformação” concretizada em autoconhecimento, pode ser orientada para o exterior desta ficção. Uma das leituras mais certeiras que este romance suscitou notou precisamente que “as considerações de H. projetam-se para além do espaço literário”, levando-nos “a compreender que o artista plástico, tornado escritor, tem muito de um heterónimo de José Saramago” (Rebelo 1983, 32). Numa extensão desta interpretação e indo além de Manual de pintura e caligrafia, o mesmo ensaísta comenta um aspeto crucial de Memorial do Convento, aspeto a que é também inerente a dimensão de dialogismo: o confronto de linguagens e de culturas provindas de universos em tensão. Nas palavras do mesmo ensaísta:
Ora esta escrita, que no Memorial do Convento se forja no crisol de duas linguagens e no encontro de duas culturas, tem a sua contrapartida estrutural no desenvolvimento da narrativa, onde se jogam e contrapõem dois universos bem definidos. De um lado temos a corte de D. João V, com os problemas de alcova e da sucessão até à fecundidade conseguida da rainha com a bênção dos céus e a marca do milagre. Do outro temos o mundo de Baltasar, Blimunda, Padre Bartolomeu de Gusmão e a sua máquina voadora. (Rebelo 1983, 14)
A dualidade de linguagens e de culturas de que aqui se fala autoriza a que se diga que este é um romance dominado por aquela viva interação plena de tensão de que falava Bakhtin. Curiosamente (mas também compreensivelmente), este pendor dialógico não agradou a uma certa crítica muito fiel a um romance mais próximo do ideário neorrealista.
Numa abordagem dissonante em relação ao generalizado aplauso crítico que Memorial do Convento mereceu, Álvaro Pina falou do exemplo (um bom exemplo, do seu ponto de vista) de Levantado do chão e da sua voz narrativa “como consciência estética do real narrado”, capaz de conduzir a respostas “inteligentes e fecundas”. Não assim em Memorial do Convento; segundo Pina, neste magistral romance de Saramago evidencia-se o “doloroso fracasso do narrador” que é “incapaz de nos guiar para a participação estética no material tematizado”. Conclusão: “Memorial do Convento fracassa porque lhe falta a voz ordenadora do narrador em pleno e rigoroso sentido” (Pina 1983, 83-84). Compreende-se que, em sintonia com a doxa ideológica e literária do neorrealismo, o crítico sinta nostalgia do romance como prática monológica e ideologicamente dirigida.
4. Aquilo a que chamo a cena dialógica n’O ano da morte de Ricardo Reis reporta-se a um conjunto de espaços e de episódios neles encenados, espaços esses de natureza específica e nem todos de conformação material. Primeiro: a cidade de Lisboa, que é o grande cenário labiríntico por onde Ricardo Reis deambula, ao longo de ruas, de avenidas e de praças, no reencontro ocorrido quando do seu regresso do Brasil. Um segundo espaço, para onde Reis momentaneamente se desloca, é o de Fátima (com pouco interesse para a presente análise). Terceiro: o espaço (ou espaços) movente que é constituído pelos diversos lugares interiores e exteriores onde decorrem as cenas dialogadas com Fernando Pessoa. Por fim, o espaço imaterial e simbólico da literatura, onde se processam importantes “movimentos” intertextuais.
Daqui recortarei três episódios ou conjuntos de episódios dialógicos, com variável incidência dramática, no sentido representacional e não emocional do termo. Nesse sentido, as chamadas cenas dialogadas, entre Reis e Pessoa, aproximam-se da encenação teatral propriamente dita: conforme ensina a narratologia, estabelece-se nelas uma velocidade narrativa que imita a duração temporal dos diálogos entre as personagens, com desvanecimento ou desaparecimento total da voz do narrador. O que não significa que ele abdique necessariamente da sua condição de organizador da história e das prerrogativas que o autorizam a controlar o desenrolar da cena (por exemplo, decidindo os momentos adequados para a sua instauração e para a sua interrupção; cf. Reis 2018b, 52-53).
Note-se que esta propensão dramática não é exclusiva dos diálogos Reis-Pessoa, a que voltarei. Ela manifesta-se também através da inscrição do drama propriamente dito na ficção: falo, evidentemente, da representação da peça de teatro Tá Mar, de Alfredo Cortez, que ocupa parte do capítulo 5 do romance.
A ida de Reis ao teatro faculta-lhe um contacto por assim dizer inicial e ainda moderado com a atmosfera nacionalista e tradicionalista que domina Portugal, nesses meados dos anos 30, e que a peça em causa muito bem ilustra; a isto poderia acrescentar-se que o comício do final do romance, no capítulo 18, acentua aquela atmosfera, em ambiente de forte teatralização política. Para além disso, a peça de Cortez é pretexto para uma breve reflexão de Ricardo Reis, em que se expressa uma conceção anti-mimética da arte; de acordo com essa conceção e em harmonia com o ideário estético do heterónimo pessoano, “foi fraqueza censurável do autor escrever a peça no linguajar nazareno” (Saramago 2016, 121). E mais adiante: “na minha opinião, a representação nunca deve ser natural, o que se passa num palco é teatro, não é a vida, não é vida, a vida não é representável, até o que parece ser o mais fiel reflexo, o espelho, torna o direito esquerdo e o esquerdo direito” (Saramago 2016, 141).
5. Tratarei agora mais demoradamente daquilo a que chamei episódios dialógicos n’O ano da morte de Ricardo Reis, começando (e de acordo com uma expressão que se encontra no romance), pelo caminho das estátuas. Está aqui em causa a narrativização do espaço, dinamizada em função da deambulação que é protagonizada por Reis, tema de que me ocupei já com algum desenvolvimento (cf. Reis 2020, 109-129) e que reiteradamente aparece nos estudos sobre este romance.
É a deambulação por ruas e por praças de Lisboa que desenha o caminho das estátuas e, nesse caminho, a interpelação dialógica de figuras e de tempos históricos e literários. Diz-se no romance: “[Ricardo Reis] seguiu o caminho das estátuas, Eça de Queirós, o Chiado, D’Artagnan, o pobre Adamastor visto de costas” (Saramago 2016, 486). Tenha-se em atenção que aquilo que aqui é dito, em jeito de síntese, está reportado a um momento adiantado da ação, no capítulo 19, como se a voz (do narrador) que isto diz pudesse já assumir e sugerir a relevância do “caminho das estátuas” como elemento central do romance. Assim é, efetivamente, como, de resto, foi observado logo nas primeiras reações críticas à obra (cf. Morão 1993, 142-143; trata-se de uma resenha publicada em 1984).
A primeira estátua e o primeiro tempo com que o protagonista-viajante dialoga aparece durante o trajeto seguido por Reis a partir do Hotel Bragança. Situada a meio da Rua do Alecrim, no Largo do Barão de Quintela, a estátua em causa, em mármore e da autoria de Teixeira Lopes (atualmente está naquele largo uma réplica em bronze), não é nova para o caminhante: ela foi ali implantada em 1903 e, por isso, faculta um reencontro e não, conforme acontece noutros casos, o conhecimento de algo que, para Reis, seria uma novidade.
É no contexto descrito que ocorre um relevante momento de interação dialógica com Eça de Queirós, com aquilo que ele representa no nosso imaginário e com o seu discurso como legado histórico:
Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia, parece clara a sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir sem se enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com igual convicção um novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarem a ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens de cada vez que abrem a boca para falar. (Saramago 2016, 67)
O que me parece mais significativo neste episódio é o confronto de discursos: o de Eça, presente na citação da epígrafe d’A Relíquia (“Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia”), com o discurso do narrador, certamente reportando o pensamento de Ricardo Reis, num comentário centrado na subversão daquela epígrafe: “Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade”.
Citação e subversão, repito, para notar o seguinte: não só está aqui expressa a intertextualidade propriamente dita (a citação), mas também a hipertextualidade que parte do texto consagrado (o hipotexto), para enunciar um discurso outro, num discreto tom de paródia. Mas não só isso. A exemplo do que fará, de forma desenvolvida e muito consequente, o Raimundo Silva da História do cerco de Lisboa, trata-se de, pela transformação de um discurso alheio, construir uma verdade alternativa. Tal como naquele outro romance, afirma-se aqui uma verdade construída pelo discurso, neste caso diáfana, transparente e vaga, mas não impeditiva, em todo o caso, da legitimação da fantasia (ou da ficção) e até, indo um pouco mais além, cúmplice dela. Como se entre ambas, verdade e ficção, não houvesse, afinal, fronteiras rígidas, mas antes uma porosidade permeável a deslocações irrestritas.
A estátua que se segue é a de Camões, na sequência de um passeio em regime dialogante que é algo mais do que divertimento: “é instrutivo o passeio, ainda agora contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões, a este não se lembraram de pôr-lhe versos no pedestal, e se um pusessem qual poriam, Aqui, com grave dor, com triste acento” (Saramago 2016, 67). De novo um discurso literário alheio, neste caso ausente, mas trazido ao texto do romance pela lembrança de quem cita um verso da écloga V de Camões. Como se as estátuas fossem não apenas as balizas de um trajeto (o tal “caminho das estátuas”), mas também um repositório de memórias literárias a evocar, a citar e mesmo a subverter.
A estátua que agora está em causa permite a Ricardo Reis um novo reencontro, depois de uma larga volta pelo Bairro Alto (cf. Saramago 2016, 67-77). Erigida no largo que tem o nome do épico, a estátua de Camões, rodeada de cronistas e de historiadores, é da autoria de Victor Bastos e encontra-se ali desde 1867, tendo sido, desde então, motivo de expressiva simbolização literária (por exemplo, em Cesário Verde e em Eça; cf. Grünhagen 2022, 65ss.). Do mesmo modo, n’O ano da morte de Ricardo Reis; neste caso, parece evidente que o monumento e a figura representada surgem como centro não apenas do labirinto de ruas em que Reis se move, mas do próprio cânone literário português. Também por isso, a interpelação dialógica é, neste caso, mais flagrante e subversiva:
Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie de D’Artagnan premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a quem, aliás, variando os tempos e as políticas, ainda acabará por servir, mas este aqui, se por estar morto não pode voltar a alistar-se, seria bom que soubesse que dele se servem, à vez ou em confusão, os principais, cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência. (Saramago 2016, 77)
Repare-se: a obra de Bastos – e com ela, de certa maneira, a figura que a motiva – é reduzida a um “bronze afidalgado e espadachim” ou mesmo, como se diz mais adiante, a “um peralta de corte” (Saramago 2016, 426). Daí à descanonização paródica vai um passo, envolvendo a interação de três discursos: aquele que, ao longo dos séculos, tem contribuído para canonizar Camões, discurso não enunciado, mas implícito; o do romance de Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros, aqui drasticamente resumido; e o discurso do romance que dinamiza a interação dialógica, levando a uma espécie de reconstrução da imagem simbólica do escritor que é fulcro da nossa história literária. Noutros termos: “a monumentalidade de Camões [...] não é negada pelo romance, mas trata-se sobretudo de (re)considerá-la criticamente” (Roani 2020, 112).
O texto narrativo e o olhar de Ricardo Reis em movimento são as instâncias que assumem a responsabilidade, que é também ideológica, de parodiar Camões. O épico é, então, (quase) refigurado em D’Artagnan, por uma deslocação transficcional que associa Camões à personagem de Dumas e às agitadas “maquinações” em que ela se envolve. Como se um romance de capa e espada e uma epopeia nacional, mais o seu celebrado autor, devessem ser revistos em função de uma descanonização paródica que culmina numa denúncia: a dos aproveitamentos políticos de Camões, tendo a sua obra sido manipulada “de acordo com programas completamente alheios à mensagem literária”, em prol da “consciência de uma grandeza que não existiu nem existiria, mas que estimulou o imaginário coletivo, entorpecendo-o e confundindo-o” (Roani 2020, 118).
6. A estátua de Camões e o impulso para a sua re-modelação simbólica pela focalização de Reis não desaparecem da cena dialógica do romance, depois daquelas cogitações. Ressurgindo ainda outras vezes, o “bronze afidalgado” confirma-se como eixo e polo de atração da deambulação do protagonista. Quando ele encontra um lugar em Lisboa para, por algum tempo, exercer como médico, esse lugar é o mesmo e, evidentemente, dominado pela mesma figura. “Parece isto obra do destino”, lê-se no romance. E depois:
Tendo Ricardo Reis procurado tão insistentemente e de tão longe, veio a encontrar, já na quarta-feira, um porto de abrigo, por assim dizer, mesmo ao pé da porta, no Camões, e com tanta fortuna que se achou instalado em gabinete com janela para a praça, é certo que se vê o D’Artagnan de costas, mas as transmissões estão asseguradas, os recados garantidos, do que logo fez demonstração um pombo voando da sacada para a cabeça do vate, provavelmente foi-lhe segredar ao ouvido, com malícia columbina, que tinha ali atrás um concorrente. (Saramago 2016, 301)
Tenhamos em conta o seguinte: Camões continua a ser D’Artagnan, mas agora é visto de costas, como se fosse curial (e é mesmo) interpelá-lo a partir de uma outra perspetiva, diferente da que o institucionalizou como figura sacralizada no imaginário da cultura portuguesa. Em sintonia com uma das linhas de desenvolvimento da grande ficção saramaguiana (a revisão ficcional de personalidades e eventos históricos), este Camões é outro porque outros são os olhos que o veem, a partir de um singular tempo histórico e também pessoal:
Ricardo Reis saiu, eram três menos um quarto, tempo de ir andando, atravessou a praça onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o veem, em vida sua braço às armas feito e mente às musas dada, agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos picam os pombos como os olhares indiferentes de quem passa. (Saramago 2016, 208)
Já se sabe: “todos os caminhos portugueses vão dar a Camões”. Com Ricardo Reis, esse caminho é o das estátuas e inclui um terceiro monumento, também ele diretamente ligado ao universo de Camões.
Ao reencontrar o Alto de Santa Catarina para onde vai viver, Reis apercebe-se, dezasseis anos depois de ter deixado Lisboa, de uma significativa novidade urbanística: no miradouro está um monumento ao Adamastor, da autoria de Júlio Vaz Júnior, ali colocado em 1927. É, pois, com o gigante reinventado no canto V da epopeia camoniana que Reis dialoga agora, mas não só com ele, uma vez que o olhar lançado a partir daquele ponto de observação induz, inevitavelmente, uma interpelação dialógica da História, com mediação da memória literária. Com efeito, a estátua remete diretamente para um tempo-lugar histórico: “se o instalaram aqui não deve ser longe o cabo da Boa Esperança” (Saramago 2016, 209). Não se chega lá, contudo, a não ser por intermediação da memória literária; ou de uma memória literária em segunda instância:
Friorento, levantando a gola da gabardina, Ricardo Reis aproximou-se da grade que rodeia a primeira vertente do morro, pensar que deste rio partiram, Que nau, que armada, que frota pode encontrar o caminho, e para onde, pergunto eu, e qual [...]. (Saramago 2016, 209)
A segunda instância memorial é, pela via da intertextualidade, a citação “Que nau, que armada, que frota”, provinda do poema “Calma”, da Mensagem (III: “O Encoberto”). Deste modo, o diálogo alarga-se e inclui agora não apenas Camões e Os Lusíadas, por interposto Adamastor e respetiva estátua, mas também Fernando Pessoa: é ele quem, com voz “ácida, irónica”, interrompe Reis e cita a sua Mensagem, curiosamente o livro que omite o autor d’Os Lusíadas (no romance, Pessoa quase se auto-recrimina por causa disso; cf. Saramago 2016, 417-418). Tudo isto aparece subordinado ao olhar e à vivência de Reis, que é quem, por fim, enquadra este diálogo entre figuras e textos evocados num cenário tão especial, no plano simbólico: o lugar de onde se vê a barra do Tejo.
Mas isto não é nem poderia ser tudo. A interpelação ao Adamastor segue a mesma via de dessacralização que recaiu sobre Camões, quando a sua estátua apareceu no caminho de Ricardo Reis. Por outras palavras: está em causa o diálogo com um texto já não de um romance de capa e espada, mas do próprio Camões, o passo d’Os Lusíadas em que o gigante aparece. Quando Reis vive a sua rotina no Alto de Santa Catarina e por ocasião de um seu novo encontro com a estátua, estabelece-se um diálogo que resulta na redução da epopeia, ou seja, na sua provocatória desautorização, também por via da interação discursiva:
Se a manhã está agradável [Ricardo Reis] sai de casa, um pouco soturna apesar dos cuidados e desvelos de Lídia, para ler os jornais à luz clara do dia, sentado ao sol, sob o vulto protetor de Adamastor, já se viu que Luís de Camões exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, a postura nem medonha nem má, é puro sofrimento amoroso o que atormenta o estupendo gigante, quer ele lá saber se passam ou não passam o cabo as portuguesas naus. (Saramago 2016, 308)
Os efeitos dialógicos que surpreendemos neste passo decorrem de duas modalidades de enunciação da literatura em segundo grau, numa imagem cunhada por Genette, sempre útil nestas análises. Em primeiro lugar, o recurso à citação (o “rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados”); depois, a transformação hipertextual, mais o seu potencial subversivo: n’Os Lusíadas, diz-se “a postura / medonha e má” e não “nem medonha nem má”, como está no romance; do mesmo modo, o discurso interpelante do romance banaliza estilisticamente a imagem e o comportamento do Adamastor agora refigurado: “quer ele lá saber se passam ou não passam o cabo...”.
Assim, o gigante vai a caminho de ser, como no final do romance “o pobre Adamastor visto de costas” (Saramago 2016, 486). A imagem já aqui foi citada, também a propósito de Camões, mas retomo-a agora, porque quero sublinhar nela a face reversa de uma figura que, colocada no caminho de Ricardo Reis sob forma de estátua, é praticamente virada do avesso, naquilo que significa.
7. Falta António Ribeiro Chiado. A brevidade da referência à sua estátua decorre do facto de ela não ocupar, na cena dialógica d’O ano da morte de Ricardo Reis, um papel semelhante ao das três restantes, a de Eça, a de Camões e a do Adamastor. Colocada embora no caminho das estátuas e no centro de um espaço que leva o seu nome (ou o contrário, não se sabe bem e agora pouco importa), o escritor que ela evoca não alcança, nem de perto nem de longe, a mesma estatura literária de Eça de Queirós ou de Camões.
Pelo que se sabe, a estátua da autoria de Costa Motta (tio), que é de 1925 (e, por isso, tal como a do Adamastor, desconhecida do regressado Ricardo Reis), enfrentou, na época, resistências motivadas pela falta de estatuto cultural deste frade quinhentista que abandonou a clausura para viver em Lisboa uma existência boémia de poeta e dramaturgo satírico. A consagração um tanto discutível de Ribeiro Chiado é até objeto de diálogo entre Pessoa e Reis, um diálogo em que comparecem algumas das questões que aflorei.
Para além daquela consagração, está em causa, no romance, a relação simbólica do Chiado com Camões:
Olhe que até há quem exija a retirada do Chiado, Também o Chiado, que mal lhes fez o Chiado, Que foi chocarreiro, desbocado, nada próprio do lugar elegante onde o puseram, Pelo contrário, o Chiado não podia estar em melhor sítio, não é possível imaginar um Camões sem um Chiado, estão muito bem assim, ainda por cima viveram no mesmo século, se houver alguma coisa a corrigir é a posição em que puseram o frade, devia estar virado para o épico, com a mão estendida, não como quem pede, mas como quem oferece e dá, Camões não tem nada a receber de Chiado, Diga antes que não estando Camões vivo, não lho podemos perguntar, você nem imagina as coisas de que Camões precisaria. (Saramago 2016, 426)
A última fala citada é de Pessoa e vale como confirmação de algumas coisas que ficaram ditas: a presença de Camões, em Lisboa e no imaginário cultural português, é muito impressiva, mas (argumenta o ortónimo) não é inamovível nem intocável. Em concordância com isso, Reis, logo acima, insistira na antonomásia com que Camões é designado: “um D’Artagnan” (Saramago 2016, 426). Tudo isto – ou seja: a refiguração de Camões, agora à custa do Chiado – acontece em contexto dialógico.
8. Segundo conjunto de episódios dialógicos: os que ocorrem entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, estendidos ao longo de vários capítulos do romance e resultando do insólito aparecimento do primeiro, em diferentes momentos. Reclamando o direito de “sobreviver” depois da morte, por mais nove meses (correspondendo ao tempo da gestação), Pessoa aparece na cena do romance para interpelar Reis, sendo que só ele, naqueles encontros, tem o privilégio de o ver e ouvir. São oito ocorrências de diálogo, com realce para a do capítulo 13 e culminando na derradeira página do relato, quando Reis se decide a acompanhar Pessoa, para se encerrar no cemitério a que este para sempre regressa.
Os diálogos entre as duas figuras, na lógica e na formulação que são próprias desta interação verbal, implicam, desde logo, a omissão praticamente total da voz narradora. Recordo que há muito que o grande romancista norte-americano Henry James atribuiu àquela interação a designação showing, em oposição a telling (quando a voz do narrador dispensa a das personagens). Com efeito, ceder a palavra às personagens é optar por uma representação em que o narrador “desaparece” momentaneamente: de certo modo, as personagens transformam-se em atores e os seus discursos funcionam como componentes de um diálogo dramático (cf. Reis 2018b, 427-428).
Acontece assim nos diálogos Pessoa-Reis. E mais: as conversas-debate entre ambos permitem rever, em regime transficcional, a dinâmica dialógica que rege a heteronímia e o conceito de poesia dramática, ambos objeto de longa e circunstanciada atenção, em testemunhos doutrinários de Fernando Pessoa; no presente contexto, vale por todos aquele em que o genial poeta descreve, com a minúcia analítica que o caracteriza, os graus da poesia lírica. Trata-se do conhecido texto que começa “Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática”, culminando aquela graduação na configuração de um poeta dramático:
Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lírica – ou qualquer forma literária análoga em sua substância à poesia lírica – até à poesia dramática, sem, todavia, se lhe dar a forma do drama, nem explícita nem implicitamente. (Pessoa 1966, 106)
O mencionado “passo final” viabiliza o potencial dialógico da heteronímia e também, naturalmente, da interação do ortónimo com os heterónimos. É isso que a exegese do universo pessoano claramente confirma, tal como está fixado num dos títulos capitais dos estudos pessoanos, Fernando Pessoa ou o poetodrama (1988), de José Augusto Seabra. Daquela interação é possível deduzir algo que já está em Pessoa: uma espécie de reversão que leva a que, nos diálogos d’O ano da morte de Ricardo Reis, o ortónimo seja interpelado pelo heterónimo. O final do romance, com a partida de ambos para o cemitério, traduz não apenas o fechamento da biografia de Ricardo Reis (que Pessoa, como se sabe, deixara em aberto), mas também o desenlace do movimento transficcional que levou aquela figura literária a ser protagonista do romance de Saramago.
É no contexto narrativo e ontológico que acabo de descrever sumariamente que se desenrolam os diálogos Pessoa-Reis. As suas virtualidades narrativas são, pode dizer-se, um atípico mas muito sugestivo contributo do romancista José Saramago para a história de Pessoa como escritor, incluindo a sua complexa e sinuosa relação com os heterónimos (falo aqui, é claro, dos grandes heterónimos pessoanos); convém recordar que o referido contributo surge num tempo em que a obra e a personalidade de Pessoa estavam na ordem do dia, de um modo que alguns acharam até excessivo (cf. Blanco 2012, 332-333). Com efeito, os anos 80, que foram os da escrita e publicação d’O ano da morte de Ricardo Reis, correspondem à década em que pela primeira vez foi editado o Livro do desassossego de Bernardo Soares (1982; dele saiu uma epígrafe para o romance de Saramago), em vésperas de duas grandes e muito festejadas efemérides pessoanas: o cinquentenário da morte (1985) e o centenário do nascimento (1988).
Para além destas circunstâncias, digamos, celebrativas, a temática pessoana do romance em análise e, nela, os diálogos de Pessoa com Ricardo Reis assumem significados que quero sublinhar, sendo o mais evidente o seguinte: acentua-se neles a tensão de Pessoa com os heterónimos. Essa tensão revela fraturas de temperamento e de comportamento que, de outro modo – quero dizer: tão só pelo confronto poetodramático “das personagens fictícias sem drama” –, não seriam tão flagrantes. O passo que vou transcrever confirma as tais fraturas, em termos agrestes, ao que se junta a propensão narrativa do diálogo:
Não penso em casar com a Lídia, e ainda não sei se virei a perfilhar a criança, Meu querido Reis, se me permite uma opinião, isso é uma safadice, Será, o Álvaro de Campos também pedia emprestado e não pagava, O Álvaro de Campos era, rigorosamente, e para não sair da palavra, um safado, Você nunca se entendeu muito bem com ele, Também nunca me entendi muito bem consigo, Nunca nos entendemos muito bem uns com os outros, Era inevitável, se existíamos vários. (Saramago 2016, 429)
Ressalvadas as distâncias, emerge neste diálogo e noutros semelhantes a dinâmica de construção do conhecimento que é própria da maiêutica socrática, incluindo a componente proto-narrativa inerente à explanação de argumentos e à sua eventual contestação, em direção a uma conclusão. De forma mais lata: a presença, neste romance, do heterónimo em interação dialógica com o ortónimo conduz a um certo conhecimento narrativo inferido, que ilumina a biografia de Ricardo Reis: o seu regresso, a sua deambulação pela Lisboa dos anos 30 e o desenlace a que já aludi. Como se esse desenlace, ao juntar Pessoa e Reis, fosse a culminância da dialética que eles protagonizam.
Já Álvaro de Campos fica fora do diálogo, sendo referido como terceira pessoa num tempo verbal do passado (“O Álvaro de Campos era [...] um safado”). Isto bate certo com a informação prestada pelo ortónimo, na carta a Casais Monteiro (em 1935, Campos estava em Lisboa em inatividade) e com a sua deslocação para Glasgow, logo depois da morte de Pessoa, segundo o que se lê no romance (cf. Saramago 2016, 89). Diferente é a situação do ausente Alberto Caeiro: tendo morrido, disse Pessoa, em 1915, o “guardador de rebanhos” é mencionado apenas três vezes e de passagem; mas mesmo que estivesse vivo, o campesino Caeiro seguramente não teria disponibilidade mental para se envolver em diálogos que obrigavam a pensar – coisa que, para ele, era o mesmo que estar doente.
Os diálogos Reis-Pessoa contemplam temas muito relevantes. Por exemplo, a teoria do fingimento, como eixo em torno do qual giram a doutrina e a prática poetodramática pessoanas. É o heterónimo quem interroga: “Diga-me só uma coisa, é como poeta que eu finjo, ou como homem [?]”; a isto responde Pessoa: “O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo, e isso já nada tem que ver com o homem e com o poeta” (Saramago 2016, 133). Assim se esboça um juízo que incide não apenas sobre o heterónimo, mas sobre o fingimento propriamente dito como retórica hipertrofiada, intensificando a síndrome de alteridade modelizada pela heteronímia.
Os diálogos e o potencial narrativo por eles desenvolvido não se limitam, contudo, a matérias literárias, nem ao confronto entre temperamentos e atitudes ético-morais específicas de cada um dos sujeitos envolvidos. Quase sempre exibindo um certo distanciamento irónico, como prerrogativa de quem, à maneira do defunto autor Brás Cubas, fala a partir dessa condição póstuma, o autor defunto Pessoa dialoga sobre gente política e sobre questões históricas, bem de acordo com um dos grandes veios temáticos representados no romance: a História, as suas figuras destacadas e os seus eventos, ainda em curso para quem dialoga, mas já históricos para nós.
Num dos diálogos, trata-se de esclarecer Reis sobre “quem é, que é este Salazar que nos calhou em sorte”. Palavras de Pessoa: “é o ditador português, o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole” (Saramago 2016, 327). Não trato agora de indagar o efeito que estas palavras provocam em Ricardo Reis. Noto apenas que ele assume um contraditório (“quem diz muito bem dele é a imprensa estrangeira”; “a imprensa de cá também se derrete em louvações”; Saramago 2016, 328) que incute, a este e aos demais encontros com Pessoa, o tom de enfrentamento intersubjetivo que o dialogismo implica.
Por fim, o confronto dialógico suscita um efeito genérico de refiguração que leva à reinvenção ficcional de figuras já conhecidas (Pessoa e Reis); essa refiguração é dinâmica, gradual e complexa, vai além de dispositivos de descrição ou de caracterização e concretiza-se naquilo a que chamo conformação acional (cf. Reis, 2018b, 168). Falo de comportamentos humanos implicados numa ação narrativa e nela desenvolvidos, como é o caso dos diálogos de que tenho falado e da sua carga performativa, indiciando ou explicitando o perfil psicológico, ideológico ou moral das personagens.
9. Em vários momentos do que acima escrevi, aludi a manifestações intertextuais (por exemplo, em citações ou em transformações hipertextuais) que atravessam a cena dialógica d’O ano da morte de Ricardo Reis. Mais: uma parte considerável da obra saramaguiana, para além daquele romance, é devedora de práticas daquela natureza, o que nos coloca num terreno conceptual muito fértil e já abundantemente tratado, tanto no plano teórico, como no plano exegético. Pode dizer-se mesmo que a noção de intertextualidade é não apenas muito fecunda, mas também, não raras vezes, indutora de discursos críticos que a tomam como passepartout operatório, aquém do potencial heurístico que ela encerra.
As manifestações intertextuais são o terceiro componente da cena dialógica d’O ano da morte de Ricardo Reis de que quero tratar. Está nelas em causa a correlação entre a intertextualidade como conceção dinâmica da produção textual e o dialogismo como condição da linguagem verbal; essa correlação pode ser verificada no relato saramaguiano, até pelo modo como ele se inscreve num ethos literário e cultural que, nas últimas décadas, nos habituou à interação entre géneros, à carnavalização da linguagem e à subversão do monologismo narrativo. A intertextualidade é agente dinâmico daquela subversão; por isso, percebe-se bem que diversas análises, de qualidade e alcance desiguais, tenham abordado, deste ponto de vista, O ano da morte de Ricardo Reis (cf., por exemplo, Sousa 2004, 251-265; Ventura 2006, 1-7; Redü 2013, 1-25) que é, juntamente com O evangelho segundo Jesus Cristo, o romance de Saramago mais desafiante para tais leituras.
Conforme é sabido, a valorização crítica da intertextualidade funda-se em análises pioneiras de Julia Kristeva, aqui recordadas de forma sumária. Penso, naturalmente, no livro seminal e a mais do que um título histórico, Σημειωτική : recherches pour une sémanalyse (1969) e na caracterização do texto como dispositivo translinguístico e resultado do cruzamento de enunciados, em direta conexão com o conceito bakhtiniano de polifonia. Kristeva foi, de resto, uma das responsáveis pela difusão de Bakhtin no Ocidente e prefaciadora de uma das suas obras capitais, La poétique de Dostoïevski (1970).
São conhecidos também os desenvolvimentos de que a noção de intertextualidade beneficiou, bastando, para o que agora interessa, mencionar dois deles: primeiro, o já citado contributo de Genette que, em Palimpsestes, levou a cabo uma sistematização do conceito amplo de transtextualidade (cf. Genette 1982, 7-14); mais recentemente, e em parte como resultado do movimento interdisciplinar que atingiu os estudos narrativos, um segundo desenvolvimento: o alargamento transliterário da lógica e dos limites da intertextualidade. Ganha, então, pertinência e vigor operatório o conceito de intermedialidade, como “processo de interação estabelecido entre discursos de media autónomos, compreendendo vários âmbitos e permitindo desenvolver relações funcionais entre diversas linguagens, em diferentes suportes e contextos comunicativos” (Reis 2018b, 218). Opto, no presente contexto, por uma caracterização ampla que, no estado atual dos estudos mediáticos, deu já lugar a diferenciações específicas, a partir daquele sentido genérico. Nesse sentido genérico, intermedialidade designa “those phenomena that (as indicated by the prefix inter) in some way take place between media”; daí resultam configurações “which have to do with a crossing of borders between media, and which thereby can be differentiated from intramedial phenomena as well as from transmedial phenomena” (Rajewsky 2005, 46).
É neste terreno que se movimenta o recente estudo de Sara Grünhagen, saído de uma tese universitária sobre O ano da morte de Ricardo Reis e O evangelho segundo Jesus Cristo. Nele, procede-se a uma minuciosa análise que muito bem ilustra (aprofundando-os, é claro) tópicos de que aqui me tenho acercado, em busca da caracterização de componentes relevantes disso a que chamo a cena dialógica da ficção saramaguiana.
Para além de fazer da categoria da intertextualidade o núcleo duro do seu estudo, Grünhagen alarga-o ao conceito de intermedialidade, em harmonia com a extensão transliterária que mencionei, e convoca a dimensão oficinal da escrita saramaguiana, como espaço de irradiação dos movimentos dialógicos que surpreendemos n’O ano da morte de Ricardo Reis. Ganham aqui especial significado a noção de biblioteca e a figura de Jorge Luis Borges, como « référence d’un mode d’écriture littéraire qui se prend pour objet et qui parvient à faire quelque chose de nouveau à partir de ce qui a déjà été dit et sans cesse répété » (Grünhagen 2022, 32). O que “já foi dito” e alimenta o impulso dialógico em O ano da morte de Ricardo Reis não é apenas a literatura, mas também a escultura (as estátuas), o teatro (a peça Tá Mar, de Alfredo Cortez), o cinema (o filme de António Lopes Ribeiro, A revolução de maio) e ainda um magma considerável de textos de imprensa que facultam a informação histórica de que o romance carece.
Por fim, a reconstituição do mosaico de citações e de transformações de que se nutre O ano da morte de Ricardo Reis (e também O evangelho segundo Jesus Cristo) confirma a polifonia bakhtiniana como chave de acesso à cena dialógica do romance, incluindo uma outra e mais antiga aceção daquele conceito:
Ces deux romans de Saramago – ouvrages complexes, contenant plusieurs couches, et représentatifs de l’atelier et du style de l’écrivain – sont formés par un chœur de voix et de références qui se chevauchent, se répètent et s’additionnent, les unes et les autres ayant également été construites par imitation, par reprise et recréation de ce qui avait déjà été fait auparavant. La littérature se distingue par sa polyphonie, celle initialement théorisée par Bakhtine et celle du canon musical. (Grünhagen 2022, 306)
10. O estudo a que acabo de aludir encerra-se praticamente com uma longa citação de um dos mais sugestivos ensaios doutrinários de Saramago, ensaio que aqui retomo, pela relação que ele tem com o tema que tenho estado a tratar. Em “Do canto ao romance, do romance ao canto”, pode ler-se que o romance, do Quixote em diante, mas sobretudo nos séculos XVIII, XIX e XX em que se deu o seu amadurecimento, não pode limitar-se a glosar os modelos do passado. Porque “a literatura, se infinitamente repete [...], também infinitamente varia”, mesmo quando assim não parece. Tal como o borgiano Quixote de Pierre Ménard, referido por Saramago, o romance dirá coisas diferentes, por modos diferentes, a leitores também diferentes, mas sem recusar as vozes do passado que dialogam com as do presente.
O novo romance que Saramago perspetiva (a não confundir com aquele outro novo romance que germinou, floresceu e logo murchou na França dos anos 50 e 60) é um género simultaneamente desconstruído e compósito, fluente e eclético. Por esse lado, ele sintoniza com a tendência pós-modernista que leva a subverter, a refazer e a miscigenar géneros outrora canónicos. O romance deve, por isso, manter um diálogo constante com outros géneros já superados mas, afinal, presentes naquilo que o autor entende como um “lugar literário”: um espaço de confluência “capaz de receber, como um grande, convulso e sonoro mar, os afluentes torrenciais da poesia, do drama, do ensaio, e também da filosofia e da ciência” (Saramago 2022, 70).
O romance encarado como convergência de fluxos e como cenário de multivocalidade remete diretamente para uma conceção polifónica da literatura, na linha do pensamento bakhtiniano (cf. Sousa 2004, 264-265, mas com fragilidades conceptuais; também Zonin 2006, 1-22). Pouco importa indagar se Saramago leu ou não Bakhtin; o que deve ser sublinhado, já conclusivamente, é que o dialogismo e a sua matriz polifónica, tal como os lemos n’O ano da morte de Ricardo Reis, deixam perceber, no conjunto da produção ficcional e doutrinária saramaguiana, algumas aporias significativas, talvez inesperadas, mas eventualmente explicáveis.
Vejamos: a prática dialógica que aqui pudemos observar integra-se num tempo literário próprio, que é o dos anos 80 e parte dos anos 90, em que foram escritos e publicados aqueles que considero serem os grandes romances de Saramago. Ou seja, Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira e outros mais. Sem a segurança que só um estudo aprofundado permitiria, talvez possa afirmar-se que aqueles títulos são os do tempo da multivocalidade polifónica de que falei. Fora dela, fica Levantado do chão, romance em que se manifesta, em registo monológico, a tal “voz ordenadora do narrador” de que fala Pina, o que, para mim, não afeta a qualidade de Levantado do chão, uma obra admirável, a vários títulos.
É sobretudo de meados dos anos 90 em diante que José Saramago afirma uma sua conceção do romance como género com forte marcação autoral. Emerge então, cada vez com maior expressividade, uma voz singular e consciente não apenas das prerrogativas da autoria, mas também da autoridade que, em vários planos, ela reclama; uma voz, além do mais, com capacidade para intervir no espaço público, em temas sociais, políticos e cívicos. A atribuição do Prémio Nobel da Literatura, em 1998, parece ter reforçado essa autoridade, para muitos inquestionável.
Em 1999, Saramago proferiu, no México, uma conferência provinda de uma versão anterior, de 1994, apresentada num congresso, em Edmonton, Canadá. O título inicial era interrogativo: “Entre o narrador omnisciente e o monólogo interior: será necessário regressar ao autor?” (cf. Saramago 1995, 176-177); cinco anos depois, tendo voltado ao seu texto pelo menos em duas outras apresentações, Saramago regressa ao tema, confirma o seu posicionamento e reajusta o título para “O autor como narrador omnisciente”. Assim, em todos os aspetos e para todos os efeitos, José Saramago entende que o escritor é o autor, sem ponderar a distinção entre ambos; uma distinção que, obviamente, nos conduz ao pensamento de Foucault, para quem o autor é postulado como constructo com funções distintas das do escritor concreto (cf. Foucault 1979, 141-160). Para Saramago, é a voz singular de uma entidade tangível e historicamente situada do escritor-autor que emerge, quando questionamos a responsabilidade de um projeto social e cultural chamado literatura e o propósito que o rege.
É isto compatível com uma prática literária e romanesca dominada pela pluralidade dos discursos, pela instabilidade dos juízos e pelo confronto de visões do mundo e de perspetivas narrativas? Provavelmente, não. E a dificuldade de harmonizarmos “dois Saramagos” – para simplificar, talvez demais: o do dialogismo narrativo e o da assertividade autoral – constitui uma fragilização do estatuto literário que lhe é reconhecido? Não necessariamente, desde que aceitemos a legitimidade de um reposicionamento de Saramago, num quadro diacrónico e evolutivo, que o coloca cada vez mais como ideólogo e cada vez menos como ficcionista que compõe mundos narrativos complexos.
Uma coisa não exclui a outra, como é evidente, podendo aquilo que parece ser uma dicotomia redutora (ideólogo vs. ficcionista) ser entendido como mera polarização ou (talvez melhor) oscilação qualitativa. Mas a isto é preciso acrescentar: foi o próprio Saramago quem afirmou não propriamente a falência da sua condição de romancista, mas a sua deslocação progressiva para o lugar do ensaísta.
Em Diálogos com José Saramago, declarou: “provavelmente não sou um romancista; provavelmente eu sou um ensaísta que precisa de escrever romances porque não sabe escrever ensaios” (Reis 2018a, 38). E numa entrevista, pouco tempo depois de ter dito isto, foi mais incisivo:
Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspeto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações. (apud Gómez Aguilera 2010, 264)
Ao lermos O ano da morte de Ricardo Reis e, nele, a vasta e multivocal cena dialógica em que a ação se desenvolve e onde ressoam os discursos das personagens, não temos de responder àquela espécie de dilema enunciado pelo escritor, quase quinze anos depois de ter publicado o seu romance. E menos ainda havemos de resolvê-lo – se é que ele existe. Mas sempre podemos formular perguntas como as que aqui deixei, porque a grande literatura é fértil em interrogações, mais do que em respostas definitivas.